O José Charréu é um dos estudantes de Medicina que cedeu em tempos a sua imagem para o vídeo institucional da Faculdade. Metódico nas suas principais ações foi campeão de esgrima por três anos consecutivos, toca violino desde os 7 e, por ter sido um dos melhores alunos do seu ano, foi igualmente agraciado com um diploma de mérito.
Dois anos depois da gravação do vídeo e entre alguns escassos encontros entre aulas, regressámos ao contacto. Quase a terminar o seu estágio de Medicina Interna em Paris, o José Charréu está de regresso ao seu lugar, o próprio o afirma, mas será este mesmo o seu lugar?
Atualmente no 6º ano do Mestrado Integrado em Medicina traz mais do que bagagem teórica para mostrar. Retomamos as nossas conversas como se o tempo não tivesse passado, como se a mudança de cenários nunca tivesse existido.
Rapaz arrumadinho e exemplar, discreto e sem querer fazer avaliações públicas, tem as suas convicções, mas a diplomacia marcada não lhe permite polémicas, nem exposições leves. Agora reencontrado, o Zé já completou o último ano do Mestrado. Dos estágios começou em Setúbal, em Ginecologia, e no Centro de Saúde de Alvalade, seguiu com Medicina Geral e Familiar. Seguiu-se o Hospital Amadora Sintra onde estagiou em Pediatria e Cirurgia. Curtos dias depois estava a chegar a Paris para o seu último estágio curricular. A Cirurgia acabara a uma sexta e na terça seguinte já estaria a entrar no seu novo lugar, com morada mais distante.
Apesar da sua permanente discrição, já no 4º ano queria candidatar-se a passar um semestre, ou ano inteiro, em Paris. Tal não aconteceu porque a pandemia também a ele lhe trocou os planos, mas Paris não ficou esquecida e é lá que ainda está, desde há três meses, no Hôpital Tenon, em Medicina Interna.
A mudança de cenário não foi para dizer que tinha vivido noutro lugar, facto é que a forma como estão estruturados os cuidados de saúde em França lhe parecem mais inclusivos, pois o trabalho dos alunos que chegam é de elevada importância, razão que não só os integra como os faz ajudar na vida dos internos de Medicina Interna.
Essa nova realidade permitiu que o José Charréu fosse ver doentes, escrever notas digitalmente e em software próprio, para acesso mais resumido do médico interno. Aprendeu a assumir a responsabilidade assim que assumiu o estágio de Interno em Paris.
Olhando já em retrospetiva e fazendo questão de afirmar que não quer criticar o sistema do próprio país, valoriza mais os cuidados de saúde feitos na dependência dos alunos mais novos, papel não ainda assegurado de forma semelhante em Portugal. No país que melhor conhece considera não haver a mesma simbiose, explica contido, "é como se fossem só os internos e os médicos a partilhar, mas os mais novos também podem contribuir bastante”.
Mas porque não há quadros perfeitos, o Serviço de Saúde em Paris pode queixar-se de outra realidade, os seus internos dizem-se sobrecarregados em tarefas hospitalares.
Das barreiras possíveis de encontrar, uma delas nunca deixaria de ser aliada. O Francês. Sobre a língua já levava vantagem uma vez que a mãe é Professora de Francês, tendo vivido os seus primeiros anos de vida em França. Com um patamar de conhecimento da língua avaliado em C1, confessa, no entanto, que o começo de perceção da terminologia médica não foi assim tão simples. Povo fortemente orgulhoso da sua língua, os franceses fazem questão de não usar estrangeirismos universais, nem quando se fala em Medicina, onde tantos manuais e terminologias acabam por ser inglesas.
No seu grupo não fugiu à brincadeira estereotipada de ser um português, conta-o a rir, equilibrando com igual explicação de ter sido tão bem aceite.
"Pior do que ser de uma determinada cor ou cultura, aquilo que os incomoda é virem para cá pessoas e não saberem falar francês".
Quanto à descomplicação do próprio José, foi sozinho para Paris, sem visitas prévias ou preparação dos caminhos e transportes. O contacto para a casa onde ficou hospedado cair-lhe-ia do céu, através de uma amiga que foi conhecendo nas aulas da Alliance Française que fez em Portugal.
Ia apreensivo, com receio de um certo estigma que os franceses demonstrassem alguma superioridade, mas nega-o agora veementemente, o acolhimento e simpatia foram insuperáveis. "Conheci o chefe clínico que rapidamente me sugeriu que me inscrevesse em uns ciclos de conferências, onde eu próprio fizesse as minhas apresentações", vai contando entusiasmado.
Novo grupo sólido de amigos nasceria da equipa de trabalhos do Hospital, constituído por 4 a 5 alunos / externos e um médico interno a liderar o grupo, ficavam responsáveis por 12 doentes. "Por isso a importância dos alunos aqui é relevante, cada um de nós tinha 3 doentes e era eu que os ia ver, fazia a minha apreciação e depois trocava ideias com o médico". O médico interno funciona assim como um consultor dos jovens aprendizes que iam criando caminhos de raciocínio e facilitando o trabalho de minúcia sobre a história clínica de cada doente. Com a regra da rotatividade, facto é que cada interno passa por vários serviços, não ficando apenas alocado a um só, o que permitiu dar aos estagiários como o José a possibilidade de contactar com algumas pessoas mais marcantes. Em outros casos aprendeu igualmente que nem todos têm vocação para acolher os mais novos. Seria, porém, o contacto com uma médica interna que desencadeou no José a motivação mais forte, trocando sempre com ele feedback das suas tarefas e análises aos doentes, desafiando-o a pensar sobre possíveis caminhos de ação. "É muito saudável quando o reconhecimento é mútuo e nos sentimos parte integrante do lugar onde estamos", contava-me sobre a sua nova interna médica.
No contraste de experiências, percebeu também que se há cenários mais eficazes na gestão do Serviço de Saúde pública em França, outros problemas há que não parecem sentir-se em Portugal. A falta de enfermeiros parece, no entanto, ser padrão comum por vários lugares.

É na fronteira entre culturas semelhantes e elos que as empurram que o Zé fortalece a convicção de valorizar o cuidado com as equipas e que entre elas haja o espírito de se motivarem umas às outras, sem olhar a hierarquias, etnias, ou crenças que possam ser limitantes. "É diante dessa evidência que vemos bem a diferença quando és cuidado e incentivado e vês também a tua produtividade a subir", refletia.
Nos três meses passados num turbilhão de trabalho e lembranças, se a bagagem de mundo e da aprendizagem vieram, já a bagagem da esgrima e o título de campeão nacional ficaram em casa, mas não esquecidos. Apesar de não treinar a esgrima, nem de se preparar para os campeonatos, foi treinando de outras formas, revendo a cidade de Paris e o Rio Sena em corridas, inscrevendo-se inclusivamente em algumas provas coletivas. Agora em pausa pelas férias de verão, sabe que vai diminuir o ritmo dos treinos de esgrima, tendo por isso já abdicado das competições nacionais. Mas o título teima em não sair de casa, desta vez nas mãos do irmão mais novo, o António Charréu.
Já o Charréu, Zé, tem diante dele a derradeira prova pela frente, a Prova Nacional de Acesso, que o fará escolher a sua especialidade médica.
Apesar do breve tempo que lhe fugiu por entre as mãos, não houve um único momento em que tenha sentido vontade de voltar ao seu país, quis aproveitar cada fugaz minuto como o último. As saudades só mesmo pela família, que aproveitou para colmatar quando recebeu uma visita dos pais a meio do estágio e todos os dias foi marcando encontro por videochamada com eles e o irmão. Quanto ao tempo ocupado, discreto como se mantém, refere primeiramente as diversas responsabilidades para desempenhar bem o estágio e a apresentação de um trabalho final, que lhe resumirá o estágio. Seriam as atividades sociais que viriam igualmente a ser referidas como regulares, apenas num subtil sorriso.
Sobre o Zé percebemos que quando se ganha o mundo já não se quer libertar esse lado da experiência vivida. O Zé sabe que tem a dualidade de quem viveu uma situação de intercâmbio e a dinâmica da preparação intensiva para a PNA, não descuidou nenhum dos caminhos, contudo, sabe que não foi com o rigor de quem ficou em Portugal e perto de casa para estudar. Recuperará esse tempo vivido de outra forma e por isso abdicou de passar as férias em família, optando por as gozar na sua última semana livre em Paris. "Ainda que não seja vantajoso para eu ter uma boa prestação na PNA, este estágio foi para a minha vida muito importante".
No dia em que falámos explicou-me que o seu grupo de estagiários já se está a despedir, uns de regresso a Itália, outros à Alemanha e muitos franceses a ficar, claro. No fim do ano todos prometem o reencontro para tentar reviver as amizades construídas.
A entrar em modo eremita, como o próprio o diz, vai ficar intencionalmente sozinho para não ter qualquer distração. Em novembro e através de uma só prova sabe que se decidirá o seu futuro para os próximos anos. Com uma perspetiva alargada sobre a forma como outros países europeus fazem as provas finais, reflete que talvez pudesse ser mais justo transportar o conceito da OSCE para a PNA, adaptando várias situações de simulação clínica numa avaliação que não fosse apenas escrita.

Como desportista de alta competição sabe que precisa de lidar com a pressão se quer obter a sua mais elevada performance. Habituou-se por isso a não sentir muita pressão ao longo dos dias que o aguardam, antes da grande decisão. Vive o presente com uma calma que o chega a preocupar, mas obriga-se a que pelo menos se acelere para acordar cedo e a horas e sentar-se à secretária para estudar. Quando lhe pergunto se é favorável ter um certo medo de falhar para que daí cresça mais responsabilidade, o José confirma que pode ser força motriz, principalmente para testar todos os bloqueios, algo que o próprio ensaia muitas vezes.
Sabe, enquanto desportista, que quando os treinos lhe correm muito bem, a prova final promete-lhe o mesmo desempenho, e apesar de levar algum nervosismo, é a expectativa da vitória e não o medo do falhanço que o movem.
"Agora quero treinar a minha cabeça para o reconhecimento de padrões clínicos. Não basta só sabermos, o desafio do tempo implica rapidez de raciocínio".
Sem planos muito vincados diz-me que não sabe bem o que quer pedir ao futuro no que toca à especialidade médica. Espera que o ano comum o clarifique sobre as suas possíveis paixões. "É importante não fechar a cabeça para viver outros caminhos, precisamos de absorver o que há de melhor em cada parte que passa por nós".
Voltamos a encontrar-nos em breve Zé. Aqui no país que nos é comum, ou onde o teu caminho te levar.
A primeira entrevista com o Zé:
https://www.medicina.ulisboa.pt/newsfmul-artigo/95/jose-charreu-regras-do-jogo
Joana Sousa
Equipa Editorial
