Reportagem / Perfil
Sobre livros e medicina ao longo dos últimos cem anos: uma reflexão breve e genérica
A época em que vivemos assiste ao desenvolvimento, a um ritmo assaz vertiginoso, das novas tecnologias de informação e comunicação, de um modo que está a transformar substancialmente, não apenas os tradicionais paradigmas de acesso à informação e os meios e formas de comunicação, como também os nossos próprios hábitos de vida e a própria organização do pensamento.
Tão marcante tem sido este desenvolvimento no nosso trabalho e na nossa vida que acabamos por menosprezar e esquecer etapas anteriores, tornando-se necessário lembrá-las sob formas que podem, por vezes, semelhar o saudosismo ou soar a velharia. E para estas, é sabido, não temos tempo.
Num ano como o que corre será contudo difícil, mesmo para os mais desmemoriados, escapar ao afã comemorativo. Assinala-se o centenário da República e, no nosso âmbito mais restrito, transcorre um século, não da fundação da universidade portuguesa que na verdade remonta ao século XIII, mas das importantes reformas do ensino que a República trouxe e que englobaram também a universidade.
Justamente, esta breve reflexão sobre o tema proposto em epígrafe transporta-nos até aos alvores da 1ª República Portuguesa, a respeito da qual afirmou um conhecido historiador ter sido não um regime mas “um estado de coisas”. Este «estado de coisas» trazia consigo os ideais que haviam inspirado, mais de um século antes, a Revolução Francesa. Liberdade, Igualdade, Fraternidade, também no acesso, que se pretendia livre e gratuito, ao ensino e à cultura, não mais privilégio de elites.
Ora o livro é, por excelência, o objecto que associamos livremente à cultura, embora esta, no sentido lato do termo, não se esgote na sua vertente científica e literária. Embora não sejamos normalmente propensos a reparar no que está sempre presente e perto de nós, não faltam motivos para reflectir sobre o papel do livro e, de forma mais abrangente, o que poderíamos chamar o objecto impresso: livros, mas também a imprensa escrita e não só. Se o livro representou a possibilidade de armazenar conhecimento de forma «perene», o livro impresso, surgido em finais do século XV, deu um tremendo impulso à ciência, incluindo a medicina, e à divulgação do conhecimento científico.
A imprensa e, em particular, os periódicos científicos estiveram sempre, ao longo do último século, associados à divulgação científica; são parte integrante e de importância maior do meio científico. Possibilitam a partilha de experiências e a constante actualização. De tal forma isto é assim, que impõem aos membros desta comunidade a urgência de publicar para garantir qualquer espécie de reconhecimento: publish or perish, diz-se. Egas Moniz publicou em vida mais de 300 trabalhos científicos. Se, como diz o aforismo hipocrático, a vida é breve, a verdade é que os livros podem sempre sobreviver aos seus autores. Não admira que estes dediquem tanta atenção à publicação.
Há cem anos atrás o livro era ainda um objecto de uso um tanto elitista. Não apenas a sua posse, mas o próprio uso, já que a maioria da população permanecia analfabeta e afastada do ensino por imperativos vários, políticos, económicos, sociais, de mentalidades.
Hoje o livro está amplamente presente nas nossas casas; embora, como lembram os estudiosos do assunto, possuí-lo não signifique lê-lo. Na época a que nos reportamos, o livro estaria, para muitos, disponível apenas nas bibliotecas, ontem, como hoje, local de estudo e reflexão. Com os alunos permaneciam sobretudo a cópia manuscrita das aulas dos mestres, as sebentas, mais tarde os livros únicos; mutatis mutandis, alguns aspectos desta realidade pouco mudaram em decénios; a leitura não dispensa a presença nas aulas, o contacto e as lições dos mestres. No caso da medicina acrescente-se a prática clínica. Mas o objecto impresso, esse, vulgarizou-se. A sua posse, o seu usufruto, a sua difusão - também sob essa outra forma, a respeito da qual se falou já em «cultura da fotocópia», que uma cultura do digital ou do download teria substituído, aparentemente com imensa vantagem: capacidade de armazenamento, portabilidade, actualização.
E que dizer do papel do livro hoje, particularmente no contexto da medicina? Não é paradoxal que a evolução a que nos referimos no princípio seja acompanhada de interrogações, hesitações e preocupações por parte não apenas dos mais cépticos mas também do estudante que inicia agora o seu percurso na universidade. Nas suas actividades, os estudantes, como os professores ou investigadores utilizam, em complementaridade, papel e recursos electrónicos (PDAs, portáteis, os artigos em formato electrónico, livros electrónicos, etc.).
A medicina teve também o seu papel, ao lado de outras ciências, na evolução do livro, em particular o livro científico, nomeadamente com o desenvolvimento das técnicas de ilustração científica. Hoje, para dar apenas um exemplo, os atlas electrónicos de anatomia revelam actualmente excepcional qualidade e são muito usados pelos estudantes de medicina.
O digital vai ganhando terreno. Hoje, a grande maioria das bibliotecas investe mais dinheiro nos recursos digitais que no catálogo. Um número de editores cada vez maior disponibiliza os seus recursos em livre acesso. Poderá ser este o futuro, a disponibilização livre e gratuita de autênticas galáxias de informação em repositórios digitais, de que é exemplo entre nós o RCAAP - Repositório Científico de Acesso Aberto de Portugal.
Mas é de crer que as bibliotecas se manterão, mesmo que a designação mude, acompanhando a mudança de práticas. Aliás, os norte-americanos, que se interessam particularmente por futurologia, apontam a ciência da informação como uma das áreas com futuro assegurado, ao lado, por exemplo, da geriatria, para darmos um exemplo de entre as ciências médicas.
Claro que não há bibliotecas sem recursos. Em tempo de crise, há quem comece justamente a cortar nos gastos neste departamento. Mas que será da investigação se esta área estiver desprovida de recursos? Não existiu nunca entre nós a tradição, como nos já referidos EUA, de serem os próprios quadros directivos, docentes e autores a chamar a si o investimento, a título particular e muitas vezes multi-milionário, no catálogo da biblioteca da sua instituição. De resto estamos em crer que não seria um bom substituto ao necessário investimento por parte do Estado, que entretanto abandonou as universidades aos seus parcos recursos.
Passe o lugar comum, só a congregação de esforços, dentro da instituição e para além dela, poderá assegurar um futuro melhor para as próximas gerações, o qual passa necessariamente por compreender as várias etapas do percurso que nos conduziu até aqui.
Ilustrações:
p. 1: Edifício da actual Faculdade de Ciências médicas da Universidade Nova de Lisboa; construído de raiz para a Faculdade de Medicina da Universidade de Lisboa, acolheu o XV Congresso Internacional de Medicina de Lisboa, 1906.
p. 2: Inauguração oficial do XV Congresso Internacional de Medicina de Lisboa em 1906 na Sociedade de Geografia de Lisboa.
p. 3: Página de título da obra Encheiridium anatomicum et pathologicum : in quo, ex naturali constitutione partium, recessus a naturali statu demonstratur / Joanne Riolano Filio. - Lugduni Batauorum : Ex Officinis Adriani Wyngaerden, Habitantis e Regione Academiae, 1649
André Rodrigues
Biblioteca-CDI / Núcleo de Preservação e Conservação
andresilva@fm.ul.pt
Tão marcante tem sido este desenvolvimento no nosso trabalho e na nossa vida que acabamos por menosprezar e esquecer etapas anteriores, tornando-se necessário lembrá-las sob formas que podem, por vezes, semelhar o saudosismo ou soar a velharia. E para estas, é sabido, não temos tempo.
Num ano como o que corre será contudo difícil, mesmo para os mais desmemoriados, escapar ao afã comemorativo. Assinala-se o centenário da República e, no nosso âmbito mais restrito, transcorre um século, não da fundação da universidade portuguesa que na verdade remonta ao século XIII, mas das importantes reformas do ensino que a República trouxe e que englobaram também a universidade.
Justamente, esta breve reflexão sobre o tema proposto em epígrafe transporta-nos até aos alvores da 1ª República Portuguesa, a respeito da qual afirmou um conhecido historiador ter sido não um regime mas “um estado de coisas”. Este «estado de coisas» trazia consigo os ideais que haviam inspirado, mais de um século antes, a Revolução Francesa. Liberdade, Igualdade, Fraternidade, também no acesso, que se pretendia livre e gratuito, ao ensino e à cultura, não mais privilégio de elites.
Ora o livro é, por excelência, o objecto que associamos livremente à cultura, embora esta, no sentido lato do termo, não se esgote na sua vertente científica e literária. Embora não sejamos normalmente propensos a reparar no que está sempre presente e perto de nós, não faltam motivos para reflectir sobre o papel do livro e, de forma mais abrangente, o que poderíamos chamar o objecto impresso: livros, mas também a imprensa escrita e não só. Se o livro representou a possibilidade de armazenar conhecimento de forma «perene», o livro impresso, surgido em finais do século XV, deu um tremendo impulso à ciência, incluindo a medicina, e à divulgação do conhecimento científico.
A imprensa e, em particular, os periódicos científicos estiveram sempre, ao longo do último século, associados à divulgação científica; são parte integrante e de importância maior do meio científico. Possibilitam a partilha de experiências e a constante actualização. De tal forma isto é assim, que impõem aos membros desta comunidade a urgência de publicar para garantir qualquer espécie de reconhecimento: publish or perish, diz-se. Egas Moniz publicou em vida mais de 300 trabalhos científicos. Se, como diz o aforismo hipocrático, a vida é breve, a verdade é que os livros podem sempre sobreviver aos seus autores. Não admira que estes dediquem tanta atenção à publicação.
Há cem anos atrás o livro era ainda um objecto de uso um tanto elitista. Não apenas a sua posse, mas o próprio uso, já que a maioria da população permanecia analfabeta e afastada do ensino por imperativos vários, políticos, económicos, sociais, de mentalidades.
Hoje o livro está amplamente presente nas nossas casas; embora, como lembram os estudiosos do assunto, possuí-lo não signifique lê-lo. Na época a que nos reportamos, o livro estaria, para muitos, disponível apenas nas bibliotecas, ontem, como hoje, local de estudo e reflexão. Com os alunos permaneciam sobretudo a cópia manuscrita das aulas dos mestres, as sebentas, mais tarde os livros únicos; mutatis mutandis, alguns aspectos desta realidade pouco mudaram em decénios; a leitura não dispensa a presença nas aulas, o contacto e as lições dos mestres. No caso da medicina acrescente-se a prática clínica. Mas o objecto impresso, esse, vulgarizou-se. A sua posse, o seu usufruto, a sua difusão - também sob essa outra forma, a respeito da qual se falou já em «cultura da fotocópia», que uma cultura do digital ou do download teria substituído, aparentemente com imensa vantagem: capacidade de armazenamento, portabilidade, actualização.
E que dizer do papel do livro hoje, particularmente no contexto da medicina? Não é paradoxal que a evolução a que nos referimos no princípio seja acompanhada de interrogações, hesitações e preocupações por parte não apenas dos mais cépticos mas também do estudante que inicia agora o seu percurso na universidade. Nas suas actividades, os estudantes, como os professores ou investigadores utilizam, em complementaridade, papel e recursos electrónicos (PDAs, portáteis, os artigos em formato electrónico, livros electrónicos, etc.).
A medicina teve também o seu papel, ao lado de outras ciências, na evolução do livro, em particular o livro científico, nomeadamente com o desenvolvimento das técnicas de ilustração científica. Hoje, para dar apenas um exemplo, os atlas electrónicos de anatomia revelam actualmente excepcional qualidade e são muito usados pelos estudantes de medicina.
O digital vai ganhando terreno. Hoje, a grande maioria das bibliotecas investe mais dinheiro nos recursos digitais que no catálogo. Um número de editores cada vez maior disponibiliza os seus recursos em livre acesso. Poderá ser este o futuro, a disponibilização livre e gratuita de autênticas galáxias de informação em repositórios digitais, de que é exemplo entre nós o RCAAP - Repositório Científico de Acesso Aberto de Portugal.
Mas é de crer que as bibliotecas se manterão, mesmo que a designação mude, acompanhando a mudança de práticas. Aliás, os norte-americanos, que se interessam particularmente por futurologia, apontam a ciência da informação como uma das áreas com futuro assegurado, ao lado, por exemplo, da geriatria, para darmos um exemplo de entre as ciências médicas.
Claro que não há bibliotecas sem recursos. Em tempo de crise, há quem comece justamente a cortar nos gastos neste departamento. Mas que será da investigação se esta área estiver desprovida de recursos? Não existiu nunca entre nós a tradição, como nos já referidos EUA, de serem os próprios quadros directivos, docentes e autores a chamar a si o investimento, a título particular e muitas vezes multi-milionário, no catálogo da biblioteca da sua instituição. De resto estamos em crer que não seria um bom substituto ao necessário investimento por parte do Estado, que entretanto abandonou as universidades aos seus parcos recursos.
Passe o lugar comum, só a congregação de esforços, dentro da instituição e para além dela, poderá assegurar um futuro melhor para as próximas gerações, o qual passa necessariamente por compreender as várias etapas do percurso que nos conduziu até aqui.
Ilustrações:
p. 1: Edifício da actual Faculdade de Ciências médicas da Universidade Nova de Lisboa; construído de raiz para a Faculdade de Medicina da Universidade de Lisboa, acolheu o XV Congresso Internacional de Medicina de Lisboa, 1906.
p. 2: Inauguração oficial do XV Congresso Internacional de Medicina de Lisboa em 1906 na Sociedade de Geografia de Lisboa.
p. 3: Página de título da obra Encheiridium anatomicum et pathologicum : in quo, ex naturali constitutione partium, recessus a naturali statu demonstratur / Joanne Riolano Filio. - Lugduni Batauorum : Ex Officinis Adriani Wyngaerden, Habitantis e Regione Academiae, 1649
André Rodrigues
Biblioteca-CDI / Núcleo de Preservação e Conservação
andresilva@fm.ul.pt