Sabe cada pormenor do que aconteceu, enquanto me conta sobre o seu primeiro voo. A Vitória.
Médico Internista e Intensivista de Santa Maria, Nuno Gaibino ganhou o estatuto de todos os anos fazer um parto fora do contexto hospitalar.
Começou a fazer VMER (Viatura Médica de Emergência e Reanimação) em setembro 2018 e mal sabia que, poucos meses depois, a sua noite de natal lhe reservava um sentido especial. Inesperadamente fazia o seu primeiro parto. De nome Vitória, seria esta bebé a sua primeira “afilhada”, nascida pelas suas mãos, nessa noite fria junto ao Hospital Beatriz Ângelo. A Vitória não quis esperar por entrar no Hospital e assim se começou a escrever a história de partos para Nuno Gaibino.
Foi uma fotografia publicada a 6 de abril que nos voltou a relembrar a razão da sua paixão pela emergência médica. A história repetia-se com as mesmas características, alterava apenas a morada final. Desta vez para contar o primeiro voo da bebé Maria Luísa.
As fotografias de uma delicada bebé de gorro rosa batiam records de visualização nas redes oficiais, afinal viver entre chão firme e o abismo, Nuno sabe que nem sempre se perde.
Foi após um pedido de ajuda dos Bombeiros do Beato e Penha de França a chamar um carro da VMER, que Nuno Gaibino e o enfermeiro Tiago Duarte saíram a voar até chegar ao destino. De escala em Santa Maria, Nuno Gaibino era chamado para sair o quanto antes, enquanto bombeiros, mãe e pai da bebé, que viria a nascer, aguardavam por ajuda perto da estação de Santa Apolónia, junto a um pequeno túnel.
Era no momento em que os bombeiros passavam toda a informação, a pedir apoio da VMER que, da Central do CODU, se pedia uma observação mínima à mãe para perceber se haveria apresentação da região cefálica do bebé. "É nessa altura que a bombeira vê a nuca do bebé já exposta, o trabalho de parto estava a ser demasiado rápido", recorda Nuno Gaibino.
Antecipava assim o cenário ao enfermeiro Tiago, "temos de ir o mais rápido possível porque vamos fazer um parto, ou então ele já está consumado quando chegarmos".
Talvez não seja o ideal de velocidade expectável para se manter a segurança da própria equipa, mas de Santa Maria a Santa Apolónia a VMER de Nuno e Tiago gastou apenas 5 minutos.
Enquanto percorriam o caminho e até chegarem ao local, a informação que dispunham era de uma grávida prestes a ter o segundo filho e com 36 semanas de gestação, começara com contrações de 10 em 10 minutos. Sabiam ainda que até à chegada dos bombeiros, não ocorrera qualquer rutura de bolsa. Situação aparentemente controlada, o quadro mudava num muito curto espaço de tempo, a rutura de bolsa acontecera subitamente e as contrações passavam a ser de 1 em 1 minuto. "É muito raro um trabalho de parto progredir tão rapidamente", explica.
A realidade face aos partos costuma ser outra, a partir do momento em que a mãe tem os primeiros sinais de contrações, pode deslocar-se tranquilamente para o Hospital, sendo expectável levar algum tempo para chegar ao momento do parto. Não é por isso, considerada a prioridade máxima da Emergência Médica, quando uma grávida entra em trabalho de parto. Mas há exceções e aqui, uma vez mais, o parto estava eminente. "Realmente há o início do trabalho de parto, ou seja, contrações em menos de 4 em 4 minutos, depois rutura de bolsa, ou não, e tudo isto com um tempo de evolução".
Assim que chegaram ao local, Nuno Gaibino prevenira Tiago Duarte que trouxesse o kit de partos, monitor para a mãe e a mala de via aérea para a mãe e bebé, pois podiam encontrar diversos cenários. Hemorragia da mãe, ou complicação fetal, podiam ser apenas duas das possíveis hipóteses. Estranhou que ao entrar na ambulância, a primeira coisa que lhe tenham dito foi que "fechasse a porta, porque estava frio". Dentro daquele pequeno espaço, estava um bombeiro a acalmar o pai e a bombeira com uma criança nas mãos. O cordão estava ainda preso à mãe e a bebé envolta numa grande compressa, há cerca de 1 a 2 minutos. Depois de cortado o cordão, mãe e bebé eram avaliadas. Espaço pequeno para tantos elementos e sem qualquer semelhança a um bloco de partos, a única cama de apoio para a Maria Luísa era improvisada num banco de ambulância. Apesar de não ter sido um parto comum, pelos riscos inerentes que ocorrem quando feito fora da instituição hospitalar, o quadro que se apresentava era estável. Trabalho de equipa instintivo para quem tem muito treino, Tiago cuidava da mãe e Nuno observava todos os sinais da bebé. A perda de temperatura era para Nuno uma das grandes preocupações, "era fundamental ver a capacidade de sucção, como era o tónus muscular, a resposta vigorosa e se chorava ou não, assim como a perfusão (extremidades quentes) da bebé. Estava tudo bem, mas de facto ela tinha perdido alguma temperatura".
Temperatura fria que deve manter-se também na cabeça do médico que assume de imediato a liderança de uma equipa que não conhece. Todos eram agora chamados a trabalhar. O primeiro foi o pai, era preciso procurar o saco da roupa do primeiro dia de vida da Maria Luísa, retirar o gorro e colocá-lo urgentemente na cabeça. "Os bebés perdem cerca de 40% da temperatura pela cabeça, então, a primeira coisa a fazer, mesmo antes da limpeza, é proteger de imediato essa extremidade do corpo". Só depois foram aspiradas as secreções do líquido amniótico do nariz e da boca, sempre presente no recém-nascido.
Razão que explica que, mal nasçam, os recém-nascidos devam estar sob uma iluminação que os mantenha estáveis no que toca à sua temperatura corporal. E se por um lado a ambulância não oferece as mesmas condições que um bloco de partos, por outro, a especialidade de Nuno Gaibino é a Medicina Interna e Intensiva, não a Obstetrícia ou Pediatria. "Não trato habitualmente de crianças recém-nascidas no meu dia-a-dia, mas lá veio a experiência mais uma vez este ano", diz-me Nuno Gaibino a rir.
Dos seus anos anteriores em que ajudou outros bebés a nascer fora do contexto hospitalar e enquanto seguia na VMER, este ano o paradigma mudava consideravelmente, já que agora assume o papel da maior responsabilidade de todas, ser pai. "Mas lidar com bebés é sempre a situação em que não se pode errar em nada, porque como não é uma atividade diária, seguimos tudo de acordo com as regras, cumprimos estritamente os protocolos, porque o nível de stress é tão elevado que não há o mínimo improviso".
Apaziguada a urgência inicial, Nuno Gaibino ligou para Santa Maria, Hospital onde a mãe já era seguida e pediu apoio clínico, pois iam chegar com mais um membro da família nos braços. Contudo a avaliação exigia ser criteriosa, uma vez que a bebé tinha 36 semanas e nascera fora do local apropriado. À porta do Hospital esperavam alguns dos melhores elementos clínicos das suas áreas, uma equipa de Obstetrícia, para tratar da mãe, uma de Neonatologia e outra de Cuidados Intensivos Pediátricos, para a Maria Luísa. "Fomos recebidos na entrada da Urgência como se estivéssemos a viver uma cena de uma das melhores séries médicas americanas".
Na chegada ao Hospital e depois dos cuidados gerais a mãe já se encontrava na segunda fase do parto, momento da expulsão da placenta, enquanto a Maria Luísa já mostrava evidentes reflexos de amamentação.
Foram 25 minutos de adrenalina intensa, tempo que durou desde que a VMER foi chamada, até que deram entrada em Santa Maria.
Quanto à adrenalina sentida, ela abrandou ao fim dos 25 minutos, permitindo apenas baixar o ritmo cardíaco, mas não passou, a não ser no dia seguinte.
"Mudámos o curso de algo que podia não ter corrido tão bem", diz-me sempre com a mesma expressão de dever e misto de magia e respeito pela profissão. Na vida desta equipa da VMER e no percurso médico de Nuno Gaibino há muitas histórias por contar e algumas não terminam bem.
Mas sobre elas falaremos em breve, porque são também essas as histórias que alimentam a realidade.
Hoje falamos apenas dos primeiros voos. O de Nuno Gaibino que ajuda a manter a vida de quem a recebe pela primeiríssima vez, o seu primeiro voo.
Joana Sousa
Equipa Editorial