Momentos
O Professor Francisco Pulido Valente – A Perspectiva Médica
Senhor Presidente da Fundação Pulido Valente
Senhor Presidente do Conselho de Administração do CHLN
Familiares do Prof. Pulido Valente e Senhores Convidados
Minhas Senhoras e Meus Senhores,
Quero agradecer ao Prof. João Monjardino, à Direcção da Fundação Pulido Valente e ao Presidente do Conselho de Administração do CHLN o amável convite para participar neste acto de homenagem ao Professor Pulido Valente, uma das figuras maiores da Medicina Portuguesa no século XX.
Alguém escreveu que “o Passado é um outro País” e que para o visitar precisa-se de piloto hábil e conhecedor. Confesso a dificuldade da missão. Socorri-me das memórias de familiares, que foram alunos ou doentes do Prof. Pulido Valente, e dos testemunhos notáveis com que os seus discípulos e familiares enalteceram o significado da Personalidade e da Obra de Pulido Valente na Medicina Portuguesa.
Com tão ilustres convidados que se debruçarão sobre outras dimensões da sua Personalidade e Obra permitam-me que me limite à obra médica de Pulido Valente que permaneceu e resistiu ao Tempo e à ignomínia do sectarismo político ditatorial que cerceou a continuidade da sua acção académica e hospitalar.
Pulido Valente foi a figura marcante da Medicina Interna do século XX português, a sua influência foi incomparável sobre gerações sucessivas de médicos; é, por isso, uma referência, um pilar da Faculdade de Medicina.
A sua dimensão é multifacetada e daí a dificuldade da missão. Homem Invulgar dotado duma Personalidade única e marcante, de grande coerência intelectual e cívica, foi em Portugal, e nesse tempo, o Médico Cientista que tendo-se formado na vivência experimental do Laboratório, protagonizou a grande metamorfose da Medicina Clínica em Portugal, fazendo-a evoluir, como anotou Diogo Furtado, de uma Arte baseada na observação, para uma verdadeira ciência, na procura permanente da compreensão experimental dos fenómenos patológicos. Por isso, foi Mestre Incontestado, exigente, intolerante perante a ignorância e a incompetência, suscitou essa sedução intelectual de que fala Steiner, que é misto de admiração e temor.
Juvenal Esteves sintetizou estes sentimentos numa expressão lapidar “O nome de Pulido Valente, quando pronunciado no tempo da sua liderança, ressoava sempre a contundência”.
Foi Fundador e Chefe de uma Escola de Pensamento e Acção Médica, e enquanto Académico e Médico foi Espectador Comprometido e Cidadão Actuante na defesa dos valores essenciais da Liberdade e da Democracia.
Nasceu em 25 de Dezembro de 1884, em Lisboa, mas as suas origens familiares provinham do Sul, do Alentejo e da raia espanhola, sem raízes directas na Medicina, com excepção dum tio, o Dr. Francisco Martins Pulido que se distinguiu como médico e no Hospital de Rilhafoles.
(Slides Bibliografia I, Bibliografia II)
Fez toda a sua formação na Escola Médico-Cirúrgica de Lisboa, fundada por D. João VI após o regresso do Brasil e terminou o curso em 1909 com a classificação de 19 valores. Foi líder estudantil activo da revolta académica de 1907 contra o governo ditatorial de João Franco e defensor empenhado da República recém-implantada. A sua tese final foi sobre Histeria, um tema polémico na época, e revelou desde então características marcantes da sua Personalidade, como referiu Diogo Furtado: rigor e exigência intelectual invulgares, cultura científica e sentido crítico, recusando identificações apriorísticas com concepções sobre os fundamentos anatómicos da Histeria, em voga na filosofia positivista e materialista que tanto o atraía. Demonstrou independência intelectual.
Todo o seu percurso escolar foi notável e distinguiu-o: foram vários os Prémios Académicos e “Acessits”, prova e reconhecimento de mérito.
Em 1911 foi médico efectivo, por concurso, da Junta Consultiva dos Hospitais Civis de Lisboa e, em Janeiro de 1912, nomeado primeiro-assistente provisório, na cadeira de Psiquiatria sob a direcção de Júlio de Matos, período que teve influência decisiva no desenvolvimento futuro das competências e do modo clínico de Pulido Valente.
A outra influência decisiva que ressalta no seu percurso biográfico foi a de Aníbal Bettencourt, que lhe proporcionou a dimensão experimental e a competência laboratorial, fundamentais na elaboração da Medicina Científica, da qual seria pioneiro e Mestre. Com efeito, de Agosto de 1914 a Julho de 1917 Pulido Valente frequentou o laboratório do Instituto Câmara Pestana, sob a orientação de Aníbal Bettencourt, iniciador da Medicina Experimental em Portugal e que, na senda de Câmara Pestana, transformara o Instituto Bacteriológico em pólo de atracção para novos talentos e centro de irradiação duma visão moderna da Medicina.
Num texto de homenagem a Aníbal Bettencourt, Pulido Valente refere a importância da experimentação na Educação Médica e o impacto desse período na sua própria formação. Menciona o papel de Bettencourt na abertura de novos horizontes científicos, para alem da tradicional influência francesa e afirma: "não há clínico competente sem uma forte preparação laboratorial porque no diagnóstico, os elementos laboratoriais e clínicos estão num jogo constante...solicitam-se, esclarecem-se e corrigem-se mutuamente".
Foi no Instituto Bacteriológico que o espírito inquieto e insatisfeito de Pulido Valente se acolheu, como investigador voluntário, dando início a um período notavelmente produtivo sob o ponto de vista científico. Com efeito, materializou um conjunto de investigações sobre uma doença comum – a Sífilis - uma decisão coerente com a sua visão pragmática e utilitária da investigação, a qual devia concentrar-se na procura de solução efectiva para problemas clínicos relevantes.
A Sífilis foi o modelo experimental que lhe permitiu novos horizontes sobre a investigação patológica, sobre os mecanismos da doença e da reacção biológica do doente, tendo sempre como objectivo final o tratamento do flagelo social que era, na época, a Paralisia Geral.
São desse período três monografias importantes, sobre o modelo experimental da doença induzida no coelho, sobre a infecção precoce e os mecanismos da sua progressão para o encéfalo e sobre a etiopatogenia da Paralisia Geral e que foram tema da lição de concurso para catedrático. Algumas das suas observações representaram um avanço científico na época, nomeadamente a demonstração da presença do agente infectante no córtex de 70% dos doentes observados, um dado novo na literatura científica do tempo, bem como o mecanismo de contaminação precoce do líquido céfalo-raquidiano, logo após o contacto com o agente infectante.
Este período de investigação clínica inovadora foi muito importante e produtivo e foi expressão da influência da Medicina Germânica cujo paradigma seria inspiração para a sua acção futura como líder clínico e professor.
Simultaneamente, a partir de 1915 inicia colaboração como assistente Livre na 1ª Clínica Cirúrgica sob a direcção de Francisco Gentil, onde se familiariza com a investigação patológica através do estudo das peças operatórias e colabora no acompanhamento médico dos doentes cirúrgicos.
Terá sido uma colaboração frutuosa. Diogo Furtado e Jaime Celestino da Costa concorrem na interpretação que Francisco Gentil reconheceu em Pulido Valente as qualidades que o fariam mentor das novas gerações e a competência médica indispensável. Para Pulido Valente a experiência anátomo-patológica adquirida num grande serviço de Cirurgia foi importante, marcou a etapa derradeira da sua formação no percurso para a posição cimeira na hierarquia universitária e suscitou a importância da colaboração médico-cirúrgica, das suas vantagens para o ensino e para o tratamento dos doentes, como claramente enunciou mais tarde: “a Prática tem demonstrado que o ensino é gravemente prejudicado pela falta de ligação entre os serviços médicos e cirúrgicos” tendo proposto soluções práticas para reforçar essa cooperação médico-cirúrgica.
Este desideratum, na vida hospitalar pública, só viria a ser conseguido nos últimos anos de actividade, quando Reynaldo dos Santos foi ocupar a cátedra e direcção da Clínica Cirúrgica no Hospital de Santa Marta, em 1941. Jaime Celestino da Costa refere esse período de curta duração, contemporâneo de Wolwhill como um triângulo educativo perfeito: a Medicina com Pulido, a Cirurgia com Reynaldo e Anatomia Patológica com Wolwhill.
Todo este período, que foi de consolidação da formação e de produtividade científica, seria interrompido pela sua mobilização no Corpo Expedicionário na I Guerra.
Em França é colocado, primeiro no Hospital de Sangue de Merville, depois em Hendaya e por fim no Hospital da base nº 2, ocupando sempre posições de chefia dos serviços.
A experiência da medicina de guerra iria suscitar-lhe critica certeira à estrutura do ensino médico em Portugal como veremos, faceta habitualmente menos referida na sua biografia, mas que Miguel Carneiro de Moura analisou em conferencia proferida em 1993 numa sessão de atribuição do Prémio Pulido Valente.
Regressado a Portugal em 1919, retoma a carreira universitária e, em Setembro desse ano, obtém por concurso o lugar de Assistente da 1ª Clínica Médica, classificado com 20 valores e no qual obtém o primeiro lugar, e em Dezembro é encarregado da regência do Curso de Patologia Médica.
Em Fevereiro de 1921 concorreu sozinho ao lugar de professor Catedrático de Patologia e Terapêutica Médica tendo sido aprovado.
A organização do ensino médico, a selecção e preparação dos Assistentes e o desenvolvimento dos serviços clínicos, pugnando pela incorporação de sectores de diagnóstico laboratorial indispensáveis para a investigação dos doentes passam a ser a sua prioridade e irão marcar definitivamente a sua acção futura. Fá-lo-á, em detrimento da investigação científica inovadora que conduzira durante o seu período de trabalho no Instituto Câmara Pestana.
O paradigma que o influencia é o da Clínica Universitária da Medicina germânica, onde convergiam a investigação laboratorial como instrumento indispensável a uma medicina de base científica e a prática médica de excelência e inovadora. Por esta razão, insistiu na discussão dos planos do novo Hospital Escolar, que as Clínicas deveriam ter laboratórios independentes.
De facto, nessa época, início dos anos 20, é Pulido Valente que assume e protagoniza a renovação do ensino médico, transpondo para a Clínica o espírito renovador que marcara as ciências básicas. É um inconformista e a sua determinação é notável.
No relatório para a direcção da Faculdade sobre as suas actividades na regência da Patologia Médica aponta novos caminhos indispensáveis a esta estratégia renovadora.
Assinala as deficiências estruturais, a escassez de meios, as péssimas condições das enfermarias e a ausência de laboratório funcionante.
Clarifica a sua estratégia de ensino dizendo que as matérias versadas foram sempre que possível demonstradas em doentes, peças macroscópicas e preparações histológicas.
Esta visão aproximava-o de Sir William Osler, que não é referido na obra de Pulido Valente, talvez pela influência germânica dominante, e que afirmara que “só se deve ensinar com o doente, ele é o compêndio” .
Defende a unidade fundamental do curso quando afirma não perder uma única ocasião para acentuar a importância das cadeiras do 1º ciclo e a necessidade de os alunos recordarem as respectivas matérias. Todo o ensino deveria ser orientado para Clínica, porque essa é que deveria ser a missão principal da escola Médica.
Resume a sua filosofia pedagógica duma forma exemplar “fazer anatomia, histologia, imunidade, bacteriologia à cabeceira do doente, com simplicidade e sentido prático.
O Professor, acrescentava, não é mais que um guia; a verdadeira e profícua aprendizagem só pode ser feita pelo aluno em contacto com o doente”.
Apesar do atraso endémico da cultura portuguesa poderá afirmar-se que acompanhava a dinâmica renovadora
Que a partir da Johns Hopkins em Baltimore, iniciou a revolução no ensino da Medicina Científica e que marcou as primeiras décadas do século XX.
"Só o conhecimento que os alunos adquirem pela experiência laboratorial é real e autêntico"
W. Welch, 1878
“ ...e o estudante já não se limita a observar, escutar ou memorizar: faz! As suas actividades no laboratório e na Clínica são os factores principais para a sua instrução e disciplina” A. Flexner, 1912
Neste Relatório Pulido Valente é profundamente critico da metodologia de ensino seguida após a Reforma de 1911.
Esta Reforma de 1911, cujos precursores e alguns protagonistas foram retratados por Columbano, cujas telas decoram hoje a sala do Conselho e o gabinete da Direcção da faculdade, marcou uma evolução irreversível na Medicina Portuguesa através de uma politica meritocrática para a renovação dos quadros docentes, a criação de Institutos autónomos para as Ciências Básicas dirigidos por personalidades notáveis com formação científica adquirida na Europa.
![](http://news.medicina.ulisboa.pt/wp-content/uploads/2010/04/Slide11.JPG)
![](http://news.medicina.ulisboa.pt/wp-content/uploads/2010/04/Slide12.JPG)
Preocupado com a renovação do ensino clínico e com a necessidade de meios para essa finalidade, Pulido Valente analisou o impacto da reforma no que chamou o produto final – o médico prático que sai dos bancos da Escola Médica – interrogando-se, se a formação do médico recém formado seria superior à do licenciado de há dez ou vinte anos passados da velha Escola Médico-Cirúrgica de Lisboa.
Não era uma visão saudosista nem uma crítica destrutiva ao esforço renovador e criador de Ciência que essas personalidades estimularam na direcção dos Institutos entretanto criados, e que efectivamente foram o alicerce da Medicina Científica em Portugal.
O que de facto Pulido Valente denunciou foi a translação deficiente, usando nomenclatura actual, entre essa educação científica e a realidade actuante – o médico prático.
A experiência adquirida na Guerra permitiu-lhe consciencialização da verdadeira dimensão deste problema, que não considerava exclusivamente uma deficiência portuguesa e sobre o qual escreveu “aos Estados, a Guerra terá proporcionado a oportunidade única de uma formidável e conclusiva experiência sobre a incompetência do prático ao deixar os bancos universitários”.
Verberou a “absurda hipertrofia das cadeiras básicas em detrimento do ensino clínico, como se a habilitação clínica resultasse da soma algébrica dos conhecimentos conferidos no primeiro período do curso”.
E elaborou uma das mais lúcidas descrições que conheço sobre a verdadeira essência da Educação Médica “que considerava ser uma obra de Educação e de Cultura, pois requer o desenvolvimento de qualidades psicológicas especiais, a fixação de atitudes mentais, enriquecimento progressivo da memoria sensorial com imagens da realidade a aquisição duma técnica subtil”, para referir estar-se perante uma “Aprendizagem complexa duma Arte em que entram elementos do subconsciente e intuição, que não se confunde com o conhecimento conceptual das suas bases racionais”.
Por estas razões, tenho insistido desde há anos na recepção aos caloiros, que a Medicina é uma Educação Superior que requer Cultura, e aos meus alunos de Introdução à Medicina Clínica relembro que a chamada Arte Clínica não é mais que “organização da mente, conhecimento estruturado, método e minúcia na observação e prontidão da memoria”.
Que pensaria Pulido Valente do desarmamento cultural das novas gerações, da selecção de alunos para o curso de medicina baseada na capacidade de memorização e obtenção de classificações elevadas em áreas específicas, estreitando cada vez mais os horizontes da Cultura e da formação do Espírito?
E da semana de 40h recentemente aprovada, um convite à funcionalização total da profissão, ao empobrecimento da educação médica e à perda de valores essenciais do profissionalismo médico, nomeadamente a disponibilidade e o espírito de serviço, ele que organizava as famosas conferências clínico-patológicas com Wolwhill aos Sábados, certamente uma impossibilidade nos tempos actuais?
Quantas vezes fora do horário, vivi experiências clínicas marcantes e enriqueci a minha memória sensorial com imagens irrepetíveis e que tão úteis se revelaram!
Que fazer?
Volto ao documento referido, profundamente clarificador do Pensamento do Mestre e da sua acção como líder da renovação do ensino da Medicina Clínica em Portugal.
Acrescentava a seguir “quem ler o que se escreve hoje na Europa e na América, verificará que se volta á salutar sensatez de considerar as matérias do primeiro ciclo não como ciências autónomas e especulando em Biologia, mas como meras disciplinas do curso médico-cirúrgico, existindo para as necessidades da educação e do progresso profissionais”
Alguns críticos da sua acção interpretaram estes conceitos, assim como a sua exigência de cultura científica como requisito essencial para a investigação científica séria e verdadeiramente inovadora, como uma limitação imposta a essa dimensão que é fundamental na Medicina Académica, e apanágio da nossa tríplice missão: ensinar, cuidar e investigar.
De facto, a evolução foi noutro sentido. Os Institutos de Ciência fundamental são, hoje, essenciais a uma Escola Médica moderna e dinâmica, devem ser centros de criação científica, capazes de responder às questões clínicas e disponibilizar instrumentos de interrogação da natureza, para além das “facas, garfos e colheres” de que falava o meu Mestre João Cid dos Santos.
Ensinará melhor, certamente, quem produz conhecimento e não se limita à repetição do saber alheio e a formação científica dos médicos é um requisito indispensável para a Medicina do século XXI.
A sua acção de renovação da medicina e da criação duma Escola de Pensamento Médico e Acção Clínica requeria intérpretes e Pulido Valente rodeou-se dum grupo notável de discípulos, que preparou meticulosamente enviando alguns para Centros de excelência na Alemanha para se aperfeiçoarem nas novas áreas de desenvolvimento da Medicina Interna.
Jaime Celestino da Costa refere com sagacidade: Pulido trouxe a Alemanha científica até nós!E vale a pena ler a correspondência trocada e publicada no “In Memorian” que revela o cuidado com que o Mestre acompanhava as vicissitudes dos seus colaboradores e, de longe, orientava a sua acção.
Foi por todos reconhecido como Mestre incontestado.
Tinha Autoridade, Carácter, Exigência, Competência e Visão e estes são, de facto, os atributos do Mestre.
Esta é a árvore com os seus ramos por onde irradiou a sua influência: as personalidades são conhecidas e durante uma década e meia de acção, até ao brutal e injusto afastamento imposto pelo sectarismo politico da ditadura em 1947, fecundou de forma irreversível a Medicina Clínica e académica de Lisboa.
Porventura, o seu afastamento e dos principais colaboradores terá impedido que viesse a concretizar mais publicações, como os seus contemporâneos Jimenez Diaz e Gregório Marañon, em Espanha.
Ficaram algumas separatas das suas lições de que menciono algumas e uma outra, que como especialista das doenças vasculares me intrigou.
Refere-se a uma análise de uma teoria em voga na época sobre a fisiologia da circulação; é hermética, profundamente matemática – a orientação de Bento de Jesus Caraça foi decisiva para a sua elaboração – e é bem reveladora da capacidade de Pulido Valente de aprofundar um assunto até à sua dimensão mais complexa.
Confesso a minha incapacidade em a ler, o que certamente não abonará muito a meu favor!
Diogo Furtado no ensaio publicado como homenagem nos 70 anos de Pulido Valente, referia a sua “extraordinária organização intelectual, a memoria excepcional, a capacidade de sistematização e a invocação oportuna e acrescentou “nunca encontrei ninguém que proporcionasse tal impressão de acumulação de conhecimentos e da sua pronta utilização”.
Jaime Celestino da Costa com clareza meridiana sintetizou admiravelmente “Pulido não sabia só mais, sabia melhor” e este era o fundamento da indiscutível sedução intelectual que cativou os melhores e fez uma Escola.
A colaboração com Wohlwill, um patologista alemão, judeu e fugido do nazismo, foi marcante e teve um impacto extraordinário na acção de Pulido Valente: corporizava, finalmente, a essência do método anátomo-clínico que cultivara desde os primórdios da sua formação, e tinha sido alicerce do notável desenvolvimento da Medicina germânica nas primeiras duas décadas do século XX.
A acção de Wohlwill foi decisiva para o progresso da medicina em Lisboa e da faculdade de medicina, criou uma Escola e um grupo importante de discípulos, entre eles Jorge Horta e Arsénio Nunes, e tive o privilégio de ter sido aluno dos dois.
Era a patologia travando os devaneios da clínica: modelo importado para as famosas reuniões anátomo-clínicas dos Sábados, onde a elaboração dos diagnósticos era confrontada com a realidade crua e dura da patologia e cujos casos discutidos eram publicados na Lisboa Médica.
A sua repercussão na vida médica da Cidade chegou aos nossos dias e, por infelicidade nossa, foram irrepetíveis.
A convivência entre Wohlwill e Pulido Valente foi feita de admiração mútua, de duas grande personalidades com sólidos conhecimentos científicos e médicos e foi resumida da seguinte forma: “Pulido encontrara finalmente um interlocutor do seu calibre”.
A sua acção fora decisiva para que Wohlwill se fixasse durante algum tempo em Portugal e para que pudesse criar na Faculdade de Medicina, uma escola de Anatomia Patológica como se comprova nesta carta de Francisco Gentil.
Pulido Valente foi de facto o interlocutor para essa transferência de Wohlwill do IPO para a Escola Médica onde trabalhou até à sua partida para os Estados Unidos em 1946.
Pulido Valente foi crítico de alguma investigação científica, que considerava amadora, pouco profissional, afastada da realidade concreta e, algumas vezes, perigosa, e essa foi uma realidade que porventura terá diminuído a dimensão académica na sua extraordinária acção renovadora do pensamento e da cultura médica em Portugal.
Terá passado indiferente à investigação angiográfica, que iniciada por Egas Moniz e continuada depois, por Reynaldo dos Santos, por João Cid dos Santos e outros, foi uma obra científica invulgar e imprópria num pais atrasado e distante do mundo científico do seu tempo.
E de facto, minhas senhoras e meus senhores, foi a Escola Portuguesa de Angiografia com a sua acção inovadora, que foi a mais importante contribuição portuguesa para a Medicina, ainda hoje é referenciada e reconhecida, foi a base para o trabalho original de Cid dos Santos sobre a desobstrução das artérias indispensável ao desenvolvimento da Cirurgia Vascular de que foi fundador reconhecido mundialmente.
A Angiografia foi a grande contribuição de Egas Moniz e dos seus seguidores, mais que a Leucotomia pré-frontal da qual Pulido foi crítico “avant la lettre” e que só agora, graças aos novos desenvolvimentos da imagem do cérebro em acção e da localização de alguns focos de disfunção, poderá recuperar importância e utilidade.
Em análise isenta, concorro com as observações de João Monjardino publicadas no livro “In Memorian” de Pulido Valente sobre a menor importância que a investigação teve na sua acção.
Era conhecida a expressão “no meu serviço estão proibidas as descobertas científicas”, mas mais que hostilidade à inquietação espiritual indispensável à investigação, era um apelo ao rigor, ao estudo exaustivo do conhecimento actual, o único meio de evitar “redescobertas sucessivas da roda” que a ignorância e algum provincianismo tendem por vezes a sobrevalorizar e é expressão de subdesenvolvimento intelectual e científico que infelizmente ainda persiste no nosso meio.
Talvez, o que Pulido Valente pretendesse significar era a necessidade, de atitude científica que gerasse as pequenas conquistas da pesquisa e criasse ecologia favorável à descoberta, à inovação.
Menosprezou, talvez, o impacto do espírito criador, individual e solitário.
Cito novamente Jaime Celestino da Costa que relata episódio decorrido durante o célebre concurso de Cascão de Anciães, discípulo de Pulido também afastado da faculdade em 1947, durante o qual depois de falar “no deleite de espírito que era a investigação” Pulido Valente terá retorquido com veemência: “a Investigação é uma função social!”.
Zelo excessivo por alguma ortodoxia intelectual que tendia a subvalorizar a dinâmica criadora do indivíduo, perante objectivos e regras impostas? Condenação excessiva do que poderia ser tomado como expressão de diletantismo intelectual?
Aos historiadores o que deve ser da História e da interpretação dos factos, reconheço-me incapaz de tal exercício!
A influência médica e educativa de Pulido Valente persistiu no tempo e marcou gerações sucessivas.
O seu conceito de uma Medicina Clínica de base científica resistiu, o rigor e a metodologia do exame clínico, a semiologia primorosa e a empatia que estabelecia com os doentes, a que não terá sido alheia a sua sólida formação psiquiátrica influenciaram médicos e doentes.
Permitam-me que recorde uma tia já falecida, que fora doente de Pulido Valente, e que insistia em descrever-me a consulta, repetindo sempre “vê se aprendes, filho!”. Era profundamente admirado, quase idolatrado pelos seus doentes!
Esta influência de Pulido Valente continuada através dos seus discípulos que marcaram a clínica médica da “Cidade”, entendida no seu sentido mais lato, chegou até nós e continua como a arma mais segura contra a incerteza médica do tempo actual e o risco de desumanização duma medicina excessivamente tecnológica.
Depois, o seu exemplo: Professor duma área clínica, que conquistou as suas posições académicas por mérito demonstrado em concursos públicos, que obteve o reconhecimento dos Pares e foi uma referência clínica.
Nunca correu bem, quando outros requisitos e outras metodologias se impuseram nas escolhas das lideranças na Medicina Clínica académica.
Mas a preparação desta palestra foi uma oportunidade, de reflexão e interpelação sobre os caminhos que vimos seguindo na Escola Médica que foi de Pulido Valente.
Que pensaria Mestre Pulido Valente?
Como reagiria ao declínio da Medicina Académica considerada demodée dominada pela visão pragmática e economicista imposta pelos gestores da Saúde, com o ênfase em objectivos de produção e nos famosos “rankings”, fragmentada pela especialização talvez excessiva e desumanizada pela influencia cada vez maior da tecnologia?
Quero crer que concordaria com os requisitos essenciais para a nossa missão universitária e de Educação Médica:
• Desenvolver espírito crítico e respeito ético durante todo o ensino, fomentar a produção de conhecimento e a introdução de inovação.
• Assumir como essência da Profissão que aos Médicos, como Scholars do Corpo Humano compete a defesa da cidadania da Pessoa Doente
• Educação Médica requer reflexão, cultura, aceitação da diversidade e complexidade: são instrumentos indispensáveis ao exercício humano da Medicina Científica
Escolas Médicas devem integrar o Sistema Universitário; não são escolas técnicas superiores.
Também não tenho dúvidas que aprovaria a definição do produto final – como designou o médico recém-formado – que assumimos como objectivo fundamental da nossa missão:
![](http://news.medicina.ulisboa.pt/wp-content/uploads/2010/04/Slide22.JPG)
Será que Pulido Valente aprovaria a estratégia seguida para a reforma do ensino, cujos objectivos fundamentais são o desenvolvimento da cooperação entre as ciências fundamentais e a clínica uma nova visão do seu conceito “fazer anatomia, biologia, histologia à cabeceira do doente” isto é, a ciência ao serviço da clínica, a introdução de áreas de integração em vez das tradicionais disciplinas, bem compartimentadas, enfim o ensino baseado na exposição precoce dos alunos à Medicina Clínica e maior ênfase na dimensão ética e social do exercício medico?
Como não duvido que estaria sentado na primeira fila usando de rigor, objectividade no apoio e na crítica aos trabalhos de investigação dos nossos alunos, uma iniciativa da Faculdade para estimular o interesse pela Ciência e pela Investigação e que se concretizou em mais um Encontro que se iniciou hoje numa sala ao lado deste auditório
Pulido Valente seria certamente o maior apoiante para o novo patamar de organização - o Centro Académico de Medicina - que estamos a construir com as Direcções do Hospital e Centro Hospitalar e do Instituto de Medicina Molecular, legalizado por Portaria conjunta dos Ministros da Tutela publicada em Setembro passado, e que procura oferecer um modelo que promova rentabilização de recursos, dinamize a inovação e a qualidade da medicina e consolide a reforma do ensino.
Gostaria de terminar mencionando a outra dimensão da vida de Pulido Valente: a amizade, o sentido social, o apego à Liberdade e a recusa da tirania.
Este é o famoso quadro de Abel Manta: A Tertúlia do Consultório, com figuras conhecidas da Literatura, da Medicina, da Cultura, reconhecem-se Aquilino Ribeiro, Ramada Curto, Fernando Fonseca, Manuel Mendes, Câmara Reis, que marcaram o Tempo português com o seu espírito de Resistência e apego à Liberdade.
E com esta fotografia, obtida num desses dias de sol de Inverno, que nos aquece a alma, e que devo à amabilidade de João Monjardino, e que mostra um homem sereno, tranquilo e seguro, que se destaca das sombras que o rodeiam.
A acção de Francisco Pulido Valente que hoje recordamos nos 125 anos do seu nascimento, foi um marco e uma inspiração e, estou certo, tudo faremos para saber merecer e honrar a sua Memória e o seu Exemplo.
Apresentação
Prof. Doutor J. Fernandes e Fernandes
cd@fm.ul.pt
Senhor Presidente do Conselho de Administração do CHLN
Familiares do Prof. Pulido Valente e Senhores Convidados
Minhas Senhoras e Meus Senhores,
Quero agradecer ao Prof. João Monjardino, à Direcção da Fundação Pulido Valente e ao Presidente do Conselho de Administração do CHLN o amável convite para participar neste acto de homenagem ao Professor Pulido Valente, uma das figuras maiores da Medicina Portuguesa no século XX.
Alguém escreveu que “o Passado é um outro País” e que para o visitar precisa-se de piloto hábil e conhecedor. Confesso a dificuldade da missão. Socorri-me das memórias de familiares, que foram alunos ou doentes do Prof. Pulido Valente, e dos testemunhos notáveis com que os seus discípulos e familiares enalteceram o significado da Personalidade e da Obra de Pulido Valente na Medicina Portuguesa.
Pulido Valente foi a figura marcante da Medicina Interna do século XX português, a sua influência foi incomparável sobre gerações sucessivas de médicos; é, por isso, uma referência, um pilar da Faculdade de Medicina.
A sua dimensão é multifacetada e daí a dificuldade da missão. Homem Invulgar dotado duma Personalidade única e marcante, de grande coerência intelectual e cívica, foi em Portugal, e nesse tempo, o Médico Cientista que tendo-se formado na vivência experimental do Laboratório, protagonizou a grande metamorfose da Medicina Clínica em Portugal, fazendo-a evoluir, como anotou Diogo Furtado, de uma Arte baseada na observação, para uma verdadeira ciência, na procura permanente da compreensão experimental dos fenómenos patológicos. Por isso, foi Mestre Incontestado, exigente, intolerante perante a ignorância e a incompetência, suscitou essa sedução intelectual de que fala Steiner, que é misto de admiração e temor.
Foi Fundador e Chefe de uma Escola de Pensamento e Acção Médica, e enquanto Académico e Médico foi Espectador Comprometido e Cidadão Actuante na defesa dos valores essenciais da Liberdade e da Democracia.
Nasceu em 25 de Dezembro de 1884, em Lisboa, mas as suas origens familiares provinham do Sul, do Alentejo e da raia espanhola, sem raízes directas na Medicina, com excepção dum tio, o Dr. Francisco Martins Pulido que se distinguiu como médico e no Hospital de Rilhafoles.
(Slides Bibliografia I, Bibliografia II)
Fez toda a sua formação na Escola Médico-Cirúrgica de Lisboa, fundada por D. João VI após o regresso do Brasil e terminou o curso em 1909 com a classificação de 19 valores. Foi líder estudantil activo da revolta académica de 1907 contra o governo ditatorial de João Franco e defensor empenhado da República recém-implantada. A sua tese final foi sobre Histeria, um tema polémico na época, e revelou desde então características marcantes da sua Personalidade, como referiu Diogo Furtado: rigor e exigência intelectual invulgares, cultura científica e sentido crítico, recusando identificações apriorísticas com concepções sobre os fundamentos anatómicos da Histeria, em voga na filosofia positivista e materialista que tanto o atraía. Demonstrou independência intelectual.
Todo o seu percurso escolar foi notável e distinguiu-o: foram vários os Prémios Académicos e “Acessits”, prova e reconhecimento de mérito.
Em 1911 foi médico efectivo, por concurso, da Junta Consultiva dos Hospitais Civis de Lisboa e, em Janeiro de 1912, nomeado primeiro-assistente provisório, na cadeira de Psiquiatria sob a direcção de Júlio de Matos, período que teve influência decisiva no desenvolvimento futuro das competências e do modo clínico de Pulido Valente.
A outra influência decisiva que ressalta no seu percurso biográfico foi a de Aníbal Bettencourt, que lhe proporcionou a dimensão experimental e a competência laboratorial, fundamentais na elaboração da Medicina Científica, da qual seria pioneiro e Mestre. Com efeito, de Agosto de 1914 a Julho de 1917 Pulido Valente frequentou o laboratório do Instituto Câmara Pestana, sob a orientação de Aníbal Bettencourt, iniciador da Medicina Experimental em Portugal e que, na senda de Câmara Pestana, transformara o Instituto Bacteriológico em pólo de atracção para novos talentos e centro de irradiação duma visão moderna da Medicina.
Num texto de homenagem a Aníbal Bettencourt, Pulido Valente refere a importância da experimentação na Educação Médica e o impacto desse período na sua própria formação. Menciona o papel de Bettencourt na abertura de novos horizontes científicos, para alem da tradicional influência francesa e afirma: "não há clínico competente sem uma forte preparação laboratorial porque no diagnóstico, os elementos laboratoriais e clínicos estão num jogo constante...solicitam-se, esclarecem-se e corrigem-se mutuamente".
Foi no Instituto Bacteriológico que o espírito inquieto e insatisfeito de Pulido Valente se acolheu, como investigador voluntário, dando início a um período notavelmente produtivo sob o ponto de vista científico. Com efeito, materializou um conjunto de investigações sobre uma doença comum – a Sífilis - uma decisão coerente com a sua visão pragmática e utilitária da investigação, a qual devia concentrar-se na procura de solução efectiva para problemas clínicos relevantes.
A Sífilis foi o modelo experimental que lhe permitiu novos horizontes sobre a investigação patológica, sobre os mecanismos da doença e da reacção biológica do doente, tendo sempre como objectivo final o tratamento do flagelo social que era, na época, a Paralisia Geral.
São desse período três monografias importantes, sobre o modelo experimental da doença induzida no coelho, sobre a infecção precoce e os mecanismos da sua progressão para o encéfalo e sobre a etiopatogenia da Paralisia Geral e que foram tema da lição de concurso para catedrático. Algumas das suas observações representaram um avanço científico na época, nomeadamente a demonstração da presença do agente infectante no córtex de 70% dos doentes observados, um dado novo na literatura científica do tempo, bem como o mecanismo de contaminação precoce do líquido céfalo-raquidiano, logo após o contacto com o agente infectante.
Este período de investigação clínica inovadora foi muito importante e produtivo e foi expressão da influência da Medicina Germânica cujo paradigma seria inspiração para a sua acção futura como líder clínico e professor.
Simultaneamente, a partir de 1915 inicia colaboração como assistente Livre na 1ª Clínica Cirúrgica sob a direcção de Francisco Gentil, onde se familiariza com a investigação patológica através do estudo das peças operatórias e colabora no acompanhamento médico dos doentes cirúrgicos.
Terá sido uma colaboração frutuosa. Diogo Furtado e Jaime Celestino da Costa concorrem na interpretação que Francisco Gentil reconheceu em Pulido Valente as qualidades que o fariam mentor das novas gerações e a competência médica indispensável. Para Pulido Valente a experiência anátomo-patológica adquirida num grande serviço de Cirurgia foi importante, marcou a etapa derradeira da sua formação no percurso para a posição cimeira na hierarquia universitária e suscitou a importância da colaboração médico-cirúrgica, das suas vantagens para o ensino e para o tratamento dos doentes, como claramente enunciou mais tarde: “a Prática tem demonstrado que o ensino é gravemente prejudicado pela falta de ligação entre os serviços médicos e cirúrgicos” tendo proposto soluções práticas para reforçar essa cooperação médico-cirúrgica.
Este desideratum, na vida hospitalar pública, só viria a ser conseguido nos últimos anos de actividade, quando Reynaldo dos Santos foi ocupar a cátedra e direcção da Clínica Cirúrgica no Hospital de Santa Marta, em 1941. Jaime Celestino da Costa refere esse período de curta duração, contemporâneo de Wolwhill como um triângulo educativo perfeito: a Medicina com Pulido, a Cirurgia com Reynaldo e Anatomia Patológica com Wolwhill.
Todo este período, que foi de consolidação da formação e de produtividade científica, seria interrompido pela sua mobilização no Corpo Expedicionário na I Guerra.
Em França é colocado, primeiro no Hospital de Sangue de Merville, depois em Hendaya e por fim no Hospital da base nº 2, ocupando sempre posições de chefia dos serviços.
A experiência da medicina de guerra iria suscitar-lhe critica certeira à estrutura do ensino médico em Portugal como veremos, faceta habitualmente menos referida na sua biografia, mas que Miguel Carneiro de Moura analisou em conferencia proferida em 1993 numa sessão de atribuição do Prémio Pulido Valente.
Regressado a Portugal em 1919, retoma a carreira universitária e, em Setembro desse ano, obtém por concurso o lugar de Assistente da 1ª Clínica Médica, classificado com 20 valores e no qual obtém o primeiro lugar, e em Dezembro é encarregado da regência do Curso de Patologia Médica.
Em Fevereiro de 1921 concorreu sozinho ao lugar de professor Catedrático de Patologia e Terapêutica Médica tendo sido aprovado.
A organização do ensino médico, a selecção e preparação dos Assistentes e o desenvolvimento dos serviços clínicos, pugnando pela incorporação de sectores de diagnóstico laboratorial indispensáveis para a investigação dos doentes passam a ser a sua prioridade e irão marcar definitivamente a sua acção futura. Fá-lo-á, em detrimento da investigação científica inovadora que conduzira durante o seu período de trabalho no Instituto Câmara Pestana.
O paradigma que o influencia é o da Clínica Universitária da Medicina germânica, onde convergiam a investigação laboratorial como instrumento indispensável a uma medicina de base científica e a prática médica de excelência e inovadora. Por esta razão, insistiu na discussão dos planos do novo Hospital Escolar, que as Clínicas deveriam ter laboratórios independentes.
De facto, nessa época, início dos anos 20, é Pulido Valente que assume e protagoniza a renovação do ensino médico, transpondo para a Clínica o espírito renovador que marcara as ciências básicas. É um inconformista e a sua determinação é notável.
No relatório para a direcção da Faculdade sobre as suas actividades na regência da Patologia Médica aponta novos caminhos indispensáveis a esta estratégia renovadora.
Assinala as deficiências estruturais, a escassez de meios, as péssimas condições das enfermarias e a ausência de laboratório funcionante.
Clarifica a sua estratégia de ensino dizendo que as matérias versadas foram sempre que possível demonstradas em doentes, peças macroscópicas e preparações histológicas.
Esta visão aproximava-o de Sir William Osler, que não é referido na obra de Pulido Valente, talvez pela influência germânica dominante, e que afirmara que “só se deve ensinar com o doente, ele é o compêndio” .
Defende a unidade fundamental do curso quando afirma não perder uma única ocasião para acentuar a importância das cadeiras do 1º ciclo e a necessidade de os alunos recordarem as respectivas matérias. Todo o ensino deveria ser orientado para Clínica, porque essa é que deveria ser a missão principal da escola Médica.
Resume a sua filosofia pedagógica duma forma exemplar “fazer anatomia, histologia, imunidade, bacteriologia à cabeceira do doente, com simplicidade e sentido prático.
O Professor, acrescentava, não é mais que um guia; a verdadeira e profícua aprendizagem só pode ser feita pelo aluno em contacto com o doente”.
Apesar do atraso endémico da cultura portuguesa poderá afirmar-se que acompanhava a dinâmica renovadora
Que a partir da Johns Hopkins em Baltimore, iniciou a revolução no ensino da Medicina Científica e que marcou as primeiras décadas do século XX.
"Só o conhecimento que os alunos adquirem pela experiência laboratorial é real e autêntico"
W. Welch, 1878
“ ...e o estudante já não se limita a observar, escutar ou memorizar: faz! As suas actividades no laboratório e na Clínica são os factores principais para a sua instrução e disciplina” A. Flexner, 1912
Neste Relatório Pulido Valente é profundamente critico da metodologia de ensino seguida após a Reforma de 1911.
Esta Reforma de 1911, cujos precursores e alguns protagonistas foram retratados por Columbano, cujas telas decoram hoje a sala do Conselho e o gabinete da Direcção da faculdade, marcou uma evolução irreversível na Medicina Portuguesa através de uma politica meritocrática para a renovação dos quadros docentes, a criação de Institutos autónomos para as Ciências Básicas dirigidos por personalidades notáveis com formação científica adquirida na Europa.
Preocupado com a renovação do ensino clínico e com a necessidade de meios para essa finalidade, Pulido Valente analisou o impacto da reforma no que chamou o produto final – o médico prático que sai dos bancos da Escola Médica – interrogando-se, se a formação do médico recém formado seria superior à do licenciado de há dez ou vinte anos passados da velha Escola Médico-Cirúrgica de Lisboa.
Não era uma visão saudosista nem uma crítica destrutiva ao esforço renovador e criador de Ciência que essas personalidades estimularam na direcção dos Institutos entretanto criados, e que efectivamente foram o alicerce da Medicina Científica em Portugal.
O que de facto Pulido Valente denunciou foi a translação deficiente, usando nomenclatura actual, entre essa educação científica e a realidade actuante – o médico prático.
A experiência adquirida na Guerra permitiu-lhe consciencialização da verdadeira dimensão deste problema, que não considerava exclusivamente uma deficiência portuguesa e sobre o qual escreveu “aos Estados, a Guerra terá proporcionado a oportunidade única de uma formidável e conclusiva experiência sobre a incompetência do prático ao deixar os bancos universitários”.
Verberou a “absurda hipertrofia das cadeiras básicas em detrimento do ensino clínico, como se a habilitação clínica resultasse da soma algébrica dos conhecimentos conferidos no primeiro período do curso”.
E elaborou uma das mais lúcidas descrições que conheço sobre a verdadeira essência da Educação Médica “que considerava ser uma obra de Educação e de Cultura, pois requer o desenvolvimento de qualidades psicológicas especiais, a fixação de atitudes mentais, enriquecimento progressivo da memoria sensorial com imagens da realidade a aquisição duma técnica subtil”, para referir estar-se perante uma “Aprendizagem complexa duma Arte em que entram elementos do subconsciente e intuição, que não se confunde com o conhecimento conceptual das suas bases racionais”.
Por estas razões, tenho insistido desde há anos na recepção aos caloiros, que a Medicina é uma Educação Superior que requer Cultura, e aos meus alunos de Introdução à Medicina Clínica relembro que a chamada Arte Clínica não é mais que “organização da mente, conhecimento estruturado, método e minúcia na observação e prontidão da memoria”.
Que pensaria Pulido Valente do desarmamento cultural das novas gerações, da selecção de alunos para o curso de medicina baseada na capacidade de memorização e obtenção de classificações elevadas em áreas específicas, estreitando cada vez mais os horizontes da Cultura e da formação do Espírito?
E da semana de 40h recentemente aprovada, um convite à funcionalização total da profissão, ao empobrecimento da educação médica e à perda de valores essenciais do profissionalismo médico, nomeadamente a disponibilidade e o espírito de serviço, ele que organizava as famosas conferências clínico-patológicas com Wolwhill aos Sábados, certamente uma impossibilidade nos tempos actuais?
Quantas vezes fora do horário, vivi experiências clínicas marcantes e enriqueci a minha memória sensorial com imagens irrepetíveis e que tão úteis se revelaram!
Que fazer?
Volto ao documento referido, profundamente clarificador do Pensamento do Mestre e da sua acção como líder da renovação do ensino da Medicina Clínica em Portugal.
Acrescentava a seguir “quem ler o que se escreve hoje na Europa e na América, verificará que se volta á salutar sensatez de considerar as matérias do primeiro ciclo não como ciências autónomas e especulando em Biologia, mas como meras disciplinas do curso médico-cirúrgico, existindo para as necessidades da educação e do progresso profissionais”
Alguns críticos da sua acção interpretaram estes conceitos, assim como a sua exigência de cultura científica como requisito essencial para a investigação científica séria e verdadeiramente inovadora, como uma limitação imposta a essa dimensão que é fundamental na Medicina Académica, e apanágio da nossa tríplice missão: ensinar, cuidar e investigar.
De facto, a evolução foi noutro sentido. Os Institutos de Ciência fundamental são, hoje, essenciais a uma Escola Médica moderna e dinâmica, devem ser centros de criação científica, capazes de responder às questões clínicas e disponibilizar instrumentos de interrogação da natureza, para além das “facas, garfos e colheres” de que falava o meu Mestre João Cid dos Santos.
Ensinará melhor, certamente, quem produz conhecimento e não se limita à repetição do saber alheio e a formação científica dos médicos é um requisito indispensável para a Medicina do século XXI.
A sua acção de renovação da medicina e da criação duma Escola de Pensamento Médico e Acção Clínica requeria intérpretes e Pulido Valente rodeou-se dum grupo notável de discípulos, que preparou meticulosamente enviando alguns para Centros de excelência na Alemanha para se aperfeiçoarem nas novas áreas de desenvolvimento da Medicina Interna.
Jaime Celestino da Costa refere com sagacidade: Pulido trouxe a Alemanha científica até nós!E vale a pena ler a correspondência trocada e publicada no “In Memorian” que revela o cuidado com que o Mestre acompanhava as vicissitudes dos seus colaboradores e, de longe, orientava a sua acção.
Foi por todos reconhecido como Mestre incontestado.
Tinha Autoridade, Carácter, Exigência, Competência e Visão e estes são, de facto, os atributos do Mestre.
Esta é a árvore com os seus ramos por onde irradiou a sua influência: as personalidades são conhecidas e durante uma década e meia de acção, até ao brutal e injusto afastamento imposto pelo sectarismo politico da ditadura em 1947, fecundou de forma irreversível a Medicina Clínica e académica de Lisboa.
Porventura, o seu afastamento e dos principais colaboradores terá impedido que viesse a concretizar mais publicações, como os seus contemporâneos Jimenez Diaz e Gregório Marañon, em Espanha.
Ficaram algumas separatas das suas lições de que menciono algumas e uma outra, que como especialista das doenças vasculares me intrigou.
Refere-se a uma análise de uma teoria em voga na época sobre a fisiologia da circulação; é hermética, profundamente matemática – a orientação de Bento de Jesus Caraça foi decisiva para a sua elaboração – e é bem reveladora da capacidade de Pulido Valente de aprofundar um assunto até à sua dimensão mais complexa.
Confesso a minha incapacidade em a ler, o que certamente não abonará muito a meu favor!
Diogo Furtado no ensaio publicado como homenagem nos 70 anos de Pulido Valente, referia a sua “extraordinária organização intelectual, a memoria excepcional, a capacidade de sistematização e a invocação oportuna e acrescentou “nunca encontrei ninguém que proporcionasse tal impressão de acumulação de conhecimentos e da sua pronta utilização”.
Jaime Celestino da Costa com clareza meridiana sintetizou admiravelmente “Pulido não sabia só mais, sabia melhor” e este era o fundamento da indiscutível sedução intelectual que cativou os melhores e fez uma Escola.
A acção de Wohlwill foi decisiva para o progresso da medicina em Lisboa e da faculdade de medicina, criou uma Escola e um grupo importante de discípulos, entre eles Jorge Horta e Arsénio Nunes, e tive o privilégio de ter sido aluno dos dois.
Era a patologia travando os devaneios da clínica: modelo importado para as famosas reuniões anátomo-clínicas dos Sábados, onde a elaboração dos diagnósticos era confrontada com a realidade crua e dura da patologia e cujos casos discutidos eram publicados na Lisboa Médica.
A sua repercussão na vida médica da Cidade chegou aos nossos dias e, por infelicidade nossa, foram irrepetíveis.
A convivência entre Wohlwill e Pulido Valente foi feita de admiração mútua, de duas grande personalidades com sólidos conhecimentos científicos e médicos e foi resumida da seguinte forma: “Pulido encontrara finalmente um interlocutor do seu calibre”.
A sua acção fora decisiva para que Wohlwill se fixasse durante algum tempo em Portugal e para que pudesse criar na Faculdade de Medicina, uma escola de Anatomia Patológica como se comprova nesta carta de Francisco Gentil.
Pulido Valente foi de facto o interlocutor para essa transferência de Wohlwill do IPO para a Escola Médica onde trabalhou até à sua partida para os Estados Unidos em 1946.
Pulido Valente foi crítico de alguma investigação científica, que considerava amadora, pouco profissional, afastada da realidade concreta e, algumas vezes, perigosa, e essa foi uma realidade que porventura terá diminuído a dimensão académica na sua extraordinária acção renovadora do pensamento e da cultura médica em Portugal.
Terá passado indiferente à investigação angiográfica, que iniciada por Egas Moniz e continuada depois, por Reynaldo dos Santos, por João Cid dos Santos e outros, foi uma obra científica invulgar e imprópria num pais atrasado e distante do mundo científico do seu tempo.
E de facto, minhas senhoras e meus senhores, foi a Escola Portuguesa de Angiografia com a sua acção inovadora, que foi a mais importante contribuição portuguesa para a Medicina, ainda hoje é referenciada e reconhecida, foi a base para o trabalho original de Cid dos Santos sobre a desobstrução das artérias indispensável ao desenvolvimento da Cirurgia Vascular de que foi fundador reconhecido mundialmente.
A Angiografia foi a grande contribuição de Egas Moniz e dos seus seguidores, mais que a Leucotomia pré-frontal da qual Pulido foi crítico “avant la lettre” e que só agora, graças aos novos desenvolvimentos da imagem do cérebro em acção e da localização de alguns focos de disfunção, poderá recuperar importância e utilidade.
Em análise isenta, concorro com as observações de João Monjardino publicadas no livro “In Memorian” de Pulido Valente sobre a menor importância que a investigação teve na sua acção.
Era conhecida a expressão “no meu serviço estão proibidas as descobertas científicas”, mas mais que hostilidade à inquietação espiritual indispensável à investigação, era um apelo ao rigor, ao estudo exaustivo do conhecimento actual, o único meio de evitar “redescobertas sucessivas da roda” que a ignorância e algum provincianismo tendem por vezes a sobrevalorizar e é expressão de subdesenvolvimento intelectual e científico que infelizmente ainda persiste no nosso meio.
Talvez, o que Pulido Valente pretendesse significar era a necessidade, de atitude científica que gerasse as pequenas conquistas da pesquisa e criasse ecologia favorável à descoberta, à inovação.
Menosprezou, talvez, o impacto do espírito criador, individual e solitário.
Cito novamente Jaime Celestino da Costa que relata episódio decorrido durante o célebre concurso de Cascão de Anciães, discípulo de Pulido também afastado da faculdade em 1947, durante o qual depois de falar “no deleite de espírito que era a investigação” Pulido Valente terá retorquido com veemência: “a Investigação é uma função social!”.
Zelo excessivo por alguma ortodoxia intelectual que tendia a subvalorizar a dinâmica criadora do indivíduo, perante objectivos e regras impostas? Condenação excessiva do que poderia ser tomado como expressão de diletantismo intelectual?
Aos historiadores o que deve ser da História e da interpretação dos factos, reconheço-me incapaz de tal exercício!
A influência médica e educativa de Pulido Valente persistiu no tempo e marcou gerações sucessivas.
O seu conceito de uma Medicina Clínica de base científica resistiu, o rigor e a metodologia do exame clínico, a semiologia primorosa e a empatia que estabelecia com os doentes, a que não terá sido alheia a sua sólida formação psiquiátrica influenciaram médicos e doentes.
Permitam-me que recorde uma tia já falecida, que fora doente de Pulido Valente, e que insistia em descrever-me a consulta, repetindo sempre “vê se aprendes, filho!”. Era profundamente admirado, quase idolatrado pelos seus doentes!
Esta influência de Pulido Valente continuada através dos seus discípulos que marcaram a clínica médica da “Cidade”, entendida no seu sentido mais lato, chegou até nós e continua como a arma mais segura contra a incerteza médica do tempo actual e o risco de desumanização duma medicina excessivamente tecnológica.
Depois, o seu exemplo: Professor duma área clínica, que conquistou as suas posições académicas por mérito demonstrado em concursos públicos, que obteve o reconhecimento dos Pares e foi uma referência clínica.
Nunca correu bem, quando outros requisitos e outras metodologias se impuseram nas escolhas das lideranças na Medicina Clínica académica.
Mas a preparação desta palestra foi uma oportunidade, de reflexão e interpelação sobre os caminhos que vimos seguindo na Escola Médica que foi de Pulido Valente.
Como reagiria ao declínio da Medicina Académica considerada demodée dominada pela visão pragmática e economicista imposta pelos gestores da Saúde, com o ênfase em objectivos de produção e nos famosos “rankings”, fragmentada pela especialização talvez excessiva e desumanizada pela influencia cada vez maior da tecnologia?
Quero crer que concordaria com os requisitos essenciais para a nossa missão universitária e de Educação Médica:
• Desenvolver espírito crítico e respeito ético durante todo o ensino, fomentar a produção de conhecimento e a introdução de inovação.
• Assumir como essência da Profissão que aos Médicos, como Scholars do Corpo Humano compete a defesa da cidadania da Pessoa Doente
• Educação Médica requer reflexão, cultura, aceitação da diversidade e complexidade: são instrumentos indispensáveis ao exercício humano da Medicina Científica
Escolas Médicas devem integrar o Sistema Universitário; não são escolas técnicas superiores.
Também não tenho dúvidas que aprovaria a definição do produto final – como designou o médico recém-formado – que assumimos como objectivo fundamental da nossa missão:
Será que Pulido Valente aprovaria a estratégia seguida para a reforma do ensino, cujos objectivos fundamentais são o desenvolvimento da cooperação entre as ciências fundamentais e a clínica uma nova visão do seu conceito “fazer anatomia, biologia, histologia à cabeceira do doente” isto é, a ciência ao serviço da clínica, a introdução de áreas de integração em vez das tradicionais disciplinas, bem compartimentadas, enfim o ensino baseado na exposição precoce dos alunos à Medicina Clínica e maior ênfase na dimensão ética e social do exercício medico?
Pulido Valente seria certamente o maior apoiante para o novo patamar de organização - o Centro Académico de Medicina - que estamos a construir com as Direcções do Hospital e Centro Hospitalar e do Instituto de Medicina Molecular, legalizado por Portaria conjunta dos Ministros da Tutela publicada em Setembro passado, e que procura oferecer um modelo que promova rentabilização de recursos, dinamize a inovação e a qualidade da medicina e consolide a reforma do ensino.
Este é o famoso quadro de Abel Manta: A Tertúlia do Consultório, com figuras conhecidas da Literatura, da Medicina, da Cultura, reconhecem-se Aquilino Ribeiro, Ramada Curto, Fernando Fonseca, Manuel Mendes, Câmara Reis, que marcaram o Tempo português com o seu espírito de Resistência e apego à Liberdade.
A acção de Francisco Pulido Valente que hoje recordamos nos 125 anos do seu nascimento, foi um marco e uma inspiração e, estou certo, tudo faremos para saber merecer e honrar a sua Memória e o seu Exemplo.
Apresentação
Prof. Doutor J. Fernandes e Fernandes
cd@fm.ul.pt
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