Prestes a começar a 2ª edição da Masterclass em Liderança em Bloco Operatório - Operating Theatres Leadership and Perioperative Practice Management - fomos procurar o próximo convidado de honra que abrirá a 2ª edição desta parceria com Cambridge, falando de Liderança e da forma como a tem exercido na sua carreira e ao longo dos seus 37 anos profissionais.
A primeira vez que o ouvimos foi na Aula Magna, a convite de Rui Tato Marinho, o Professor e Diretor do Serviço de Gastrenterologia e Hepatologia do CHULN. Comparando as horas de exercício de funções de médico, com as de voo enquanto Comandante, percebemos a razão de Armindo Martins defender regras restritas e disciplina profissional para um percurso bem sucedido.
Começou na Força Aérea em 1978, mas a sua carreira viria a fazer-se na TAP e ao longo de 37 anos, o que lhe permitiu somar as 23 mil horas de voo que tem.
Responsável durante 17 anos pelo CRM (Crew Resource Management) na TAP, está atualmente reformado da companhia, mas mantém ainda a formação privada.
Mas o que pode um Comandante de aviação ensinar a um profissional que exerça funções no bloco operatório?
Armindo Martins é figura que depois de se ouvir uma vez jamais se esquece. Eloquente, apelativo e excelente comunicador, é um contador de histórias para levar a audiência precisamente ao lugar onde quer aterrar.
Líder nato ao longo de anos de carreira, defende que um bom líder forma os outros e partilha tudo o que sabe, não guardando o conhecimento para si como joia rara. É precisamente a riqueza da partilha que permite ver que esta é a melhor forma de formar alguém, criando impacto e o inesperado para que quem aprende sinta que os erros não acontecem só aos outros. Assumir a pele do outro é desafio complicado, mas necessário para respeitar mais cada um e antecipar cenários que possam vir a ser um problema. Sentir na pele a dificuldade e a responsabilidade dos outros, é meio caminho andado para o sucesso de um rumo comum. Conhecendo o outro permite-se uma aceitação mais intrínseca.

Conceito que nos leva de seguida à empatia, que desenvolve de forma profunda e madura de quem foi vivendo tantos papéis dos outros para entender melhor o seu próprio lugar no meio do todo.
Não serão já estas características de um líder cujas vidas leva literalmente nas suas mãos?
“É importante interiorizar o erro como sendo não intencional, mas que muitas vezes o confundimos com negligência ou até violação e isso, não encaixa no figurino do azar, sabendo nós que estaremos a colocar a nossa e a vida de pessoas em risco”, explica-me o homem habituado a formar os outros.
“É o fator humano que abre a porta ao erro”, acrescenta, explicando que os acidentes de aviação se dão maioritariamente com os mais experientes, ou seja, com os comandantes.
Incoerente escolher então alguém mais experiente para vir falar sobre como fazer tudo da forma certa?
A sabedoria da sua posição e da carreira que assumiu permite-lhe hoje em dia afirmar com convicção que é preciso ter consciência absoluta que a qualquer momento se pode errar e isso obriga que todos sejam muito vigilantes.
Exercício de retidão e treino que é ensinado desde cedo na aviação e que hoje ainda ensina aos outros. Sobre o processo de aprendizagem e a riqueza do erro compara-o de forma magistral com o conceito japonês kintsugi de recuperar algo partido com uma cola misturada com pó de ouro, não só dando vida nova à peça, mas tornando-a ainda mais rica e rara. Assim vê a sabedoria do erro, constatação que leva a uma evolução maior.
O preço do erro é o que leva à tentativa de perfeição
No início da carreira os pilotos são avaliados através de diversas características: a vontade, a disciplina, a motivação e o compromisso. Mas a resiliência e a liderança são outros dois pontos que chegam logo pouco depois. Ao longo da vida vão aprendendo a viver assim, gerindo expectativas e características suas, assim como na interação com os outros.
Não é por isso em vão que em todos os voos há a intenção de colocar equipas diferentes no cockpit, a ideia é que nunca se habituem uns aos outros, para não criar conforto demasiado na dupla que comanda o avião. Se por um lado podemos considerar que nunca se encontra a ideal cumplicidade, por outro sabemos que esse ritual de cerimónia tem tudo para dar certo.
Entre o bloco e a aviação há várias diferenças que podem parecer não terem caminho comum. Mas há também elos a pensar. Na aviação há uma avaliação permanente, em cada voo, um escrutínio feito de forma isenta e que será sempre questionado. Mas quer na aviação, quer no bloco operatório, o que fica sempre atrás do erro é o processo que levou até à decisão.
Se há momentos na vida em que arriscamos, como andar a uma velocidade maior de carro, em bloco operatório ou na aviação, simplesmente não se pode correr qualquer risco de errar. Erro que em ambas profissões pode pagar o preço da vida de pessoas.
Mas então por que razão sabemos que algo pode dar errado e mesmo assim insistimos em avançar com esse comportamento? Porque fazemos nós intencionalmente coisas que sabemos que não deveríamos fazer?
A verdade é que o a intencionalidade grave não é um azar, mas um erro consciente. Sobre a liderança e a boa comunicação. Sobre evitar ao máximo o erro. Sobre a serendipidade como a capacidade que temos, ou não, de estarmos no lugar certo à hora certa, ou no lugar errado, à hora errada. Foi precisamente por aí que começámos a nossa conversa.
Continuamos a ter erro humano na aviação, mesmo sendo a tecnologia cada vez mais precisa e avançada?
Armindo Martins: Sim. Continuamos. E de uma forma que nos é particularmente difícil de reconhecer. E sabe porquê? Essencialmente os acidentes hoje em dia estão ligados aos fatores humanos. Nunca a segurança esteve com os níveis que está hoje. Há cada vez mais aviões no ar, proporcionalmente cada vez temos menos acidentes. Mas a verdade é que os acidentes continuam a acontecer e é através das caixas negras e no momento em que elas são despidas que se percebe que, o que causou o erro foi humano, porque o avião estava totalmente bom.
De que fatores humanos podemos estar a falar?
Armindo Martins: Desde o nosso estilo de vida, da liderança, à maneira como falamos ou ouvimos. Passa pela gestão da carga de trabalho, desde o processo da decisão, até à aplicação dos nossos próprios conhecimentos.
O que prevalece enquanto se está no ar? A máquina ou o piloto?
Armindo Martins: A tecnologia cada vez mais nos ajuda no processo da decisão e para o sucesso de fazermos sempre bem à primeira. Mas é o piloto o último decisor. A última palavra é dele, de quem decide no final.
E aí vamos ao encontro do tema da liderança. É precisamente sobre este ponto que depois faz afirmações interessantes, porque se por um lado "o líder deve ser aquele que dá espaço ao outro, mas no entanto a última decisão tem de ser a sua".
Armindo Martins: Sabe que na aviação nós cada vez menos usamos a palavra liderança, apesar de a sabermos presente. Cada vez mais usamos a palavra "autoridade". Dito assim, nós não gostamos, parece ter inerente a necessidade de obedecer. E neste contexto não é isso que se pretende dizer. Deixe-me explicar, todos nós na aviação sabemos o que é preciso fazer. E note, não é demagogia. Eu sei o que tenho de fazer e quando, e o meu parceiro de cockpit também. E aí surge a pergunta? Então para quê o líder? A autoridade aparece pelas fragilidades e lacunas humanas. Porque acontece que, por vezes e por um qualquer motivo, a pessoa sabe o que tem de fazer, mas não o faz. Assertivamente, e sempre com boa comunicação e respeito, o responsável tem de assumir uma atitude e chamar a atenção para as possíveis falhas. Estará pelo menos mais alerta, já que é também esse o seu papel.
Corrija-me se lhe der um exemplo sem nexo. Coloquemos este cenário. Durante o voo o piloto dá a possibilidade ao copiloto de fazer uma aterragem. Essa prova de confiança é uma dupla responsabilidade por poder trazer risco?
Armindo Martins: Sabe que há um processo até o copiloto ser considerado como tal. Isto é, o copiloto quando é "largado" está apto para assumir uma situação de pilot incapacitation, ou seja, é quando o copiloto assume o comando do avião, porque o piloto, porque algum motivo sério alheio contra a sua vontade, não está em condições de seguir ele o comando. E note que na minha vida isto nunca aconteceu.
Mas claro que a experiência não se adquire em formação e que nesse caso há um abismo de situações já vividas, mas em termos de competências eles estão aptos e em todos os voos podem descolar ou aterrar. Nós costumamos chamar a esta situação uma perna, num percurso o piloto leva o avião, faz o pilot flying, e na outra perna leva o copiloto, ou vice-versa. O pilot monitoring é quem não assume tanto o voo mas verifica a meteorologia e analisa dados necessários ao voo. E isto é precisamente para que o mais inexperiente possa adquirir experiência.
A inexperiência ou a muita responsabilidade não trazem o medo associado?
Armindo Martins: Medo não. Eu diria que causam mais adrenalina. Falo-lhe por mim. Eu sinto-me muito mais piloto se apanhar situações de mau tempo, por exemplo. Porque me sinto mais merecedor do meu papel do que nas situações ditas mais “comuns”. Sabe que a rotina nos pode causar mais complacência, quase como se sentíssemos que não há necessidade de tanto foco.
E aí o normal pode tornar-se um perigo...
Armindo Martins: Não é por acaso que as piores aterragens são com o bom tempo. Os pilotos baixam as defesas e facilitam um pouco. Mas estes fatores são humanos. Nós somos todos humanos. É precisamente esta noção da possibilidade do erro que nos obriga a todos a atenção máxima sempre, para não falhar.
Até porque não há muita oportunidade para errar uma segunda vez... Ou então que a falha seja tão mínima que não haja danos.
Armindo Martins: A questão é que qualquer falha, mesmo nos pequenos erros, em quase todos os voos são vistas pelas caixas negras que são abertas. Ou seja, a seguir a todos os voos (97%), há um departamento que vai analisar as caixas negras. E se acontecer alguma coisa e não houve report, então há algo mais a apurar, por que razão não se fez o report na altura? Sempre que erramos somos obrigados a reportar o que é uma das nossas características. Associa-se sempre o report a uma espécie de queixa, não é? Mas não está correto. Se cometermos erros e não reportarmos, não se acrescenta aprendizagem nova. Se eu não reportar sobre um erro meu, o meu copiloto deve fazê-lo e se nenhum dos dois o fizer, seremos questionados. O erro em si não é intencional, mas não reportar um erro, aí já há intenção.
Deixe-me fazer uma transposição para o bloco operatório. Imagine uma situação de bloco em que diante de uma cirurgia em que tudo apontava para um quadro clínico calmo, se precipita o cenário durante a cirurgia e a situação do doente é mais complexa do que se planeara. Nesse momento, redefinem-se estratégias e há alguém que decide essas novas linhas de orientação. O que acontece num avião quando se mudam as premissas de forma imprevista?
Armindo Martins: O imprevisto não tem treino é um facto, mas nós temos de estar preparados para ele. Treinamos tudo no simulador, mas não se treina o fator perigo. Porque mesmo que se crie uma situação dessas, sabemos que é simulação e como tal não sentimos o perigo. Mas há mais, na aviação não podemos nunca testar o pensamento de "eu acho que isto ainda vai dar". Não podemos tentar, temos de conseguir. E ao decidir, temos de fazer uma gestão de risco. Diante do risco a pergunta é, "como convivo eu agora com o risco depois desta minha decisão?". Se no bloco operatório calculo que não se possa proceder assim, na aviação quando não estamos seguros da decisão, executamos a manobra do borrego, ou seja, vamos embora, damos uma volta, esperamos, até construir bem o cenário de decisão. Agora, não se pode manter uma decisão e não a questionar, só porque já decidimos e então não dá para voltar atrás. Se houver tempo e se for o mais certo, dá sim e temos de mudar a decisão. Muitas vezes inibimos abortar uma decisão com receio do que vão os outros pensar de nós. Nunca vivi uma situação dessas de imprevisto absoluto, mas já senti que não havia mais ninguém para decidir, tinha mesmo de ser eu.
Qual é o peso nesse momento?
Armindo Martins: Se fosse monitorizado o meu organismo acredite que se sentiria esse grande pico da decisão. O peso da decisão está lá. Eu não posso falhar. Nem nenhum dos pilotos. É por isso que temos linhas limite, mas também da própria máquina, da tecnologia do avião. Mesmo com ou mais experiência não podemos deixar de exteriorizar a dúvida.
Um bom líder faz-se apenas por formação, ou tem qualquer coisa no seu instinto que o torna dominante?
Armindo Martins: O treino ajuda. Mas é mais por moldagem. É ver e observar. Com uns aprendemos a dizer que "um dia vamos ser como eles". Com outros vamos dizer, "assim nunca quererei ser". Liderança tem isto, dá uma grande aprendizagem contínua. Mas há mais detalhes. Olhe, eu fui uns bons anos chefe de treino e percebi que uma melhor forma de aprender, era estudando acidentes de aviação. Estudava em grande detalhe e ganhei uma bagagem de não cometer os mesmos erros. Esta nossa conversa faz-me lembrar um fado do Carlos do Carmo onde diz que "o passado é o lastro do futuro" e somos mesmo assim, não é?
Poderíamos ter empresas e instituições mais eficazes se mais grupos praticassem estas regras restritas e disciplina nos seus procedimentos diários de trabalho?
Armindo Martins: Completamente. Era tudo mais fácil. Mas há também qualquer coisa no lado humano… Singapura e Vietname têm muito o conceito de viver para nos acarinhar e agradar. Veja o Vietname, passou a vida em guerra e no entanto trata todos bem. Eles são tão gratos que não querem mais guerra, querem o oposto, apenas viver em paz com o mundo. Esta também é uma forma de aprendizagem.
Não deixe ouvir em direto o Comandante Armindo Martins na abertura do curso de Liderança.
Joana Sousa
Equipa Editorial
