O bom dos reencontros é a fluidez de uma conversa que ganha continuidade desde a última vez, como se nunca se tivesse parado. Continuidade que acontece sem apresentações prévias ou a cerimónia vincada pelo formalismo a que nos obrigamos todos socialmente. Há um retomar de diálogo e ritual que começa sem começo e vai terminar sem um real fim.
Numa maratona que descreve estar sempre a fazer em forma de sprint, Válter Fonseca dirige o Departamento de Qualidade da Saúde da Direção-Geral de Saúde. Está neste cargo há 3 anos. Chegou em novembro de 2018 e passou 2019 com funções comuns. Em dezembro de 2019 a pandemia instalava-se e daí em diante assumia não só os caminhos da Qualidade da Saúde, a que se propusera, mas agora também diversas estratégias de trabalho e ação na prevenção da Saúde dos portugueses confrontados que eram com o SARS-CoV-2. Meses depois assumia mais uma pasta, a coordenação da Comissão Técnica de Vacinação contra a Covid-19 (CTVC).
A pandemia aparecia não só na Saúde, mas como fenómeno social. Ainda sem começar a gravar a nossa conversa, foi-se instalando na sala de reuniões, talvez assumindo ambos os mesmos lugares tomados no passado encontro. "Li uma frase que descreve bem o que senti nestes dois anos, levamos todos os dias o país aos ombros", dizia-me com uma cara bem-disposta, depois de termos adiado a nossa entrevista por impossibilidade súbita da sua agenda. O detentor original da frase era Anthony Fauci (o epidemiologista-chefe da Casa Branca), atualmente protegido 24 horas por dia, pelas forças de segurança, devido às inúmeras ameaças de morte por ser um dos grandes defensores da vacinação contra a covid-19.
Mais à frente na conversa, Válter Fonseca explicar-me-ia com extrema simplicidade o que fez tantos elaborarem teorias sólidas da conspiração, movendo diversas campanhas de negacionismo, ou apenas movidos a medo, atacando a Ciência e os seus investigadores, quando foi sempre a ela que todos recorreram a pedir soluções para a vida.
"Quer com isso dizer que tem vivido como se fossem vários bancos de Urgência?", pergunta minha de retórica ao Professor da Faculdade de Medicina, médico Internista e habituado no passado aos referidos bancos de tantas horas seguidas. Mas não, o paralelo não se adequa porque no banco vem sempre alguém substituir a determinada hora. E na DGS e com o cargo que tem, não há substituto para o banco da Urgência que se mantém em permanência.
Encontrara-o quase há dois anos na mesma sala, naquele edifício da DGS que se ergue com vista para o Técnico e os jardins da Alameda da Fonte Luminosa. Do nosso primeiro momento de diálogo, ambos estaríamos bem longe de imaginar como iria tornar-se a vida de Válter Fonseca numa centrifugadora de tempo, decisões e emoções.
A pandemia já nos consegue mostrar se deixou algum impacto nas nossas vidas?
Válter Fonseca: Ainda não temos o tempo e a distância suficientes para entender o que vai acontecer ao mundo depois desta pandemia. Quanto à nossa intervenção, não tenho dúvidas que ela foi sensata e equilibrada. A própria forma como olhamos hoje para a Covid-19, já resulta de um conjunto de ações que foram feitas. Há uma aprendizagem pelo conhecimento gerado que nos faz olhar para esta doença, já não como algo totalmente desconhecido, mas “olhos nos olhos”, de um para um. Este “olhar de frente” é algo que só se constrói com a vacinação e com o evoluir da própria infeção e do conhecimento. A pandemia em si veio expor um conjunto de necessidades e desafios, quer do ponto de vista social, quer humano. Veio por exemplo expor este conceito do digital, esta exposição avassaladora a dados e a informação. Como vamos nós daqui em diante lidar com uma sociedade que tem os maiores conhecimentos que há memória da História? Este é um ponto de grande reflexão. Várias vezes as coisas que dávamos como garantidas apresentavam-se como um abalo das nossas convicções, das Instituições e da sociedade em geral. Precisamos, por isso, de algum tempo e distanciamento para vermos se foi apenas uma turbulência durante a pandemia e que já passou, ou se vão ficar marcas para sempre.
Pessoalmente acho que vão ficar marcas. Agora, o grande desafio que se coloca é que sejam oportunidades para fazermos melhor e não para nos lamentarmos sobre o que aconteceu. Para a Saúde temos imensas oportunidades, o serviço de saúde, os seus profissionais e doentes, todos podem olhar para a pandemia como um momento de viragem, e para melhor. Mas temos de o agarrar.

Permita-me fazer aqui um paralelo sobre o que descreve e que imaginei como imagem.
É como se depois de um grande embate, o corpo ficasse tão quente que não sente o verdadeiro estrago? Será que ainda estamos neste processo de um corpo coletivo quente que ainda não sentiu o real embate a frio?
Válter Fonseca: Era precisamente por essa noção que dizia ainda há pouco que é preciso algum tempo e distanciamento. Nós queremos acreditar que estamos a sair da turbulência. A verdade é que enquanto a atravessamos, não temos grande capacidade, nem tempo, para pensarmos naquilo que está a acontecer. Apenas estamos a trabalhar com grande intensidade. Regressemos à analogia dos bancos de Urgência. Naquelas 12 horas, quando os bancos eram muito intensos, só no dia seguinte é que eu percebia duas coisas: o que tinha feito e aprendido e quão cansado estava. Nunca era durante as horas do serviço. Agora, se aplicarmos essas 12 horas a uma escala de 2 anos, a recuperação também não será feita em 24 horas, e por isso vai levar mais tempo essa consciencialização. Estamos numa fase em que os dados apontam que vamos começar a sair daquilo que eu chamo uma maratona corrida à velocidade de um sprint e sem meta à vista. Estamos agora a começar a ver essa meta, mas não temos ainda o tempo nem o distanciamento suficiente para vermos o que fica e quão cansados estamos.
Daí que, para instituições da área da Saúde, é aproveitar para fazer uma renovação de equipas Não tenho dúvidas que há pessoas que quererão começar a trabalhar neste momento de enormes oportunidades, o momento do virar de página. Mas não abandonar as pessoas que trabalharam intensamente estes dois anos, que vão ser uma mais-valia para partilhar uma experiência única.
E temos essas pessoas para abraçar a oportunidade?
Válter Fonseca: (Pensa por uns segundos) Temos. O mundo é cheio de pessoas. Se é fácil encontrá-las? Não, mas acho que poder vir trabalhar na mudança, é das coisas que mais motivam as pessoas. Na minha perspetiva, as pessoas em geral não gostam de trabalhar na rotina, gostam de abraçar projetos e de interagir com novas pessoas.
Curioso dizer isso, porque as pessoas no momento da mudança ficam muito avessas a ela geralmente…
Válter Fonseca: Mas abraçam essa mudança. Têm receio mas abraçam a mudança. Entendo o que diz, as pessoas não gostam de sair, por vezes, da sua zona de conforto, mas ao mesmo tempo, se a zona de conforto for muito longa, também desmotivam. Como sempre na vida, é no equilíbrio que vamos encontrar o caminho. Sabe que eu acho que as pessoas, e muito em especial as gerações mais jovens, precisam de desafios e estamos a vivê-los neste momento. A pandemia é um catalisador para a mudança.

Ainda assim temos aqui mais uma perspetiva interessante e que me faz recordar um artigo de opinião do médico Eduardo Freire Rodrigues, feito para o Observador e que diz: «Relembro a mensagem deixada pelo Diretor do Departamento da Qualidade em Saúde da DGS: “As conclusões científicas são o resultado de um processo que não é preto ou branco, mas sim com vários tons de cinzento, com avanços e recuos, teses e antíteses, provas e contraprovas, por vezes com opiniões divergentes e dúvidas.” A gestão da pandemia é dinâmica; a informação muda à medida que o conhecimento científico avança; a ciência responde a umas questões e surgem imediata e irremediavelmente outras. Um processo como este, com avanços e recuos, gera, inevitavelmente, medo, insegurança e dúvidas.» Curioso como quando estamos todos desesperados por respostas, vamos pedir socorro à Ciência e à Medicina, mas depois quando ouvimos desta classe que não há sempre certezas absolutas, atacamos e duvidamos. Que dualidade é esta? Como é que lidou com este cenário todo?
Válter Fonseca: Essa é talvez A Pergunta: "O que é que aconteceu à credibilidade da Ciência?". Eu acho que essa reflexão vai dar-nos ainda muitas peças ensaísticas. A resposta para mim é clara, as gerações atuais, das mais velhas, às mais novas, viveram num mundo após as revoluções científicas. Aquilo que conhecem da Ciência é a solidez, com certezas altamente robustas e provadas. Associaram sempre à Ciência o seu resultado e não o seu processo, conhecem os resultados, mas não conhecem o processo para chegar àquelas conclusões que lhes são apresentadas. Há um livro que li há uns tempos que diz que, "a Ciência se constrói ao provar que aquilo em que se acreditava estava errado". Ou seja, a Ciência evolui desfazendo o que vem do passado e construindo uma nova verdade. Mas há sempre um juízo, uma interpretação e um processo, onde a Ciência evolui por hipóteses, teses, antíteses... O que a Covid-19 veio demonstrar é que a Ciência não tinha certezas imediatas, nem podia ter, porque perante algo novo, aquilo que tínhamos era apenas a extrapolação face ao que se conhecia e não tínhamos a certeza sobre qual o melhor modelo a utilizar para extrapolar. Qual seria o melhor modelo a usar? O da gripe pandémica? O de outro coronavírus? E as pessoas confrontaram-se então com o processo da Ciência. Passaram a confrontar-se com o processo científico em direto: as dúvidas, os cinzentos. Como sabe, o meu doutoramento foi num laboratório, uma experiência que envolve a obtenção de resultados, a colocação de uma hipótese subsequente e a tentativa de chegar a uma conclusão. A Ciência costuma apresentar uma sequência de espectros possíveis, revelando, diante de cada problema de cada necessidade, o conjunto vasto das hipóteses. Isto é lidar com a incerteza. Porque veja, numa situação em que está comprometida a vida das pessoas, não podemos estar à espera que se verifiquem todas as condições experimentais e científicas de observação, para se decidir. Mas sabemos que a Ciência continua a dar as respostas importantes. Olhando para trás, sabemos que as respostas que obtivemos, baseadas em Ciência, foram aquelas que tiveram um impacto maior na forma como lidamos com a pandemia. Mas há que explicar às pessoas que estão a assistir, não ao fim mas, à construção da Ciência. A questão é que nunca tinham sido confrontadas com este cenário anteriormente. Portanto, o que está a acontecer ao processo da Ciência é normal, é assim que é. Os ziguezagues retratados pela imprensa, no que toca à Ciência, mais não mostram que, por vezes, em apenas duas simples semanas, há informação nova e decisões que têm de ser ajustadas.
Quando dizemos que as pessoas precisam de literacia, se calhar não pode ser só para os resultados, têm também que compreender o processo e a forma como a Ciência se constrói. Por outro lado, para mim, que sempre fui e sou um defensor da Medicina Baseada na Evidência, vi-me confrontado com a necessidade de ter de decidir mesmo na incerteza, não porque havia esta ou aquela corrente, mas porque era a vida das pessoas que estava em causa.
Pode explicar-me como?
Válter Fonseca: Este é um grande desafio para a Ciência e para as decisões em Saúde. Li um artigo recentemente que diz que a Ciência deve basear todas as decisões em Saúde, mas a ausência de Ciência não pode justificar uma ausência de decisão. Felizmente acho que passamos pela pandemia, num tempo, com um grande avanço no acesso imediato à informação que não teríamos há muitos anos atrás. Há anos, dizia-me um Professor da Faculdade de Medicina que, para fazer um Doutoramento, precisava de pedir por correio o acesso a determinado documento para ser analisado. Ora, tudo isso era muito mais moroso. Já viu como hoje em dia estamos a trabalhar à escala global? Acedemos a tudo em poucos segundos. É notável como a humanidade se conseguiu organizar. A questão do tempo passou a ser imperativa e a tomada de decisão cada vez mais pressionada a ser rápida. É preciso olhar para os métodos de geração de evidência, com a perspetiva da tomada de decisão, em prol da vida e da proteção das pessoas em sociedade. Não é por acaso que alguém um dia disse que, "a pandemia é uma doença e uma doença social". É preciso encontrar métodos que não belisquem o rigor científico, mas que permitam suportar tomadas de decisão com maior rapidez.
E estará nessa mais rápida decisão uma maior dose de risco, também?
Válter Fonseca: (Fica a pensar). A vida é todos os dias um risco. Nós é que conhecemos os riscos e aprendemos a lidar com eles, achando que os controlamos. Mas tal não é verdade. Quando saímos todos os dias de casa, não temos a menor ideia da quantidade de riscos que estamos a correr e ainda assim movemo-nos e vivemos. Quanto à sua questão não acho que seja uma questão de risco, mas aceitar mais risco é em si uma decisão.
Podemos afirmar que se estão a dar os primeiros passos para vivermos numa endemia? Ou será ainda precoce?
Válter Fonseca: A resposta tecnicamente correta é que é precoce. Não temos ainda tempo do conhecimento epidemiológico, nem do conhecimento do comportamento sazonal do vírus, para podermos definitivamente estabelecer se estamos numa pandemia, ou se estamos numa endemia. Aliás, há muitos termos científicos que são aplicados em retrospetiva. Só depois de passar algum tempo é que olhamos para trás e conseguimos estabelecer uma data para determinadas transições ocorridas. Por exemplo, tantas vezes se perguntou, "mas já estamos no pico? já passamos o pico desta vaga?". A verdade é que, só em retrospetiva, conseguimos dizer que já passamos. Também a pandemia e a endemia têm conceitos semelhantes a estes. A necessidade de estar alerta ainda não acabou. Há ainda um grande nível de incerteza que nos deve obrigar a estar vigilantes, mas não temos de continuar a considerar que é uma doença que não conhecemos. Não temos de continuar a considerar que não temos um conjunto de armas potentes para olhar “olhos nos olhos” esta doença. Daí que a grande questão, não é se estamos diante de uma pandemia ou endemia, mas que podemos hoje conviver com uma doença com muito mais segurança e sem medo do que fazíamos no início.
E essa afirmação deve-se ao facto de termos vacinas que nos dão essa segurança?
Válter Fonseca: Temos vacinas e conhecimento sobre a própria doença. E estamos no advento da chegada de novas terapêuticas para a Covid-19, que nos fazem enfrentar esta doença como enfrentamos muitas outras. Agora, não significa que não tenhamos que estar atentos e que não tenhamos que ser muito sérios e cautelosos. E jamais arrogantes. Note, isso não fazemos com nenhuma doença, a Medicina é assim, não é arrogante com nenhuma doença. Lembro-me, na minha vida de médico, que me chegavam pessoas com uma vida saudável e entravam com um enfarte, por exemplo. Perguntavam-me, "porquê doutor? Se eu nem fumo, nem tenho excesso de peso? Porquê eu?". É simplesmente porque não controlamos tudo. Somos seres biológicos e isso faz parte de um risco inerente à nossa vida.
É esta noção da necessidade de informação que fez com que a DGS lançasse, com o Professor a dar a cara, uma forte campanha de comunicação explicando de forma simplificada as medidas de prevenção e ação para a Covid-19? É a informação versus o combate ao medo?
Válter Fonseca: Se me permite preciso de dizer que, ninguém faz nada sozinho. As pessoas que trabalham connosco são a coisa mais importante de qualquer organização. E aqui reforço, trabalham connosco e não para nós. Dito isto, acrescento que para ser eu a estar hoje aqui nesta entrevista, é porque há um conjunto de pessoas que me ensinaram muito nestes anos. Quanto à explicação e desmistificação do medo, sem dúvida, a melhor forma de enfrentarmos o medo é com informação. Explicar às pessoas é, como tal um ato de cidadania. Se eu sei, de nada me serve saber se eu não puder explicar aos outros. É por isso que gosto tanto de dar aulas. Não me serve de muito se eu souber algo e não partilhar. Devo partilhar e divulgar, para que os outros possam também saber e isso vai fazer-nos progredir. Mesmo quando se têm que tomar decisões mais assertivas, a melhor forma de as pessoas aceitarem, é dizendo-lhes "esta decisão é assim, porque...". E até podemos dizer, "esta decisão é assim porque ainda não sei muito do assunto, mas assim que eu souber eu revejo".
Devemos sempre assumir isso, que não sabemos?
Válter Fonseca: Devemos! Há depois uma linha ténue entre assumir que não sabemos, e o “não pode acabar aí”. Ou seja, o facto de não se saber ainda, não nos pode fazer parar por aí. Há que continuar, "não sei ainda, mas vou saber o que fazer e vamos assumir isto…". Alguém disse um dia que "a natureza tem horror ao vazio", como tal, irá sempre preencher-se. Logo, ao dizer que não sei o que fazer, estamos a criar um vazio que irá ser preenchido de uma forma imprevisível, gerando desinformação, confusão e medo. Essa é a grande questão, efetivamente sabemos pouco ao início, mas vamos saber mais!
Faz-me lembrar a nossa primeira conversa. Esse seu princípio vem dos seus tempos de escuteiro, não é? É preciso sempre uma solução para seguir um mapa e o destino final.
Válter Fonseca: Verdade. Eu lembro-me tão bem de uma situação em que estávamos a fazer uma longa caminhada – um raide - que é norteada apenas por regras de orientação. Acontece que há momentos em que os dados que temos (mapas, bússolas) não chegam. E há um momento em que alguém precisa de dizer se vamos pela direita ou pela esquerda. Lembro-me de uma atividade na Serra da Arrábida em que tal aconteceu. Chegámos a um caminho bifurcado, um deles derivava ligeiramente para a esquerda e o outro ligeiramente para a direita. Na altura os instrumentos que tínhamos não nos permitiam tomar a decisão com certeza. Havia duas coisas a fazer: ou decidir, ou ficar parado. E desses tempos recordo ter aprendido que mais vale uma má decisão do que uma não decisão. Ficar parado não nos leva a lado nenhum. Então há que decidir, mesmo assumindo que não temos a certeza da melhor solução para o problema. Seja qual for o caminho que optamos seguir, precisamos de o explicar, esta é uma regra basilar para lidar com pessoas. Se explicarmos a decisão, mesmo que ela depois não tenha sido a melhor, as pessoas sabem que assumimos uma decisão e acompanham-nos. Agora, se não explicarmos as decisões, depois não podemos esperar que entendam e se movam connosco.

Sempre esteve ligado à emissão de recomendações técnicas através do Departamento de Qualidade na Saúde, que se rege pelas normas. Das várias publicadas, há quatro delas que se apresentam como verdadeiros pilares ainda hoje: a Norma 004/2020, que estabelece as recomendações para a pessoa com suspeita clínica de Covid-19; a Norma 015/2020 que explica como se faz o rastreio dos contactos de casos confirmados; a Norma 019/2020 que define a estratégia de testes para a Covid-19. Em janeiro de 2021 a Norma 002/2021 que define a Campanha de Vacinação contra a COVID-19. Estas normas mostram a própria evolução da pandemia num curto espaço de tempo. No momento em que gravamos esta entrevista estamos já diante a 18º atualização da Norma 002/2021.
Poder-se-á chegar à conclusão, como já aconteceu no passado, que as pessoas vão precisar todas de uma 4ª leva de vacina?
Válter Fonseca: É precoce falar disso. Mas é igualmente importante desmistificar que tivemos vários tipos de esquemas vacinais iniciais. Considerámos sempre o impacto da infeção prévia por SARS-CoV-2, na perspetiva da vacinação. Foi por isso que estas pessoas tiveram esquemas ajustados, o que mostra a capacidade que tivemos de ajustar, o mais possível, a evidência a cada situação. Não houve só uma medida geral, personalizamos um pouco em algumas linhas. Isso revela um país com um sistema de saúde muito organizado. Portanto, ao perguntar se haverá nova leva de vacinação, é ainda cedo porque estamos numa transição epidemiológica, o que obriga ainda a refletir quais as melhores estratégias de vacinação adaptadas a uma fase de transição. Os objetivos também se ajustam à realidade. É diferente termos estratégias de vacinação que procuram contribuir para o controlo da transmissão, ou estratégias de vacinação que têm como objetivo primordial evitar a doença grave, hospitalização e a morte.
Falávamos no início da nossa conversa sobre a sua maratona em forma de permanente sprint e sem meta à vista. Para si, na sua carreira, já há uma meta à vista? O que vai acontecer?
Válter Fonseca: Ainda não me consegui distanciar o suficiente da pandemia para ter essa reflexão. Mas há coisas que posso já dizer, foi um privilégio... é! Eu não gosto de falar no passado. Aquilo que pude viver, participar e conhecer, demoraria muitos anos num outro contexto para ter as vivências que consegui aqui em dois anos. É uma espécie de vida em compacto (a frase não é minha, mas é um conceito de alguém que respeito muito). Há dias absolutamente difíceis e tensos, complicados, mas que quando conseguimos um pouco de distanciamento, pensamos que foi importante e fundamental. Num só dia pode acontecer tanto: uma reunião sobre vacinação contra a covid-19, depois é o grupo que está a elaborar a norma do rastreio de contactos, segue-se a questões dos novos testes, se devem ou não entrar na estratégia de testagem, e pequenas urgências e dúvidas dos jornalistas que precisam de ser rapidamente respondidas. É preciso ir a um canal de televisão à noite, explicar as recomendações às pessoas... E não estive só na pandemia, o Departamento da Qualidade na Saúde continuou as suas atividades. Ao mesmo tempo, conseguimos elaborar o novo Plano Nacional de Segurança do Doente, algo totalmente separado da Covid-19, mas que tudo junto traduz a multiplicidade de arenas. Mas isso digo eu agora a uma distância já tranquila, porque há dias em que eu penso "mas porquê? porquê a mim?". (Ri) Mas sabe? Tal como já referi numa outra entrevista, eu acho que cada pessoa está em cada momento no sítio onde deve estar...
E é aqui que deve estar?
Válter Fonseca: Gosto de trabalhar num lugar onde sou ouvido, onde posso dar um contributo que acrescente valor. Nessa perspetiva, estou confortável onde estou e sei que depois desta pandemia estou mais capaz de enfrentar novos desafios. E há muito a fazer na área da Qualidade. O grande segredo para a visão transformadora da Saúde, depois da pandemia, é através da junção entre o digital e os princípios da Qualidade. É isso que vai dar o mote que queremos e que precisamos no sistema de saúde.
E esta que deveria ter sido a minha pergunta inicial, encaixo-a agora aqui. O que entende por Qualidade na Saúde?
Válter Fonseca: É um conceito de difícil definição, mas há duas formas de o olhar e que não são mutuamente exclusivas. A mais clássica, em que a Qualidade é um conjunto de instrumentos e processos muitos estandardizados, pela forma como são construídos, baseados no rigor e consenso entre pares e que se traduzem pelas normas, certificação, auditorias... Há também uma visão mais conceptual em que a Qualidade transcende o processo e não é são só um conjunto de instrumentos para atingir objetivos. Mas é uma cultura e um espírito que envolvem um conjunto de princípios. E quais são esses? Cuidados de saúde baseados na evidência, que sejam seguros, adequados a cada circunstância e a cada pessoa, para uma maior eficiência do sistema como um todo. Eu identifico-me mais com esta visão da Qualidade, que é mais estratégica para nos dar princípios para progredirmos, sem que deixemos de nos socorrer dos instrumentos clássicos. Porque "a visão sem execução é uma alucinação", como também já alguém descreveu com realismo.
Termino esta nossa conversa com uma imagem associada a si que não esqueço. Há uma imagem da sua filha (com aproximadamente 4 anos agora, talvez na altura com 3) e que o está a ver num canal de televisão e vai até ao monitor fazer-lhe uma festa. Este sentido de responsabilidade pelo país fê-lo fazer uma escolha também em relação à sua família?
Válter Fonseca: Agora a família cresceu, porque há também um filho, um bebé de 9 meses.
A relação com a família é um ponto sensível. Sei que apesar dos muitos momentos de distanciamento com a minha família, também só consegui progredir nesta maratona porque tinha um porto de abrigo, a família. Nessa família incluo claro a mais alargada, mãe, os avós, mas muito em particular a minha mulher, a minha filha e depois o meu filho. Para a minha filha tive de adaptar a linguagem e simplificar. Ela aprendeu e compreendeu. Agora sei que nestes dois anos houve muitos processos do seu crescimento a que eu não assisti. Mas é curioso porque ela diz muitas vezes que "o pai está a tratar da Covid". Penso que a minha filha não tem certamente a noção do que é estar a tratar das pessoas do país, mas a vida tem escolhas e para mim há sempre um espírito de missão em prol de algo maior para todos nós. Eu penso que também contribuí para o mundo onde os meus filhos vão viver. Penso que para nós, países do mundo ocidental, que nunca vivemos tão bem como agora, viver uma ameaça a essa forma de vida é também um motivo para nos empenharmos todos a manter aquilo que de bom temos. Por isso a escolha passa por lhes querer dar um mundo em que acreditamos e que os possa fazer mais felizes.
Joana Sousa
Equipa Editorial
