Espaço Aberto
Repercussão Cardiocirculatória do Treino Físico. Do Coração do Atleta à Morte Súbita
O Exercício Físico e o Coração do Atleta
O exercício físico regular reduz a morbilidade e mortalidade cardíacas, prevenindo a aterosclerose. Em contraste, a morte súbita pode ocorrer em atletas de competição, consequência de taquidisrritmias ventriculares em associação a diferentes situações cardiovasculares, congénitas ou adquiridas. Sobretudo na última década, a investigação tem-se debruçado sistematicamente na identificação dos limites dos critérios do coração do atleta, de forma a permitir o despiste sistemático das doenças cardiovasculares de risco subjacentes à morte súbita (MS).
As modificações cardiocirculatórias associadas à prática do exercício em aerobiose são secundárias ao aumento do consumo de oxigénio pelo tecido muscular e expressam-se, de um modo geral, pelo incremento do débito cardíaco, decorrente de elevação da frequência cardíaca e do volume sistólico. De forma mais específica, entre outros factores, o tipo de desporto tem influência crucial. O exercício dinâmico ou isotónico associa-se à redução das resistências periféricas, ao aumento da pressão arterial e a um padrão circulatório de sobrecarga de volume. Já o exercício estático ou isométrico acompanha-se de aumento das resistências periféricas e da pressão arterial sistodiastólica, configurando um padrão de sobrecarga de pressão. Embora a modalidade da corrida de fundo se aproxime do modelo dinâmico e o halterofilismo seja paradigmático do exercício estático, a maioria dos desportos têm componentes mistos, com diferentes importâncias.
A actividade de exercício regular ou desportiva acompanha-se de alterações electrofiológicas e de modificações de remodelagem ventricular, que contribuem para manter o débito cardíaco elevado e o stress parietal reduzido. Assim, em resposta à sobrecarga, observa-se aumento da espessura parietal e da massa ventricular esquerda, a qual é mais acentuada e sem dilatação ventricular nos desportos isométricos (hipertrofia concêntrica), enquanto se verifica aumento da dimensão das câmaras cardíacas nas actividades de tipo dinâmico (hipertrofia excêntrica) . É de salientar que, no processo de condicionamento, a função sistólica ventricular se mantém normal, enquanto o padrão de função diastólica, avaliada por fluxo transmitral e Doppler tecidular, é normal ou “supranormal”. Estudos recentes revelaram alterações da deformação miocárdica associada aos desportos de tipo estático, mas o seu significado não está esclarecido. Da resposta fisiológica ao exercício regular, faz também parte a adaptação do sistema nervoso autónomo ao condicionamento atlético, com elevação do tonus vagal e inibição simpática, traduzida em bradicárdia sinusal e alterações da condução aurículo-ventricular a nível nodal . O grau e natureza da resposta dependem também do sexo, da natureza e grau do treino e de factores genéticos e étnicos .
As modificações descritas configuram o padrão de coração do atleta, como resposta fisiológica ao treino físico continuado. Em situações limite, as modificações cardíacas podem aproximar-se das descritas para algumas miocardiopatias que se associam a risco de MS e constituem contra-indicação para o desporto competitivo, sendo por vezes complexo o diagnóstico diferencial.
Morte Súbita no Atleta
A MS num atleta é um evento raro mas temível, com valores variáveis de incidências segundo as séries, mais elevados com a idade e no sexo masculino. Uma série bem caracterizada da região do Veneto, em Itália, aponta uma incidência de 2,1/100.000 atletas-ano . A morte surge em 80% dos casos durante a prática desportiva e em 20% após o exercício, sugerindo ser este o factor precipitante . No grupo etário mais avançado, a MS associa-se mais frequentemente a doença aterosclerótica coronária, por exercício intenso e devida a enfarte de miocárdio ou arritmia ventricular isquémica. Na realidade, se o exercício tem papel preventivo de aterosclerose em fase incipiente, pode ter efeito deletério se deficientemente controlado na doença estabelecida pré-clínica. No atleta jovem (=35 anos) um número importante de situações cardiovasculares constitui substrato à MS cardíaca por taquicárdia/fibrilhação ventricular.
A miocardiopatia hipertrófica, de base genética e que se caracteriza por hipertrofia, fibrose e desarranjo estrutural das miofibrilhas ventriculares constitui mais de 1/3 das situações de MS nos Estados Unidos (Fig. 1). Esta situação pode-se confundir com o coração do atleta, em particular quando a espessura da parede ventricular atinge os 15-16 mm, critério que constitui uma zona cinzenta . A miocardiopatia arritmogénica do ventrículo direito, também doença genética e que se expressa como dilatação, disfunção e infiltração fibrolipídica do ventrículo direito (Fig. 2), foi apontada como substrato para a MS em 1/4 dos casos na região do Veneto. O seu diagnóstico recorre a critérios clínicos, ECG, genética, imagiologia (ecocardiografia/ressonância magnética) . Outras situações subjacentes à MS incluem anomalias congénitas das coronárias, a doença coronária prematura, miocardite, miocardiopatia dilatada, perturbações da condução, Wolff-Parkinson-White ou as canalopatias, de difícil diagnóstico (síndromes do QT-longo e QT-curto congénitos, Brugada e taquicárdia ventricular polimórfica catecolaminérgica). A dissecção da aorta ou etiologias não-cardíacas podem, raramente, constituir situação etiológica.
Prevenção da Morte Súbita por Screening Pré-participação
A avaliação médica dos atletas permite identificar os indivíduos assintomáticos com risco de MS. O protocolo não está universalmente estabelecido. Nos Estados Unidos é apenas avaliada a história clínica, com especial ênfase na familiar. A análise da eficácia deste screening revela, contudo, ser pouco sensível e específico . Já em Itália, o protocolo de screening é obrigatório para todos os que praticam desportos competitivos. Para além da história clínica completa, obtida por médicos do desporto, inclui o ECG como exame único. Nos casos de suspeita de cardiopatia, são efectuadas outras modalidades diagnósticas que vão da ecocardiografia ao Holter, à ergometria ou à ressonância magnética, ao estudo electrofisiológico e outros, segundo um algoritmo diagnóstico . Esta estratégia revelou-se eficaz, ao reduzir a incidência de MS de 3,6/100.000, em 1980, para 0,4/100.000 doentes-ano, em 2004. Apesar do impacto económico das estratégias de screening, o seu benefício encontra-se amplamente demonstrado nos resultados conseguidos em Itália, o único país onde as atitudes preventivas estão legisladas e têm carácter obrigatório. Contudo, as guidelines da Sociedade Europeia de Cardiologia recomendam já esta estratégia de avaliação dos atletas.
Fig. 1. Miocardiopatia hipertrófica. Imagem do ventrículo esquerdo obtida por ressonância magnética evidenciando hipertrofia septal com fibrose (a branco, seta).
Fig. 2. Miocardiopatia arritmogénica do ventrículo direito. Imagem de dilatação e aneurisma (seta) do ventrículo direito, obtida por ressonância magnética.seta).
Ana G. Almeida
Professora Associada de Cardiologia
Clínica Universitária de Cardiologia
Faculdade de Medicina da Universidade de Lisboa
anagalmeida@gmail.com
REFERÊNCIAS
Fagard RH. Impact of different sports and training on cardiac structure and function. Cardiology Clinics 1997;15:397–412
Pelliccia A, Maron BJ, Culasso F, et al. Clinical significance of abnormal electrocardiographic patterns in trained athletes. Circulation 2000;102:278–84
Karjalainen J, Kujala HM, Stolt A, et al. Angiotensinogen gene M235T polymorphism predicts left ventricular hypertrophy in endurance athletes. J Am Coll Cardiol 1999;34:494: 9
Corrado D, Basso C, Rizzoli G, et al. Does sports activity enhance the risk of sudden death in adolescents and young adults? J Am Coll Cardiol 2003;42:1959–63
Corrado D, Maron BJ, Basso C, Pelliccia A, et al. Sudden cardiac death in athletes. In Gussac I, Antzelevitch C (eds.) Electrical diseases of the heart, 2008. London: Springer-Verlag, pp.911–23
Maron BJ. Distinguishing hypertrophic cardiomyopathy from athlete's heart: a clinical problem of increasing magnitude and significance. Heart 2005;91;1380-1382.
Marcus F, MD, McKenna, WJ, Sherrill D et al. Diagnosis of Arrhythmogenic Right Ventricular Cardiomyopathy/Dysplasia. Circulation. 2010;121:1533-1541
Maron BJ, Shirani J, Poliac LC, et al. Sudden death in young competitive athletes. Clinical, demographics,and pathological profiles. JAMA 1996;276:199–204
Corrado D, Pelliccia A, Bjørnstad H et al. Cardiovascular pre-participation screening of young competitive athletes for prevention of sudden death. Eur Heart J. 2005;26:516-2
Outros Artigos
O exercício físico regular reduz a morbilidade e mortalidade cardíacas, prevenindo a aterosclerose. Em contraste, a morte súbita pode ocorrer em atletas de competição, consequência de taquidisrritmias ventriculares em associação a diferentes situações cardiovasculares, congénitas ou adquiridas. Sobretudo na última década, a investigação tem-se debruçado sistematicamente na identificação dos limites dos critérios do coração do atleta, de forma a permitir o despiste sistemático das doenças cardiovasculares de risco subjacentes à morte súbita (MS).
As modificações cardiocirculatórias associadas à prática do exercício em aerobiose são secundárias ao aumento do consumo de oxigénio pelo tecido muscular e expressam-se, de um modo geral, pelo incremento do débito cardíaco, decorrente de elevação da frequência cardíaca e do volume sistólico. De forma mais específica, entre outros factores, o tipo de desporto tem influência crucial. O exercício dinâmico ou isotónico associa-se à redução das resistências periféricas, ao aumento da pressão arterial e a um padrão circulatório de sobrecarga de volume. Já o exercício estático ou isométrico acompanha-se de aumento das resistências periféricas e da pressão arterial sistodiastólica, configurando um padrão de sobrecarga de pressão. Embora a modalidade da corrida de fundo se aproxime do modelo dinâmico e o halterofilismo seja paradigmático do exercício estático, a maioria dos desportos têm componentes mistos, com diferentes importâncias.
A actividade de exercício regular ou desportiva acompanha-se de alterações electrofiológicas e de modificações de remodelagem ventricular, que contribuem para manter o débito cardíaco elevado e o stress parietal reduzido. Assim, em resposta à sobrecarga, observa-se aumento da espessura parietal e da massa ventricular esquerda, a qual é mais acentuada e sem dilatação ventricular nos desportos isométricos (hipertrofia concêntrica), enquanto se verifica aumento da dimensão das câmaras cardíacas nas actividades de tipo dinâmico (hipertrofia excêntrica) . É de salientar que, no processo de condicionamento, a função sistólica ventricular se mantém normal, enquanto o padrão de função diastólica, avaliada por fluxo transmitral e Doppler tecidular, é normal ou “supranormal”. Estudos recentes revelaram alterações da deformação miocárdica associada aos desportos de tipo estático, mas o seu significado não está esclarecido. Da resposta fisiológica ao exercício regular, faz também parte a adaptação do sistema nervoso autónomo ao condicionamento atlético, com elevação do tonus vagal e inibição simpática, traduzida em bradicárdia sinusal e alterações da condução aurículo-ventricular a nível nodal . O grau e natureza da resposta dependem também do sexo, da natureza e grau do treino e de factores genéticos e étnicos .
As modificações descritas configuram o padrão de coração do atleta, como resposta fisiológica ao treino físico continuado. Em situações limite, as modificações cardíacas podem aproximar-se das descritas para algumas miocardiopatias que se associam a risco de MS e constituem contra-indicação para o desporto competitivo, sendo por vezes complexo o diagnóstico diferencial.
Morte Súbita no Atleta
A MS num atleta é um evento raro mas temível, com valores variáveis de incidências segundo as séries, mais elevados com a idade e no sexo masculino. Uma série bem caracterizada da região do Veneto, em Itália, aponta uma incidência de 2,1/100.000 atletas-ano . A morte surge em 80% dos casos durante a prática desportiva e em 20% após o exercício, sugerindo ser este o factor precipitante . No grupo etário mais avançado, a MS associa-se mais frequentemente a doença aterosclerótica coronária, por exercício intenso e devida a enfarte de miocárdio ou arritmia ventricular isquémica. Na realidade, se o exercício tem papel preventivo de aterosclerose em fase incipiente, pode ter efeito deletério se deficientemente controlado na doença estabelecida pré-clínica. No atleta jovem (=35 anos) um número importante de situações cardiovasculares constitui substrato à MS cardíaca por taquicárdia/fibrilhação ventricular.
A miocardiopatia hipertrófica, de base genética e que se caracteriza por hipertrofia, fibrose e desarranjo estrutural das miofibrilhas ventriculares constitui mais de 1/3 das situações de MS nos Estados Unidos (Fig. 1). Esta situação pode-se confundir com o coração do atleta, em particular quando a espessura da parede ventricular atinge os 15-16 mm, critério que constitui uma zona cinzenta . A miocardiopatia arritmogénica do ventrículo direito, também doença genética e que se expressa como dilatação, disfunção e infiltração fibrolipídica do ventrículo direito (Fig. 2), foi apontada como substrato para a MS em 1/4 dos casos na região do Veneto. O seu diagnóstico recorre a critérios clínicos, ECG, genética, imagiologia (ecocardiografia/ressonância magnética) . Outras situações subjacentes à MS incluem anomalias congénitas das coronárias, a doença coronária prematura, miocardite, miocardiopatia dilatada, perturbações da condução, Wolff-Parkinson-White ou as canalopatias, de difícil diagnóstico (síndromes do QT-longo e QT-curto congénitos, Brugada e taquicárdia ventricular polimórfica catecolaminérgica). A dissecção da aorta ou etiologias não-cardíacas podem, raramente, constituir situação etiológica.
Prevenção da Morte Súbita por Screening Pré-participação
A avaliação médica dos atletas permite identificar os indivíduos assintomáticos com risco de MS. O protocolo não está universalmente estabelecido. Nos Estados Unidos é apenas avaliada a história clínica, com especial ênfase na familiar. A análise da eficácia deste screening revela, contudo, ser pouco sensível e específico . Já em Itália, o protocolo de screening é obrigatório para todos os que praticam desportos competitivos. Para além da história clínica completa, obtida por médicos do desporto, inclui o ECG como exame único. Nos casos de suspeita de cardiopatia, são efectuadas outras modalidades diagnósticas que vão da ecocardiografia ao Holter, à ergometria ou à ressonância magnética, ao estudo electrofisiológico e outros, segundo um algoritmo diagnóstico . Esta estratégia revelou-se eficaz, ao reduzir a incidência de MS de 3,6/100.000, em 1980, para 0,4/100.000 doentes-ano, em 2004. Apesar do impacto económico das estratégias de screening, o seu benefício encontra-se amplamente demonstrado nos resultados conseguidos em Itália, o único país onde as atitudes preventivas estão legisladas e têm carácter obrigatório. Contudo, as guidelines da Sociedade Europeia de Cardiologia recomendam já esta estratégia de avaliação dos atletas.
Fig. 1. Miocardiopatia hipertrófica. Imagem do ventrículo esquerdo obtida por ressonância magnética evidenciando hipertrofia septal com fibrose (a branco, seta).
Fig. 2. Miocardiopatia arritmogénica do ventrículo direito. Imagem de dilatação e aneurisma (seta) do ventrículo direito, obtida por ressonância magnética.seta).
Ana G. Almeida
Professora Associada de Cardiologia
Clínica Universitária de Cardiologia
Faculdade de Medicina da Universidade de Lisboa
anagalmeida@gmail.com
REFERÊNCIAS
Fagard RH. Impact of different sports and training on cardiac structure and function. Cardiology Clinics 1997;15:397–412
Pelliccia A, Maron BJ, Culasso F, et al. Clinical significance of abnormal electrocardiographic patterns in trained athletes. Circulation 2000;102:278–84
Karjalainen J, Kujala HM, Stolt A, et al. Angiotensinogen gene M235T polymorphism predicts left ventricular hypertrophy in endurance athletes. J Am Coll Cardiol 1999;34:494: 9
Corrado D, Basso C, Rizzoli G, et al. Does sports activity enhance the risk of sudden death in adolescents and young adults? J Am Coll Cardiol 2003;42:1959–63
Corrado D, Maron BJ, Basso C, Pelliccia A, et al. Sudden cardiac death in athletes. In Gussac I, Antzelevitch C (eds.) Electrical diseases of the heart, 2008. London: Springer-Verlag, pp.911–23
Maron BJ. Distinguishing hypertrophic cardiomyopathy from athlete's heart: a clinical problem of increasing magnitude and significance. Heart 2005;91;1380-1382.
Marcus F, MD, McKenna, WJ, Sherrill D et al. Diagnosis of Arrhythmogenic Right Ventricular Cardiomyopathy/Dysplasia. Circulation. 2010;121:1533-1541
Maron BJ, Shirani J, Poliac LC, et al. Sudden death in young competitive athletes. Clinical, demographics,and pathological profiles. JAMA 1996;276:199–204
Corrado D, Pelliccia A, Bjørnstad H et al. Cardiovascular pre-participation screening of young competitive athletes for prevention of sudden death. Eur Heart J. 2005;26:516-2
Outros Artigos