Espaço Aberto
100 anos de Medicina: uma perspectiva histórica [1910-2010] Parte III
Biologia Molecular
Em 1944, Erwin Schrodinger, físico austríaco, estabeleceu, no seu livro What is Life? os fundamentos da biologia molecular, a área da Biologia que caracteriza, isola e manipula os componentes moleculares das células e organismos (quase quatro décadas depois de Bateson ter definido, em 1905, a genética, a ciência da hereditariedade e da variação). Estes componentes moleculares incluem as proteínas, o RNA e o DNA. A estrutura (em dupla hélice) das moléculas deste último foi descoberta em 1953 pelo biólogo James Watson, dos EUA, e pelos físicos Francis Crick, Maurice Wilkins, ingleses, e Rosalind Franklin, também dos EUA. O Prémio Nobel foi entregue em 1962 apenas aos três primeiros, porque Rosalind Franklin falecera em 1958.
Bioinformática
A Bioinformática designa o estudo da aplicação de técnicas computacionais e matemáticas à criação e gestão de informação biológica. Embora esteja frequentemente associada à biologia molecular, ou mais concretamente, à genómica, ela envolve a informação biológica em geral. Combina conhecimentos da Química, da Física, da Biologia, das Ciências da Computação, da Informática e da Matemática Estatística para processar dados biológicos ou biomédicos. Implica a utilização de softwares especiais que permitem identificar genes, prever a configuração tridimensional de proteínas, identificar inibidores de enzimas, organizar e relacionar informação biológica, simular células, agrupar proteínas homólogas, montar árvores filogenéticas, comparar múltiplas comunidades microbianas para construir bibliotecas genómicas, analisar experiências de expressão genética entre muitas outras aplicações.
Genómica
Em 1972, Walter Fiers e a sua equipa no Laboratório de Biologia Molecular da Universidade de Ghent, na Bélgica, foram os primeiros a determinar a sequência de um gene: o da «bacteriophage coat protein». Em 1990, arranca o projecto Genoma Humano financiado pelo Departamento de Energia dos Estados Unidos da América e pelos Institutos Nacionais de Saúde dos Estados Unidos da América, envolvendo a comunidade científica internacional, com um prazo previsto de quinze anos.
O primeiro organismo vivo a ser sequenciado foi o Haemophilus influenzae, em 1995 e, desde então, as sequenciações não pararam. Em Setembro de 2007 eram conhecidas as sequências completas de 1879 vírus, 577 bactérias e cerca de 23 organismos eucariontes, dos quais metade são fungos. Um primeiro rascunho do genoma humano foi apresentado pelo Human Genome Project no começo de 2001, criando muitas expectativas. Em 2007, foi terminada a sequenciação do genoma humano. A apresentação dos resultados exigiu importantes recursos bioinformáticos. A montagem da sequência humana de referência pode ser explorada através do UCSC Genome Browser.
Medicina Molecular e Biologia de Sistemas
A Medicina Molecular é um vasto campo interdisciplinar, onde são utilizadas técnicas físicas, químicas, biológicas, etc., para descrever as estruturas moleculares e os seus mecanismos, identificar erros na genética molecular das doenças e corrigi-los molecularmente. As suas bases foram lançadas em 1949 com a publicação na revista Science do artigo «Sickle Cell Anemia, a Molecular Disease» por Linus Pauling, Harvey Itano e seus colaboradores.
No entanto, a autonomia da Medicina Molecular como disciplina só irá ocorrer em 1966, quando Mihajlo Mesarovic apresenta num simpósio internacional no Case Institut of Technology em Cleveland, Ohio, o artigo intitulada «Teoria dos Sistemas e Biologia».
Durante as décadas de 1960 e 1970 desenvolveram-se várias estratégias com o objectivo de estudar os sistemas complexos moleculares, como o «análise do controlo metabólico» e a «teoria dos sistemas bioquímicos». Mas foi nos anos de 1990, com o aumento explosivo da capacidade e velocidade dos computadores, que o processamento de grandes volumes de dados de alta qualidade se tornou possível, permitindo a construção de modelos complexos, próximos da realidade. Em 1997, o grupo de Masaru Tomita publicou o primeiro modelo quantitativo do conjunto (hipotético) de uma célula.
Em Portugal, foi criado, em 1961, em Oeiras, o Instituto Gulbenkian de Ciência, cujo objectivo principal foi o desenvolvimento de investigação biomédica e actividades relacionadas com o ensino. Em 1989, foi fundado o Instituto de Patologia e Imunologia Molecular (IPATIMUP) da Universidade do Porto e, já na década de 1990, o Instituto de Biologia Molecular e Celular e o Instituto de Engenharia Biomédica da Universidade do Porto (recentemente reunidos numa única instituição, o I3S), e o grupo Bial. Em 1990, é criado o Centro de Neurociências e Biologia Celular da Universidade de Coimbra.
Por volta do ano 2000, depois dos institutos de Biologia de Sistemas se instalarem em Seattle e Tóquio, a biologia dos sistemas emergiu como um movimento autónomo, estimulado pelo desenvolvimento da Genómica e das experiências da Bioinformática. Desde então, vários institutos de investigação na área da biologia de sistemas foram criados. A partir do verão de 2006, devido à escassez de investigadores em Biologia de sistemas, foram criados vários centros de formação por todo o mundo.
Em Portugal, foi criado em 2001, na Faculdade de Medicina da Universidade de Lisboa, o Instituto de Medicina Molecular (IMM). O IMM e o Instituto de Histologia e Biologia do Desenvolvimento da mesma Faculdade derivam do Instituto de Histologia e Embriologia da Faculdade de Medicina de Lisboa (fundado em 1911 por Augusto Celestino da Costa), e do Centro de Biologia e Patologia Molecular da mesma faculdade, criado já nos anos 90.
Em 2009, foram inaugurados o Instituto de Ciências Nucleares Aplicadas à Saúde da Universidade de Coimbra e o Laboratório Internacional Ibérico de Nanotecnologia da Universidade do Minho.
O prémio Nobel da Medicina foi atribuído em 2009 a três cientistas de diferentes origens, a trabalhar nos EUA: Carol Greider, Elizabeth Blackburn e Jack Szostak. O prémio incidiu sobre o resultado das suas pesquisas sobre um enzima que protege as células do envelhecimento e tem implicações para a investigação sobre o cancro, chamado telomerase, determinando de que forma os cromossomas podem ser inteiramente copiados e protegidos contra a degradação, tendo deste modo feito avançar os conhecimentos sobre o envelhecimento celular, a «solução para um grande problema da biologia», de acordo com o Comité Nobel.
Bioética e Declaração Universal sobre o Genoma Humano
Em 1971, Van Rensselar Potter (1911-2001), biólogo norte-americano, publica o livro Bioethics: Bridge to The Future onde aparece pela primeira vez o conceito de bioética, que cruza os saberes científico e humanístico. Nesse mesmo ano é fundado, nos EUA, o Kennedy Institute of Ethics na Georgetown University, o primeiro centro académico de bioética do mundo, através de uma doação da Joseph P. Kennedy Jr. Foundation.
Em 1988, foi fundado o Centro de Estudos de Bioética em Coimbra, o primeiro centro de Bioética em Portugal, iniciativa de um grupo de reflexão constituído por médicos, juristas, teólogos e filósofos, da Associação Portuguesa de Médicos Católicos. Passados dois anos, é criado o Conselho Nacional de Ética para as Ciências da Vida, um órgão consultivo independente de carácter transdisciplinar. A sua necessidade surgiu no decurso dos trabalhos da Comissão para o Enquadramento Legislativo das Novas Tecnologias, encarregada pelo Ministro da Justiça de preparar um projecto legislativo sobre reprodução medicamente assistida. A complexidade e a novidade dos problemas éticos levantados durante a preparação desse documento levou a que a Comissão apresentasse à Assembleia da República um projecto legislativo para um conselho nacional. Portugal torna-se assim um dos primeiros países da Europa a mostrar a necessidade de se criar um comité nacional de bioética.
Em 1997, é adoptada a Declaração Universal sobre o Genoma Humano na Conferência Geral da UNESCO e os Direitos Humanos, a partir de um projecto redigido pelo Comité Internacional de Bioética. Esta declaração possui traços inovadores e peculiares em relação às restantes declarações universais de Direito, pois não se apoia apenas na noção filosófica abstracta da igualdade entre todos os homens (fundada na presença da racionalidade e da autonomia humanas), mas também na identidade biológica traçada a partir do genoma. Em 2003, a Conferência Geral da UNESCO adoptou a Declaração sobre os Dados Genéticos Humanos e, em 2005, a Declaração Universal sobre Bioética e Direitos Humanos.
Manuel Valente Alves
Director do Museu de Medicina da FMUL
m.valentealves@sapo.pt
Em 1944, Erwin Schrodinger, físico austríaco, estabeleceu, no seu livro What is Life? os fundamentos da biologia molecular, a área da Biologia que caracteriza, isola e manipula os componentes moleculares das células e organismos (quase quatro décadas depois de Bateson ter definido, em 1905, a genética, a ciência da hereditariedade e da variação). Estes componentes moleculares incluem as proteínas, o RNA e o DNA. A estrutura (em dupla hélice) das moléculas deste último foi descoberta em 1953 pelo biólogo James Watson, dos EUA, e pelos físicos Francis Crick, Maurice Wilkins, ingleses, e Rosalind Franklin, também dos EUA. O Prémio Nobel foi entregue em 1962 apenas aos três primeiros, porque Rosalind Franklin falecera em 1958.
Bioinformática
A Bioinformática designa o estudo da aplicação de técnicas computacionais e matemáticas à criação e gestão de informação biológica. Embora esteja frequentemente associada à biologia molecular, ou mais concretamente, à genómica, ela envolve a informação biológica em geral. Combina conhecimentos da Química, da Física, da Biologia, das Ciências da Computação, da Informática e da Matemática Estatística para processar dados biológicos ou biomédicos. Implica a utilização de softwares especiais que permitem identificar genes, prever a configuração tridimensional de proteínas, identificar inibidores de enzimas, organizar e relacionar informação biológica, simular células, agrupar proteínas homólogas, montar árvores filogenéticas, comparar múltiplas comunidades microbianas para construir bibliotecas genómicas, analisar experiências de expressão genética entre muitas outras aplicações.
Genómica
Em 1972, Walter Fiers e a sua equipa no Laboratório de Biologia Molecular da Universidade de Ghent, na Bélgica, foram os primeiros a determinar a sequência de um gene: o da «bacteriophage coat protein». Em 1990, arranca o projecto Genoma Humano financiado pelo Departamento de Energia dos Estados Unidos da América e pelos Institutos Nacionais de Saúde dos Estados Unidos da América, envolvendo a comunidade científica internacional, com um prazo previsto de quinze anos.
O primeiro organismo vivo a ser sequenciado foi o Haemophilus influenzae, em 1995 e, desde então, as sequenciações não pararam. Em Setembro de 2007 eram conhecidas as sequências completas de 1879 vírus, 577 bactérias e cerca de 23 organismos eucariontes, dos quais metade são fungos. Um primeiro rascunho do genoma humano foi apresentado pelo Human Genome Project no começo de 2001, criando muitas expectativas. Em 2007, foi terminada a sequenciação do genoma humano. A apresentação dos resultados exigiu importantes recursos bioinformáticos. A montagem da sequência humana de referência pode ser explorada através do UCSC Genome Browser.
Medicina Molecular e Biologia de Sistemas
A Medicina Molecular é um vasto campo interdisciplinar, onde são utilizadas técnicas físicas, químicas, biológicas, etc., para descrever as estruturas moleculares e os seus mecanismos, identificar erros na genética molecular das doenças e corrigi-los molecularmente. As suas bases foram lançadas em 1949 com a publicação na revista Science do artigo «Sickle Cell Anemia, a Molecular Disease» por Linus Pauling, Harvey Itano e seus colaboradores.
No entanto, a autonomia da Medicina Molecular como disciplina só irá ocorrer em 1966, quando Mihajlo Mesarovic apresenta num simpósio internacional no Case Institut of Technology em Cleveland, Ohio, o artigo intitulada «Teoria dos Sistemas e Biologia».
Durante as décadas de 1960 e 1970 desenvolveram-se várias estratégias com o objectivo de estudar os sistemas complexos moleculares, como o «análise do controlo metabólico» e a «teoria dos sistemas bioquímicos». Mas foi nos anos de 1990, com o aumento explosivo da capacidade e velocidade dos computadores, que o processamento de grandes volumes de dados de alta qualidade se tornou possível, permitindo a construção de modelos complexos, próximos da realidade. Em 1997, o grupo de Masaru Tomita publicou o primeiro modelo quantitativo do conjunto (hipotético) de uma célula.
Em Portugal, foi criado, em 1961, em Oeiras, o Instituto Gulbenkian de Ciência, cujo objectivo principal foi o desenvolvimento de investigação biomédica e actividades relacionadas com o ensino. Em 1989, foi fundado o Instituto de Patologia e Imunologia Molecular (IPATIMUP) da Universidade do Porto e, já na década de 1990, o Instituto de Biologia Molecular e Celular e o Instituto de Engenharia Biomédica da Universidade do Porto (recentemente reunidos numa única instituição, o I3S), e o grupo Bial. Em 1990, é criado o Centro de Neurociências e Biologia Celular da Universidade de Coimbra.
Por volta do ano 2000, depois dos institutos de Biologia de Sistemas se instalarem em Seattle e Tóquio, a biologia dos sistemas emergiu como um movimento autónomo, estimulado pelo desenvolvimento da Genómica e das experiências da Bioinformática. Desde então, vários institutos de investigação na área da biologia de sistemas foram criados. A partir do verão de 2006, devido à escassez de investigadores em Biologia de sistemas, foram criados vários centros de formação por todo o mundo.
Em Portugal, foi criado em 2001, na Faculdade de Medicina da Universidade de Lisboa, o Instituto de Medicina Molecular (IMM). O IMM e o Instituto de Histologia e Biologia do Desenvolvimento da mesma Faculdade derivam do Instituto de Histologia e Embriologia da Faculdade de Medicina de Lisboa (fundado em 1911 por Augusto Celestino da Costa), e do Centro de Biologia e Patologia Molecular da mesma faculdade, criado já nos anos 90.
Em 2009, foram inaugurados o Instituto de Ciências Nucleares Aplicadas à Saúde da Universidade de Coimbra e o Laboratório Internacional Ibérico de Nanotecnologia da Universidade do Minho.
O prémio Nobel da Medicina foi atribuído em 2009 a três cientistas de diferentes origens, a trabalhar nos EUA: Carol Greider, Elizabeth Blackburn e Jack Szostak. O prémio incidiu sobre o resultado das suas pesquisas sobre um enzima que protege as células do envelhecimento e tem implicações para a investigação sobre o cancro, chamado telomerase, determinando de que forma os cromossomas podem ser inteiramente copiados e protegidos contra a degradação, tendo deste modo feito avançar os conhecimentos sobre o envelhecimento celular, a «solução para um grande problema da biologia», de acordo com o Comité Nobel.
Bioética e Declaração Universal sobre o Genoma Humano
Em 1971, Van Rensselar Potter (1911-2001), biólogo norte-americano, publica o livro Bioethics: Bridge to The Future onde aparece pela primeira vez o conceito de bioética, que cruza os saberes científico e humanístico. Nesse mesmo ano é fundado, nos EUA, o Kennedy Institute of Ethics na Georgetown University, o primeiro centro académico de bioética do mundo, através de uma doação da Joseph P. Kennedy Jr. Foundation.
Em 1988, foi fundado o Centro de Estudos de Bioética em Coimbra, o primeiro centro de Bioética em Portugal, iniciativa de um grupo de reflexão constituído por médicos, juristas, teólogos e filósofos, da Associação Portuguesa de Médicos Católicos. Passados dois anos, é criado o Conselho Nacional de Ética para as Ciências da Vida, um órgão consultivo independente de carácter transdisciplinar. A sua necessidade surgiu no decurso dos trabalhos da Comissão para o Enquadramento Legislativo das Novas Tecnologias, encarregada pelo Ministro da Justiça de preparar um projecto legislativo sobre reprodução medicamente assistida. A complexidade e a novidade dos problemas éticos levantados durante a preparação desse documento levou a que a Comissão apresentasse à Assembleia da República um projecto legislativo para um conselho nacional. Portugal torna-se assim um dos primeiros países da Europa a mostrar a necessidade de se criar um comité nacional de bioética.
Em 1997, é adoptada a Declaração Universal sobre o Genoma Humano na Conferência Geral da UNESCO e os Direitos Humanos, a partir de um projecto redigido pelo Comité Internacional de Bioética. Esta declaração possui traços inovadores e peculiares em relação às restantes declarações universais de Direito, pois não se apoia apenas na noção filosófica abstracta da igualdade entre todos os homens (fundada na presença da racionalidade e da autonomia humanas), mas também na identidade biológica traçada a partir do genoma. Em 2003, a Conferência Geral da UNESCO adoptou a Declaração sobre os Dados Genéticos Humanos e, em 2005, a Declaração Universal sobre Bioética e Direitos Humanos.
Manuel Valente Alves
Director do Museu de Medicina da FMUL
m.valentealves@sapo.pt