O dia não tinha sido fácil até ali.
É fácil dizer que era da chuva e do trânsito compacto, mas a verdade é que havia um desconforto de sucessivos momentos de um mau dia. Mais do que a entrada principal, seria espontaneamente naquele amplo terraço com vista para o fim do Tejo que voltava a fazer sentido ver em perspetiva aquilo que o futuro guarda.
Chegada ao estacionamento, a primeira preocupação era encontrar um norte que me guiasse até à sua Unidade certa– Breast Unit. Ajudou pedir indicações a um segurança, sem que isso significasse que ia para uma consulta, apesar de ser para encontrar o médico cirurgião em cancro da mama, na Fundação Champalimaud e Professor Convidado da Faculdade de Medicina, Pedro Gouveia.
Estava prestes a apresentar formalmente a sua tese de doutoramento – “3D digital breast cancer surgery with augmented reality “ – quando falamos pela primeira vez. Era notório o caminho comum das medicinas que juntariam mais à frente as Instituições com mais projetos comuns.
Voltemos ao doutoramento, ponto de partida que ligou o primeiro contacto.
Em 2014 Pedro Gouveia escrevia o seu projeto de cancro da mama e de modelos biomecânicos, modelos digitais e realidade aumentada. Na verdade, o que queria era fornecer super poderes ao cirurgião, para que ele pudesse ver, através da pele, o tumor. "Com a realidade aumentada posso criar um sistema que permita ao médico uma rápida perceção da imagem, vendo através da pele: o tumor, o osso, ou uma veia”.
Acredita que “a condição humana tem sempre uma ligação paralela à ambição", conta com traços das experiências que foi recebendo ao longo do seu caminho académico e profissional. Mais do que traço de personalidade e base familiar, refere com dose grande de agradecimento os mentores que o ensinaram, começando pela professora da primária.
“Na Faculdade foi o Prof. Trindade Soares que me fez logo adorar a cirurgia, perguntou quem queria ir operar um reto. E eu lá fui. Começou aí o meu caminho. Depois foi o Prof. Machado Caetano, pela forma calorosa como tratava as doentes, chamava-as de "querida" e eu, na altura, fiquei espantado. Era ignorante nesse tempo, porque não sabia que podíamos tratar assim as doentes e hoje chamo-as assim também. Aprendi com ele que devemos ser diferentes e criar impacto na sociedade”.
A cirurgia passava a ser quadrante marcado na vida deste cirurgião. As técnicas para saber operar foram depois ensinadas por Emanuel Guerreiro, o seu tutor em Cirurgia que lhe ensinou que "o mais difícil não é saber operar, é saber quando o fazer, para não magoarmos o doente".
Seguia-se a experiência em França onde conheceria o seu mentor onco-plástico da mama, Krishna Clough.
Mais do que ter a certeza linear do seu caminho, ouvia sempre um lema que lhe era intrínseco, "antes fazer o caminho sem certeza, ao invés de não o percorrer por medo”.
Passos seguidos que o levariam a outra tomada de decisão sem hesitar, entrar na Fundação Champalimaud, pelas mãos de outra sua mentora, a Profª Maria João Cardoso e onde já está há 9 anos. Quando entrou envolveu-se num projeto europeu com a Philips e foi aí que a tecnologia lhe bateu à porta.
Habitual rosto português a viajar pelo mundo para saber mais de tecnologia e realidade aumentada, Pedro Gouveia mostrava parte da sua paixão no evento Building The Future, da Microsoft, onde dava a conhecer-se apenas um pouco, prometendo uma vastidão de caminhos. Investigador, médico e designer, a plateia assistia a um discurso natural de um peixe dentro do seu oceano, a falar como a tecnologia pode melhorar a saúde e a vida das pessoas. Um ano depois desse evento, eu conhecia o Pedro pessoalmente no Open Day do Centro de Simulação Avançada, ator principal para interpretar uma estreia pioneira com os óculos de realidade aumentada, aquisição feita em protocolo com a Microsoft. Uma hora de contacto com o seu mundo e nessa altura entenderíamos que estávamos apenas a dar o passo zero.
Agora, oficialmente elemento integrante de um vasto leque de novos nomes para a Faculdade, o reencontro com Pedro Gouveia era certeiro para começarmos a entrar no passo número 1 da Medicina Aumentada, na Medicina Virtual.
Entremos na Champalimaud
O tempo é curto demais para o que os olhos querem registar, no mesmo fragmento em que percorremos o espaço da Fundação e tudo me é apresentado num só lugar, de forma ampla e cuidada.
Há uma pequena sala de oração à entrada, sem qualquer menção religiosa, sala de reuniões, escritórios e gabinetes médicos que têm apresentação exemplar. Os cadeirões agrupados, dois a dois, ou de quatro em quatro, iluminam-se nos igualmente candeeiros brancos. O silêncio acalma a adrenalina do trânsito, mas constrange-me o bater dos saltos que tento atenuar, como se caminhasse em bicos de pés num quarto de bebé.
O jardim que lá fora estremece entre ventos fortes e aparente tempestade, remete para os trópicos. Não é de acesso aberto a todos, pelo menos os que vêm de fora, são as doentes que podem esperar no jardim pela sua vez, sendo chamados depois por uma auxiliar que os acompanha até à realização do eventual exame, ou tratamento.
No mesmo espaço que me fogem os olhos para o jardim, há dois pisos acima envidraçados que mostram como a Champalimaud se preocupa em juntar a ciência com a realidade clínica do doente. Ali estuda-se fundamentalmente Neurociência e Imunologia. Já no edifício que verei depois ao lado, o pâncreas é a jóia da coroa de tão rara e desafiante para trazer novas abordagens.
Aqui há 4 blocos operatórios, com mais 2 que em breve abrirão no Centro do Pâncreas. O passo é acelerado. Passamos a livraria virtual, com um papel de parede com livros e onde se fazem pequenas palestras e reuniões. Não há elemento algum a mais. Nada está demais por onde estamos.
Passamos pela Unidade da Mama. As enfermeiras usam fardas brancas e polares vermelhos, num contraste claramente marcado de cor e força de vida. O espaço poderia bem ser um museu amplo onde cada pessoa encontra o seu recanto para ler e refletir. Para o médico Pedro arriscaria dizer que o seu grande orgulho está ainda a nascer, com obra a decorrer, será o Digital Surgery LAB.
A sala está ainda às escuras e algo decorre a todo o ritmo, mas quem vem de fora não percebe o que é.
Pedro Gouveia explica que ali se vão coletar dados de superfície dos doentes, para a criação dos modelos. Nasce assim o espaço para registar dados sobre o corpo das doentes - o Digital Surgery Lab. Nele haverá duas salas: a primeira sala no mundo - a Medical Metaverse Room - que fará o registo dos doentes e - o Immersive Surgical Arena - espaço que mimetiza o bloco operatório do futuro, com um sistema avançado de computador de visão, a tão falada realidade aumentada. Será o lugar onde então se reúnem os dados radiológicos do corpo da doente e que permite, através dos óculos virtuais, identificar variadas estruturas. O propósito é criar um sistema tão inteligente e seguro que crie uma nova forma de se supervisionar tudo o que possa fugir à regra.
Passamos pela sala onde costuma estar quando não está no bloco. Foco-me apenas num pormenor, as socas de cores garridas, uma amarela e outra rosa fúcsia. “É de propósito”, diz a rir, “assim todos sabem que são minhas”. Mais adiante na conversa pergunto-lhe se tem medo do ridículo, mas está claro na personalidade dele que não.
A tarde mantém-se com a luz suficiente que ainda me permite ver as construções planeadas para o crescimento da Fundação, plano arquitetónico desenhado pelo Goês Charles Correia. O fim do rio é o cenário onde ficamos, com visitas ilimitadas de gaivotas e um eco delas que fica perdido no sopro forte do vento.
Ali diante do olhar, a promessa de 4 edifícios ao todo. Seria sobre o Digital Surgery Lab com duas salas de excelência, o Immersive Surgical Arena e o Medical Metaverse Room que Pedro Gouveia se focaria mais. Nem de propósito a tempestade pararia naquele momento e o terraço passava a ser o ponto da entrevista sem urgência de fugir.
Acérrimo defensor da realidade aumentada, Pedro encontra nesta o fundamento para que haja uma metodologia comum, onde várias áreas de investigação possam partilhar recursos, sem custos aumentados e fazendo apenas uma boa partilha do saber. Para já mais aplicada em ratinhos, a realidade aumentada já vai sendo aplicada.
Falar com o Pedro Gouveia neste mês não é também acaso. Mês em que as agendas se acertam para falar de cancro da mama, atual forma de cancro mais predominante no mundo, é, contudo um cancro com grande índice de sucesso na sua recuperação.
Mas quantos passos faltam dar na ciência para que se descubra uma vacina, ou um medicamento eficaz?
Fazer investigação é passo inerente a este médico que defende que é precisamente a investigar o cancro que se pode melhorar a qualidade de vida do doente, proporcionando também novas ferramentas ao médico enquanto decisor.
Na Champalimaud há quase 10 anos a celebrar ainda este ano, quando entrou não imaginava a panóplia de avanços que agora o horizonte nos mostra, comparando o cenário ao seu doutoramento, "aquilo a que nos propomos no início é depois muito mais do que tínhamos planeado, mas que bom sinal que isso é!”.
Estudante trabalhador de doutoramento, demorou 5 anos e meio para o terminar, percebendo que o passado nunca nos faz ter noção exata dos tantos caminhos que se abrem quanto maior for o conhecimento.
Estaremos mais perto de Silicon Valley?
No terraço com vista desenhada e o vislumbre no ar do que ainda ali se será, o seu raciocínio transporta-me em parte para o conceito do longtermism (crença que se deve investir no futuro a longo prazo, não focando nos problemas atuais da humanidade), quando me fala de Elon Musk. "O segredo é o número de vezes que se falha até acertar", refere explicando que se fosse a Nasa a fazer tantos testes, com tentativas e erros em material espacial, seria um desastre para o dinheiro dos contribuintes; contudo, sendo um descobridor com sede em avançar, é menos impactante, mas sinal de inovação. A ligação talvez nem todos a saibam, mas as baterias da Tesla, de Elon Musk, são as mesmas usadas no Espaço pela Nasa.
Perdeu-se o fio à meada da história do cirurgião. Pensa quem me lê neste momento. Mas não, é o próprio que tem várias fugas de pensamento para a tecnologia quando afirma que a credibilidade tem de se por em jogo para procurar caminhos novos fora da área de conforto. Nessa perspetiva fala do erro como pista para a própria investigação e posterior avanço, "na verificação do erro, eu já estou a apontar que aquela hipótese não se confirma, mas com essa falha estou a tentar concluir o composto certo".
Aliado do tempo sabe que o conhecimento não se gera à pressa e com prazo traçado, “às vezes é necessário tentar mais do que aquilo que se planeou”, para achar a pista certa. Caminho da investigação que precisa de tempo, sem andar ao ritmo da sociedade atual. Mas e os custos disso?
Não faz investigação fundamental, mas dentro da sua área reúne um conjunto de especialidades para formar um produto que se possa aplicar às suas doentes. O doutoramento foi a sua forma híbrida de chegar a um conhecimento mais amplo de outras especialidades.
Aliado da tecnologia para que o próprio possa chegar mais longe, a Inteligência Artificial entra como tema da nossa conversa.
“Perderá a inteligência artificial a utilidade para o futuro só porque ainda a não salvou vidas?”, perguntava-me fundamentando a necessidade de tentativa versus o erro.
“A interpretação rápida da imagem é sem dúvida a grande vantagem para o médico, a perceção cognitiva é mais profunda e rápida, olhando para o tumor e interpretando a imagem”, explicava. Mas a discussão vai mais além e Pedro Gouveia já caminha nesse sentido, mesmo no que toca à questão dos dados. A verdade é que “o doente é o dono desses dados, mas não os tem com ele, ora se a IA permitir esse acesso e à interpretação desses dados, estamos a ajudar e a crescer todos em soluções partilhadas. É a possibilidade de nos ligarmos uns aos outros”, concluía.
Ainda praticamente inoperacionais para as equipas multidisciplinares, assim como para os próprios doentes, o cruzamento de dados poderia trazer eficazmente novos pareceres entre hospitais, e não só o doente faria menos exames, como eles custariam muito menos ao SNS.
Os modelos digitais da mama são dados que podem trazer novas soluções.
Pedro Gouveia já iniciou este caminho do cruzamento de dados das suas doentes que traziam exames. Criou modelos digitais da mama que resultam de dados da ressonância magnética, partindo assim para a reconstrução da mama na posição deitada e passando para a posição de pé. A fusão final dá-se através do surface scan, de modo a obter a imagem tática da localização exata do tumor. Foi precisamente com base neste modelo que passou para a criação de uma nuvem de pontos que sincronizam estas imagens, com óculos de visão aumentada. Ajustando manualmente o modelo virtual com o corpo real da mulher, Pedro conseguiu ver, através da pele, onde estava a localização do tumor. Partilhou assim o resultado dessas interações com as doentes que lhe deram acesso aos dados, permitindo-lhes que as mesmas fizessem upload para uma plataforma, assim cada uma delas fará a partilha desses dados com quem entender, podendo mesmo vender essa informação. "É por isso possível vender/monetaizar estes dados e não os guardar só para o próprio médico e nesta partilha podem nascer novas sinergias. Não é em vão que a comissão europeia já legisle a partilha de dados de doentes, para que se possa aumentar o grau de comparação e intercâmbio para uma harmonização química e biológica universal. Esta é a verdadeira universalidade dos dados que tem padrão comum quando se veem na lâmina os valores comuns, estejam eles na Alemanha ou em Portugal”.
Será possivelmente aqui que as Universidades poderão fazer a diferença, não só disseminando este conhecimento, como criando normas de harmonização à investigação. Trabalho por fazer em Portugal e que Pedro admite não se poder assumir todos os papéis numa só pessoa. "A Faculdade não sobrevive só com doutorados, precisa de ser mais inclusiva, cada um pode fazer o seu papel no seu canto, mas precisa de mais pessoas para alargar o raio de ação", explicava. " Se não dermos tempo às pessoas para pensar e planear, elas deixam de ter a capacidade de criar".
Como encontrar um caminho para a inovação, criando impacto na vida das pessoas? É esse o desafio a que se propõe todos os dias sabendo, no entanto, que é preciso fazer do tempo aliado para a ação.
O Pedro na Faculdade de Medicina.
Dentro da missão de formar médicos, que vão tratar e ver doentes, cabe à Escola incentivar à descoberta de diversos caminhos alternativos, explicava. "A investigação deve ser um dos grandes apoios. E eu quero apoiar aqueles que queiram fazer investigação”. O convite inicial partiu do Prof de Cirurgia Paulo Costa, agora, todas as quartas-feiras, Pedro Gouveia recebe dois alunos do 4º ano da Faculdade da cadeira de Cirurgia. Usam óculos de realidade virtual para que possam treinar técnicas médicas, usando instintivamente várias técnicas sem precisar de as ler, apenas treinando sem causar danos a pessoas reais. "Os óculos aumentam a retenção de conhecimento e facilitam o processo de aprendizagem porque dão algo muito imediato, além de aumentar os níveis de satisfação durante o processo de aprendizagem. Os alunos podem treinar vezes sem conta, até se sentirem confortáveis para treinar no doente a sério".
Os primeiros estudos que existem sobre a componente virtual parecem ser categóricos nos efeitos que estas técnicas produzem no ensino, “é como o simulador do avião, damos um simulador e os pilotos treinam muito até estarem aptos para voar”, reforçava.
“A realidade virtual democratiza o ensino, aumentando o nível de treino para que ele se torne eficaz. É essa a ideia que quero partilhar e multiplicar, mas é preciso haver suporte das instituições”.
Sobre o Pedro Gouveia, o método já não nos é desconhecido se lembrarmos Cristiano Ronaldo como o melhor jogador do mundo e como chegou lá. Era o primeiro a chegar e ficava sempre depois da hora para fazer perguntas e treinar e observar. Depois repetia e treinava e repetia e falhava, tentando vários caminhos, mas sempre sem desistir de tentar e evoluir, trazendo em cada investimento pessoal um novo avanço para todos.
Joana Sousa
Equipa Editorial