- Roteiro de um Internamento


Queremos que conheçam a Margarida Leal. Formada em Comunicação Social, chegou a trabalhar com a equipa de Comunicação da Faculdade. Meio ano de convivência conjunta e descobrimos que com a Margarida viria também a história da Inês.
É sobre a Inês que falamos hoje. História essa contada através de um duro e belíssimo roteiro de uma mãe que aguarda horas por notícias da cirurgia da filha.
Cirurgia delicada à coluna da menina de 16 anos com paralisia cerebral a 95%, a Inês passaria pelas mãos de Pedro Fernandes o nosso Professor e Coordenador da Unidade de Cirurgia da Coluna do Serviço de Ortopedia e Traumatologia do Hospital de Santa Maria. Depois de uma consulta de preparação para a cirurgia, com prognóstico reservado, a chegada ao bloco e o pós-operatório eram momentos aguardados com ansiedade mal disfarçada. Um flash de tempo que fez ruído, foi o que se sentiu enquanto se aguardou pela notícia à saída do bloco. A mesma sensação para a primeira noite nos Cuidados Intensivos Pediátricos. Na antevisão da entrada da Inês, ficava claro que em diferentes áreas de um Hospital que é gigante em espaço, há igual dimensão em profissionais que se entregam com tudo. Graças à Inês, visitámos a UCI Pediátrica e pudemos conhecer a Diretora da Unidade e nossa Professora, Marisa Vieira. Assistimos ainda à minúcia da vigilância e dos cuidados, numa sala de vidro que tem vista permanente para as crianças internadas, como se de uma torre de controlo se tratasse.
Sobre a Inês viriam as primeiras mensagens de um pé de fora da cama e de uma massagem suave. Um dia depois a Inês subiria ao 8º piso à área de Internamento Pediátrico e assim assistiríamos a uma troca permanente de vídeos a disputar pela careta mais divertida. Ao longo das diversas interações fomos percebendo a importância da gratidão e agradecendo o privilégio de estar num Campus que abraça em si o que de melhor se faz pela Saúde das pessoas que estão neste país.
Esta é a mãe Margarida que viveu durante uma semana neste Hospital, com a sua Inês.


Cinco horas de olhos postos na porta dupla do bloco cirúrgico. Com um livro para me distrair, que acabou por ficar abandonado na cadeira do lado. E o teu robe. O teu robe e o teu cheiro a consolar esta mãe leoa, a sentir-se cercada pelo medo.
Estás ali, despida numa sala gelada, com uma onda de gente sobre ti, para uma cirurgia complexa de correção de uma escoliose. Demorou dois anos a acontecer. Não havia sistema privado que assumisse o teu desafio. Mas queria-te com os melhores e aqui a equipa tinha o “selo” de qualidade que os pais tanto procuram. O teu médico é também Professor na Faculdade de Medicina. Sabias minha menina?
Na minha cabeça há o som dos berbequins, o frio metálico dos bisturis, das placas e dos parafusos que farão parte de ti, mas que para mim são ainda uma agressão ao teu corpo frágil. Não posso pensar. Volto a procurar outro foco de atenção.
Agarro-me ao movimento dos profissionais que aqui chegam ao 8.º piso do Hospital de Santa Maria. São médicos, enfermeiros, auxiliares, que no decorrer do seu dia de trabalho, acabam por tocar nas nossas vidas. Mesmo que não deem bem conta. A Sandra, administrativa, com a sua velocidade e capacidade de resolver problemas, não pára na cadeira e mal tem tempo de almoçar. Os médicos chamam por ela, os enfermeiros pedem-lhe mais qualquer coisa e os pais estão sempre e meter a cabeça dentro da sua sala. E ela, expedita, de ténis calçados, parece abraçar o desafio com a energia de quem mergulhou numa porção mágica. Sem se aperceber, fez-me companhia, deu-me segurança. A mim e à avó da Vitória, que também espera por notícias à porta do bloco. Encostada a ela, a dormitar, a mãe da bebé, provavelmente menor.
Disparam perguntas na minha cabeça. Quanto custa ao Estado a operação da minha Inês ou da pequenina Vitória, operada mais do que uma vez à cabeça? Os honorários médicos e da restante equipa que mantém em funcionamento um dos blocos operatórios do maior hospital do país, o material gasto durante e após cada cirurgia, qual será o bolo total? E como é que alguém como a Vitória, nascida numa família aparentemente carenciada, poderia ser operada sem vivermos num Estado Social? Como é que alguém se atreve a não o defender com unhas e dentes, agarrados a clichés e alvos fáceis. Como não perceber a beleza de um sistema em que todos contribuímos para que todos possam ter acesso a um direito universal, a Saúde?
A cirurgiã, que também é Professora e investigadora neste Centro Hospitalar, vem dar notícias. São boas e eu festejo em silêncio, emocionada, a vitória da Vitória. A minha espera continua. Enquanto as portas do bloco não se abrem para te trazer de volta, vou até ao quarto onde te deixei. Está cheio de pinturas e frases mágicas. Mergulho no azul fundo do mar, deixo-me levar por nemos, tartarugas, caranguejos, que prometem tornar o Hospital menos ameaçador para os mais novos. Mas não poderia eu acompanhar-te até que a medicação te deixasse mais longe da realidade? As regras dizem que não, mas tu és especial. Como poderias tu explicar-te, se não tens linguagem verbal? Como te sentiste sem a mãe tradutora ao pé, perante caras que nunca tinhas visto, consciente de ti e das tuas limitações, numa situação ameaçadora como esta?
Vou anotando tudo o que acontece num bloco que o Miguel e a Sandrinha me deram quando tu nasceste. As nuvens mais escuras trazem sempre as águas mais límpidas, escreveram, citando um provérbio chinês. E assim foi. És a mais pura das águas, o mais puro dos amores. Contigo nascemos há 16 anos, tendo de revelar o melhor de nós. De mim fizeste uma mulher mais resiliente, consciente e corajosa. E eu devo-te muitas palavras, a verdade. Deixei de escrever anos a fio. Tenho medo que leias e percebas a devastação que começou por ser a tua vinda. Mas tu és amor, não separação. E eu ainda estou à procura da forma de contar a nossa história.
As portas abriram, as portas abriram, diz-me o coração que és tu. Levanto-me, espero o momento em que a cama dá a curva. És tu, apesar de ainda ausente. Pergunto se te posso tocar. A enfermeira, talvez por consolo, diz-me. Ela já perguntou pela mãe! Sei que não o poderias ter feito, ou melhor, sei que ela não te poderia ter entendido. Mas o gesto foi precioso e eu retribuí com um sorriso sincero.
Beijo-te a testa e sussurro. A mãe está aqui. Voz assustadoramente calma, porque esta é a minha verdade. Posso estar devastada pelo medo, mas eu fico, seja qual for a realidade, seja qual for o desafio. Sou feita de amor e foste tu quem me teceu com esta fibra inquebrável. Eu fico.
Não sei o que me espera nos próximos dias. Vais passar o primeiro na Unidade de Cuidados Intensivos Pediátricos. Eu lá estarei com o Miguel, que não nos larga a mão. Isto também foste tu que fizeste. Obrigada por me mostrares o caminho para ser feliz.
Por Margarida Leal




Joana Sousa
Equipa Editorial
