O andar é brando porque precisa de apoio do andarilho.
A voz sumida, num fininho melodioso, promete o prenúncio de histórias incríveis do passado que não vivemos, num desfasamento de tempo que vemos na pele.
Olhos azuis e vestígios de um cabelo aloirado transformado em branco, Maria Constança Freitas está hoje a viver na Casa de Santa Maria, depois de ter vindo temporariamente para os cuidados continuados. Queda aparatosa que não lhe permitia mais ficar sozinha em casa, na altura não imaginava que acabaria por ficar na casa gerida pela sua grande amiga e confidente, Graciete Dias, de quem chegou a ser colega de enfermagem no Hospital de Santa Maria. A confidência de tal amizade ficava guardada para o fim, porque a confiança é algo que se conquista.
Ser enfermeira era matriz da sua personalidade, mas não foi papel assumido com facilidade. Seria preciso dar muitas voltas e prova de tremenda perseverança, para levar ao seu porto a tarefa profissional de cuidar dos outros. Tempos em que a vontade individual da mulher não era decisão individual, o pai decidira por ela que ser enfermeira não era opção, porque queria uma filha casada e mãe de família e as enfermeiras só casavam com a profissão, ao serviço dos doentes e sem direito a constituir família própria. Não casar não era opção e viver com um homem sem casar, mais impossível era ainda para um pai tradicional.
Nos tempos de vida que dedicou ao Hospital de Santa Maria, se perguntássemos pela Enfermeira Constança ninguém saberia dizer-me quem era. As enfermeiras eram tratadas pelo apelido, para fazer distinção com as auxiliares, essas sim tratadas pelo nome próprio.
Enfermeira Freitas? Presente! Diria com uma certa nostalgia de quem hoje relembra o passado e me conta que pouco o dominou mais de metade da sua vida, não pelo menos no tempo a que se propôs domá-lo.
Com 90 anos de vida, não tem um segundo de qualquer ausência de reflexão, ou memória. Queixa-se apenas que agora talvez tenha excesso de tempo para pensar na vida, " veja lá que agora é que me dá para pensar em como teria sido a minha vida se tivesse ficado com o meu primeiro namorado, que era o meu grande amor".
Enfermeira com especialidade em Obstetrícia, sonhava desde pequena com este papel. Recorda que aos 7 anos foi com uma prima ver uma enfermaria, ia tirar sangue e reparou que "havia uma sala de trabalhos onde estavam juntos doentes e enfermeiras, não havia gabinetes separados, estava tudo num só espaço. Olhava para aquela sala e pensava, "é mesmo isto que vou ser"".
Mas não foi logo assim tão fácil.
Terminado o liceu havia que planear o futuro. Foi vivendo contrariada, diz-me, "eu nem devia contar estas coisas", mesmo a trabalhar em algo não tão apelativo, o que não lhe fazia sentido era não ter meta profissional a traçar. Seguiu o que na altura se chamava magistério primário, com afinco, mas sem qualquer vocação, conta com os olhos sem expressão. Afinal uma mulher nunca era o que queria ser, mas o que a sociedade determinara para ela. Será assim tão diferente dos dias de hoje?
Já era casada e com dois filhos quando deu provavelmente os grandes passos na sua vida, rumo à liberdade, rumo àquilo que a movera desde sempre.
O som no refeitório era animado, eramos afinal três pessoas a gravar entrevistas em simultâneo e a ouvir aquele grupo de experientes profissionais, outrora alguns deles parceiros no Hospital onde agora nós, gerações vindas a seguir trabalhamos tal como eles.
Os olhos azuis e a expressão de quem pensa muito além do daquilo que fala, faz-me lembrar Rose DeWitt Bukater, a personagem criada por James Cameron em 1997 no filme Titanic.
Tinha 15 anos quando começou a namorar um rapaz que vivia perto, lá para os lados do Campo Grande. "Ficávamos sentados num banquinho, era uma maravilha; depois levava-me até à porta de casa". A mãe que sempre soubera do namoro, nada tinha a opor e na verdade a vizinhança ia vendo o namorico dos dois amigos: "aldrabávamos o horário e umas aulas a mais para poder ir para o jardim", conta de riso espontâneo como se 75 voltassem atrás. O romance durou três anos. Quando atingiu a maioridade ficou aliviada pois agora seria mais fácil afirmar esse amor a todos e em especial ao pai, único que ainda desconhecia a relação. Contudo não chegaria a tempo. Uma vizinha dava a notícia precipitadamente e Constança era assim apanhada de surpresa. O pai também.
Os tempos que se seguiram não foram fáceis.
Do primeiro impulso de querer colocar a filha Constança em Coimbra num convento de freiras, ou mesmo de a expulsar de casa, o mais brando que poderia acontecer foi o que seguiu na vida. Seria levada de férias para longe, acabando de vez com o namoro e ficando prometida para casar com um homem com o dobro da sua idade.
Discreta e contida nas palavras o olhar arrastado nada deixa por dizer no momento em que recorda esses tantos anos de liberdade estrangulada.
Constança podia não ter forças para lutar contra as decisões finais do pai, mas podia fazer-lhe estragos na moral que queria defender a todos. Obrigada, iria casar, mas deixava clara uma condição, "só se fosse pelo civil e assim foi".
Volta a sorrir nessa altura, a mesma em que recorda que era a mãe que minimizava os ímpetos de fúria do pai, transmitindo depois que "o pai julgava que o que eu realmente já queria era pensar em divórcio".
Foi talvez a única coisa que o pai de Constança acertou sobre ela. O divórcio chegaria sim, a muito custo, 7 anos após o nascimento do filho mais novo dos dois rapazes que teve. Sacrificou-se a ficar casada até conseguir libertar-se do casamento e libertando com ela os seus dois filhos.
A esta altura da história de Constança pode parecer que esqueci o verdadeiro rumo do texto. Mas não. É que Constança não era só obstinada em defender os seus afetos, a enfermagem era conquista que todos os outros se podiam esquecer, mas ela não.
Foi em Coimbra, onde vivia com o marido, que se inscreveu numa escola de enfermagem, paga por si, já que a escola era privada. O marido não gostava nada da ideia e apesar de deixar expresso tal desagrado, Constança nunca esmoreceu.
Fez o curso, sem nunca descuidar o papel de dona de casa e de mãe, não podia dar qualquer argumento para ser obrigada a sair da única coisa que lhe trazia algum prazer. "A casa estava da mesma maneira de sempre, como se eu estivesse o dia todo lá".
A convite da escola privada onde estudara, ficou a trabalhar depois de terminar o curso. Sorri e abana a cabeça, na mesma medida em que leva uma das mãos à testa. "Ai meu Deus as coisas que eu fiz". A exclamação deve-se ao facto de a escola onde trabalhava ser católica e, apesar de casada, Constança não o era pela igreja. Nunca foi excluída por nada, mas pesavam-lhe os rótulos da sociedade conservadora e o estigma sempre colocado pelos próprios pais, “uma mulher casada pelo civil não é uma mulher casada a sério”. É verdade, os pais, eram a família para onde regressaria de novo em Lisboa, depois de se conseguir divorciar. Chegava finalmente a vez de se poder colocar no centro das suas aspirações. Foi sem qualquer garantia de ser bem-sucedida que decidiu ir até ao Hospital de Santa Maria, oferecer os seus préstimos de enfermeira. "Mas fui muito a medo, porque a minha mãe disse-me logo que não dissesse que era divorciada, senão ninguém me aceitaria. Ao preencher a minha ficha de inscrição perguntaram-me o estado civil e eu disse a verdade e olhe, foi como se tivesse dito que era casada ou solteira, olharam-me por igual".
Entrou diretamente para a sala de partos, era a especialidade da Enfermeira Freitas, uma vez que era área com escassa mão de obra.
Demorou poucos anos para entender que não queria estagnar só porque tinha chegado ao ponto a que se tinha proposto. Pediu para mudar internamente e seguiu para o internamento, três anos depois. E assim foi colmatando áreas mais carenciadas de trabalho especializado, aprendendo sempre sobre novos Serviços.
Chegada à sua montanha maior foi nela que subiu até ao topo, sem nunca mais mudar de trabalho. Os restantes anos, que agora não recorda exatamente quantos foram, passou-os em Santa Maria, saindo apenas quando veio a reforma.
Lutar pelo grande sonho da sua vida seria sempre sentinela a tocar-lhe ao ouvido. Mas ao ouvido tinha ainda o pai a dizer-lhe que, cumpridos os anos escolares obrigatórios dos dois rapazes, Constança deveria devolver os filhos ao pai biológico, para que pudessem continuar a estudar e ter uma vida melhor, já que o dinheiro não chegava para tudo. "Eram tempos difíceis em que me chegaram a pedir por um pequeno apartamento, de uma só divisão, o mesmo que eu recebia ao mês".
Filha única de um pai que sempre foi castigando os ímpetos de liberdade de Constança, hoje quando lhe peço para dizer o que sente, não expressa qualquer memória boa e afirma-o sem culpa.
Como o coração guardado sempre em segredo de Rose do Titanic, também Constança guardara a melhor memória para o fim.
"Senhora Enfermeira, nunca mais encontrou aquele seu primeiro amor?", pergunto-lhe.
"Encontrei sim, uma vez. Já estava eu divorciada e ele era ainda casado e disse: "se eu soubesse que ias ficar divorciada, eu nunca teria casado, só para esperar por ti".
Constança nunca mais o viu.
Em dezembro a Enfermeira Constança faz 91 anos.
Quando lhe perguntei se valeu tudo a pena e o que vê em retrospetiva, diz que pensa demasiado no passado e continua a sofrer com os caminhos que lhe foram cortados. Não refere nada da profissão, porque a cumpriu como quis, mas lamenta não ter tido a coragem de lutar pelo seu grande amor. "Hoje, que tenho muito tempo para pensar, teria lutado de maneira diferente".
Senhora Enfermeira Constança Freitas, foi o que tinha de ser...
Obrigada pelo seu tempo.
Joana Sousa
Equipa Editorial