Espaço Aberto
Para além da Genética: os Novos Desafios da Infertilidade Masculina
As mais recentes estimativas apontam para que a infertilidade afecte, globalmente, cerca de 70 milhões de pessoas. Mais especificamente, os dados actuais sugerem que um em cada dez casais em idade reprodutiva é infértil. Todo um conjunto de estudos tem mostrado que as causas de infertilidade se distribuem equitativamente entre ambos os sexos, sendo a percentagem de casais com infertilidade por factor masculino semelhante àquela por factor feminino. Contudo, tem-se registado, ao longo dos anos, uma tendência para o aumento da contribuição de infertilidade de causa masculina, um fenómeno que tem despertado crescente interesse por parte da comunidade científica.
De um modo geral, a capacidade reprodutora masculina depende do correcto funcionamento de quatro grandes grupos funcionais: espermatogénese (o processo de produção e maturação de espermatozóides), regulação endócrina, tolerância imunológica e capacidade copulatória/ejaculatória. Alterações num ou em vários destes grupos funcionais impactam, de uma forma mais ou menos grave, o potencial fértil do homem. Neste particular, anomalias na espermatogénese destacam-se como o factor mais comum dentro da infertilidade por causa masculina.
Na grande maioria dos casos de espermatogénese alterada, a identificação dos mecanismos responsáveis pela disrupção é extremamente complexa. No entanto, tal exercício é de grande importância, não só para um melhor aconselhamento clínico do paciente, como também para o desenvolvimento de futuras estratégias terapêuticas. Não obstante a importância dos aspectos ambientais para o sucesso da espermatogénese, considera-se que a desregulação deste processo é largamente consequência de alterações genéticas. De facto, estima-se que 15% a 30% de todos os casos de infertilidade masculina sejam resultado de distúrbios na componente genética.
Neste âmbito, o Instituto de Histologia e Biologia do Desenvolvimento da Faculdade de Medicina da Universidade de Lisboa (FMUL) e o Instituto de Medicina Molecular (IMM) têm estabelecido parcerias com a Unidade Pluridisciplinar de Reprodução Humana do Hospital de Santa Maria (HSM) e com o Instituto Nacional de Saúde Dr. Ricardo Jorge, com o intuito de desenvolver novas abordagens experimentais no campo da genética da infertilidade masculina. Estas parcerias têm-se revelado profícuas e permitiram a identificação de novos factores necessários à correcta modulação do potencial fértil masculino. Mais especificamente, os estudos desenvolvidos centraram-se na caracterização molecular de um dos domínios genómicos que controlam a espermatogénese: a região AZFc (do inglês AZoospermia Factor c) do cromossoma Y.
Conforme representado na figura, AZFc localiza-se no braço longo do Y e contém um total de quatro famílias génicas (PRY, BPY2, DAZ e CDY1), que controlam diversas funções do processo de formação do gâmeta masculino. Como consequência da sua organização maioritariamente baseada em blocos de DNA repetitivo, AZFc é também um dos domínios mais instáveis do genoma humano, conforme atestado pela sua elevada variabilidade estrutural na população masculina. Tal instabilidade reflecte-se na existência de múltiplos produtos de recombinação ilegítima de AZFc, podendo alguns deles representar factores de risco para o sucesso da espermatogénese. Esse é o caso de deleções completas ou parciais de AZFc, as primeiras correspondendo a uma das mais frequentes causas genéticas de infertilidade masculina. No entanto, as deleções parciais em AZFc, além de serem extremamente comuns, estão associadas a uma considerável diversidade fenotípica, facto que tem sido amplamente debatido no âmbito das suas implicações clínicas. Na verdade, estas deleções parciais já foram detectadas num leque diversificado de perfis espermatogénicos que variam da normal produção de espermatozóides até à completa ausência de gâmetas no ejaculado. Esta variabilidade reflecte-se igualmente a nível do resultado final dos diversos screenings populacionais realizados, já que estes são inconclusivos quanto à existência ou não de uma associação entre deleções parciais em AZFc e uma propensão para anomalias na espermatogénese.
Neste contexto, a actividade científica desenvolvida na FMUL foi determinante para o esclarecimento das consequências funcionais do mais frequente padrão de deleção parcial de AZFc (deleção gr/gr). De facto, foi desenvolvido, em parceria com as Instituições atrás citadas, um extenso programa de screening para deleções parciais de AZFc na população Portuguesa, complementado com uma reavaliação crítica e pormenorizada de ensaios realizados noutras partes do globo. Esta abordagem permitiu concluir que o risco de infertilidade masculina associado a deleção gr/gr depende das linhagens evolutivas do cromossoma Y presentes na população. Por outras palavras, dependendo do haplogrupo, ou seja, do “tipo evolutivo” do cromossoma Y que é herdado do progenitor masculino, a deleção pode ou não representar um risco de infertilidade. No caso da população Portuguesa, os haplogrupos do cromossoma Y mais prevalentes no nosso património genético estão de facto associados a esse risco, reflectindo-se num odds ratio de 5.6 (IC 95%: 1.6–30.1) de um homem possuir uma deleção parcial em AZFc e ser infértil. Estas observações, publicadas nas revistas científicas BMC Genomics (em 2007) e Human Reproduction Update (em 2010), permitiram esclarecer um dos aspectos mais controversos da genética da reprodução, assim como unificar um conjunto de estudos epidemiológicos anteriormente tidos como discordantes. Adicionalmente, os resultados revelam a importância do papel desempenhado pelos factores moduladores da informação genética (neste caso o haplogrupo do cromossoma Y) para a determinação do fenótipo, em casos em que existam alterações genéticas que predisponham à infertilidade.
Será exactamente nesta área, nomeadamente na identificação e gestão de factores moduladores de risco genético, que se esperam grandes avanços na investigação biomédica da infertilidade. Tais avanços permitirão uma progressiva personalização das terapêuticas oferecidas a casais inférteis, de acordo não só com a sua constituição genética, como também com os factores moduladores da expressão dessa informação a que foram expostos (a epigenética). Ambas as componentes serão certamente o motor para uma substancial melhoria das opções clínicas oferecidas a estes casais. É exactamente neste contexto de grandes expectativas e de ainda maiores responsabilidades e desafios, que a pesquisa desenvolvida na Unidade de Biologia da Reprodução do Instituto de Histologia e Biologia do Desenvolvimento da FMUL se insere.
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A- Esquema do cromossoma Y, com os três domínios de regulação da espermatogénese (AZFa, AZFb e AZFc) indicados. A eucromatina está representada a azul e a heterocromatina a cinzento.
B- Arquitectura genómica da região AZFc. As setas coloridas indicam blocos de DNA repetitivo.
C- Conteúdo genético da região AZFc. Triângulos pretos representam cópias activas e triângulos brancos pseudogenes. Figura retirada de Navarro-Costa et al., Human Reproduction Update, 2010.
Paulo Navarro-Costa
Instituto de Histologia e Biologia do Desenvolvimento,
Faculdade de Medicina da Universidade de Lisboa
navarro-costa@fm.ul.pt
De um modo geral, a capacidade reprodutora masculina depende do correcto funcionamento de quatro grandes grupos funcionais: espermatogénese (o processo de produção e maturação de espermatozóides), regulação endócrina, tolerância imunológica e capacidade copulatória/ejaculatória. Alterações num ou em vários destes grupos funcionais impactam, de uma forma mais ou menos grave, o potencial fértil do homem. Neste particular, anomalias na espermatogénese destacam-se como o factor mais comum dentro da infertilidade por causa masculina.
Na grande maioria dos casos de espermatogénese alterada, a identificação dos mecanismos responsáveis pela disrupção é extremamente complexa. No entanto, tal exercício é de grande importância, não só para um melhor aconselhamento clínico do paciente, como também para o desenvolvimento de futuras estratégias terapêuticas. Não obstante a importância dos aspectos ambientais para o sucesso da espermatogénese, considera-se que a desregulação deste processo é largamente consequência de alterações genéticas. De facto, estima-se que 15% a 30% de todos os casos de infertilidade masculina sejam resultado de distúrbios na componente genética.
Neste âmbito, o Instituto de Histologia e Biologia do Desenvolvimento da Faculdade de Medicina da Universidade de Lisboa (FMUL) e o Instituto de Medicina Molecular (IMM) têm estabelecido parcerias com a Unidade Pluridisciplinar de Reprodução Humana do Hospital de Santa Maria (HSM) e com o Instituto Nacional de Saúde Dr. Ricardo Jorge, com o intuito de desenvolver novas abordagens experimentais no campo da genética da infertilidade masculina. Estas parcerias têm-se revelado profícuas e permitiram a identificação de novos factores necessários à correcta modulação do potencial fértil masculino. Mais especificamente, os estudos desenvolvidos centraram-se na caracterização molecular de um dos domínios genómicos que controlam a espermatogénese: a região AZFc (do inglês AZoospermia Factor c) do cromossoma Y.
Conforme representado na figura, AZFc localiza-se no braço longo do Y e contém um total de quatro famílias génicas (PRY, BPY2, DAZ e CDY1), que controlam diversas funções do processo de formação do gâmeta masculino. Como consequência da sua organização maioritariamente baseada em blocos de DNA repetitivo, AZFc é também um dos domínios mais instáveis do genoma humano, conforme atestado pela sua elevada variabilidade estrutural na população masculina. Tal instabilidade reflecte-se na existência de múltiplos produtos de recombinação ilegítima de AZFc, podendo alguns deles representar factores de risco para o sucesso da espermatogénese. Esse é o caso de deleções completas ou parciais de AZFc, as primeiras correspondendo a uma das mais frequentes causas genéticas de infertilidade masculina. No entanto, as deleções parciais em AZFc, além de serem extremamente comuns, estão associadas a uma considerável diversidade fenotípica, facto que tem sido amplamente debatido no âmbito das suas implicações clínicas. Na verdade, estas deleções parciais já foram detectadas num leque diversificado de perfis espermatogénicos que variam da normal produção de espermatozóides até à completa ausência de gâmetas no ejaculado. Esta variabilidade reflecte-se igualmente a nível do resultado final dos diversos screenings populacionais realizados, já que estes são inconclusivos quanto à existência ou não de uma associação entre deleções parciais em AZFc e uma propensão para anomalias na espermatogénese.
Neste contexto, a actividade científica desenvolvida na FMUL foi determinante para o esclarecimento das consequências funcionais do mais frequente padrão de deleção parcial de AZFc (deleção gr/gr). De facto, foi desenvolvido, em parceria com as Instituições atrás citadas, um extenso programa de screening para deleções parciais de AZFc na população Portuguesa, complementado com uma reavaliação crítica e pormenorizada de ensaios realizados noutras partes do globo. Esta abordagem permitiu concluir que o risco de infertilidade masculina associado a deleção gr/gr depende das linhagens evolutivas do cromossoma Y presentes na população. Por outras palavras, dependendo do haplogrupo, ou seja, do “tipo evolutivo” do cromossoma Y que é herdado do progenitor masculino, a deleção pode ou não representar um risco de infertilidade. No caso da população Portuguesa, os haplogrupos do cromossoma Y mais prevalentes no nosso património genético estão de facto associados a esse risco, reflectindo-se num odds ratio de 5.6 (IC 95%: 1.6–30.1) de um homem possuir uma deleção parcial em AZFc e ser infértil. Estas observações, publicadas nas revistas científicas BMC Genomics (em 2007) e Human Reproduction Update (em 2010), permitiram esclarecer um dos aspectos mais controversos da genética da reprodução, assim como unificar um conjunto de estudos epidemiológicos anteriormente tidos como discordantes. Adicionalmente, os resultados revelam a importância do papel desempenhado pelos factores moduladores da informação genética (neste caso o haplogrupo do cromossoma Y) para a determinação do fenótipo, em casos em que existam alterações genéticas que predisponham à infertilidade.
Será exactamente nesta área, nomeadamente na identificação e gestão de factores moduladores de risco genético, que se esperam grandes avanços na investigação biomédica da infertilidade. Tais avanços permitirão uma progressiva personalização das terapêuticas oferecidas a casais inférteis, de acordo não só com a sua constituição genética, como também com os factores moduladores da expressão dessa informação a que foram expostos (a epigenética). Ambas as componentes serão certamente o motor para uma substancial melhoria das opções clínicas oferecidas a estes casais. É exactamente neste contexto de grandes expectativas e de ainda maiores responsabilidades e desafios, que a pesquisa desenvolvida na Unidade de Biologia da Reprodução do Instituto de Histologia e Biologia do Desenvolvimento da FMUL se insere.
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A- Esquema do cromossoma Y, com os três domínios de regulação da espermatogénese (AZFa, AZFb e AZFc) indicados. A eucromatina está representada a azul e a heterocromatina a cinzento.
B- Arquitectura genómica da região AZFc. As setas coloridas indicam blocos de DNA repetitivo.
C- Conteúdo genético da região AZFc. Triângulos pretos representam cópias activas e triângulos brancos pseudogenes. Figura retirada de Navarro-Costa et al., Human Reproduction Update, 2010.
Paulo Navarro-Costa
Instituto de Histologia e Biologia do Desenvolvimento,
Faculdade de Medicina da Universidade de Lisboa
navarro-costa@fm.ul.pt
