É como uma sala de teatro, com palcos rotativos em que os protagonistas mudam a cada seis minutos de cenário.
No corredor com setas marcadas no chão a azul, ou vermelho, há precisamente o mesmo número de histórias clínicas para seguir e descodificar. Sobre essas breves histórias, sabem-na em traços gerais nas folhas afixadas na parede e que vão situando em que ponto se encontram do percurso de avaliação. À sua espera há sempre uma dupla de interação, o doente e o examinador. Ambos são médicos e alguns são professores, mas naquele momento o passado apaga-se, como numa peça de teatro onde se encarnam personagens, sem bagagem, nem memória conjunta e partilhada.
São 10 os casos em que terão de assumir o papel de médico que entra numa nova sala e não sabe ao certo o que o espera, ou que especialidade vai analisar.

Seguem instruções, através de uma voz off previamente gravada por Diogo Ayres de Campos, Professor e Diretor da Clínica Universitária de Obstetrícia/Ginecologia e o coordenador da OSCE - Objective Structured Clinical Examination – a nova forma de avaliação prática nos anos clínicos da FMUL e que vem substituir as, até agora convencionadas, avaliações orais e escritas. O processo cronometrado e rotativo de avaliação pretende criar interações entre o futuro médico e o doente, assumindo que o fator pressão do tempo e da observação está latente e mostrando que para um bom desempenho não se pode apenas saber de clínica, mas observar para lá daquilo que lhe é dito, ou mostrado.
“Entre na Estação. Falta um minuto. Mude de estação”, ouvem-se as indicações para que todos saibam o próximo passo a dar. Na régie os slides com a ordem de comando são acompanhados pela voz, automaticamente cronometrados e sem esperar por atrasos ou mudança de rumo, tudo acontece ao mesmo ritmo quer esteja ou não a harmonia presente entre os estudantes de Medicina. Diogo Ayres de Campos e Cristiano Tavares (engenheiro que tem acompanhado o processo do Centro Tecnológico) circulam entre os corredores, para dar pequenas diretrizes do caminho, mas sem muito mais interação.
Cedo, desde as 7h45 os primeiros 80 estudantes de Medicina começam a fazer as contas para as horas que vão passar juntos e a gerir a ansiedade de serem os primeiros a passar pela pioneira avaliação implementada nos anos clínicos do Mestrado Integrado em Medicina. Dos 160 alunos alocados a cada dia, de um total de 320 alunos do 4º ano, dividem-se os blocos temáticos a avaliar. No primeiro dia o semestre de Medicina Familiar, Oftalmologia, Otorrino, Psiquiatria e Neurociências, um dia depois o semestre bloco das áreas Cirúrgicas e da Medicina Interna.
Ao longo de 1 hora, grupos de 20 alunos fazem o percurso pelas salas que apresentam os casos clínicos. Num total de 40 alunos ao mesmo tempo, as equipas vão seguindo circuitos diferentes para que todos tenham a mesma oportunidade de experienciar todas as estações. Um ou outro caso perdido ao longo do circuito, raros foram, no entanto, aqueles que se sentiam desmoralizados no final dessa silenciosa hora de prova de fogo.

O que fez internacionalmente no âmbito da OSCE?
Diogo Ayres de Campos: Os OSCEs já existem há alguns anos, e eu conto com cerca de 5 anos de experiência na realização deste exame. A partir de 2017 comecei a coordenar o OSCE da especialidade do Colégio Europeu de Obstetrícia e Ginecologia, que se iniciou em Inglaterra, passando depois dois anos por Amesterdão e chegou pela primeira vez a Lisboa em 2019. Em 2020 a OSCE foi cancelada devido à pandemia e em 2021 este exame realizou-se online, não tendo sido possível avaliar aspetos de carácter técnico.
E em Portugal, o que fez para implementar este modelo de exame?
Diogo Ayres de Campos: Implementar esta prova na pré-graduação da FMUL é desafiante, porque o número de alunos é muito elevado, as equipas docentes são mais alargadas e apenas algumas áreas disciplinares tinham experiência prática do exame. A nível europeu já existia uma equipa que realizava OSCEs localmente, e assim é tudo mais fácil de montar. Na FMUL foi preciso montar tudo do princípio e o Conselho Pedagógico começou a trabalhar mais afincadamente no projeto desde maio do ano passado. O Centro de Simulação Avançada da FMUL tem o espaço ideal, as condições técnicas ideais para realizar este tipo de exames. Aquilo que pretendo, este ano, é que o OSCE Europeu de Ginecologia e Obstetrícia se realize também no Centro de Simulação.
Tive imenso gosto em participar nesta organização pioneira dos OSCEs na FMUL, e de dar o meu contributo para o arranque. A partir do segundo semestre passarei a coordenação para o Prof. Patrício Aguiar, a quem caberá a responsabilidade de organizar os futuros OSCEs do 4º ano.
São precisas muitas horas para preparar um dia de exame?
Diogo Ayres de Campos: Sim… primeiro é preciso analisar os objetivos pedagógicos de cada disciplina porque são apenas essas as competências que queremos avaliar. De seguida, tem de ser feito um guião com as instruções para os alunos, que não podem ser muito longas, porque só têm 1 minuto para as lerem e interiorizar antes de entrarem em cada estação. Também é necessário preparar um guião para o doente simulado, porque há frases que têm de ser ditas de uma forma estruturada e não pode haver demasiados improvisos. Por fim, é preciso ter uma avaliação cuidadosa de cada item da grelha de avaliação.
Como foi a primeira vez que preparamos esta prova, cada área disciplinar fez uma proposta da sua grelha de avaliação e no final foram todas revistas por mim, porque já tinha alguma experiência com este modelo de exames internacionais. No entanto, as versões finais dos textos foram da responsabilidade das áreas disciplinares. Preparamos a montagem dos cenários e circuitos, com setas no chão para os alunos conseguirem andar pelo trajeto sem se perderem. Estamos a falar de uma avaliação que durou 2 dias inteiros, com mais de 340 alunos avaliados, ou seja, um total de cerca de 3400 estações realizadas. Naturalmente que é necessária uma grande preparação e organização de toda a equipa. Realizamos uma OSCE piloto em dezembro para treinar os aspetos mais essenciais e para transmitir também a experiência aos alunos, para que não fossem surpreendidos no momento da avaliação. Quero salientar que a concretização destes dois dias de OSCEs não seria possível sem uma grande equipa de Professores e colaboradores da FMUL, que são os principais responsáveis pela preparação e realização desta prova. Eu penso que o facto das áreas disciplinares falarem umas com as outras na preparação e no momento de avaliação, é uma mais-valia, porque permite às pessoas inspirarem-se uns nos outros, o que pode catalisar mudanças importantes no ensino. Este exame acontece porque as áreas disciplinares produzem os guiões dos OSCEs, os avaliadores e os atores, sendo os principais responsáveis pela qualidade e pelo êxito do exame. Na organização da prova, gostava de salientar o excelente trabalho do staff das áreas académicas, coordenado pela Luísa Pires, o apoio à avaliação do exame realizado pelo Pedro Mendes, o apoio informático do Pedro Marçal e do Rui Fonseca, e a organização no Centro de Simulação do Cristiano Oliveira. A avaliação realizada diretamente através do programa informático permitiu que as notas fossem lançadas dois dias após a realização do OSCE.
Qual é a importância desta prova numa avaliação que se destina a formar futuros médicos?
Diogo Ayres de Campos: Na Medicina, o conhecimento é muito importante para determinarmos os diagnósticos, os tratamentos, e as vigilâncias adequadas. Mas se não conseguimos transmitir estas informações ao doente, de uma forma que ele compreenda, não estamos a ser bons médicos. Em Medicina, existem também procedimentos que requerem uma grande precisão de movimentos, um grande treino para os realizar. De facto, ser médico inclui todas estas componentes às quais chamamos competências médicas e no passado não era possível avaliarmos isso de forma rigorosa. A partir do momento em que estas competências passam a fazer parte das avaliações, colocamos uma ênfase muito maior no seu treino durante o ano letivo.
Sente, ainda mais, o peso da responsabilidade por ser a primeira vez que a OSCE acontece na FMUL?
Diogo Ayres de Campos: Sim claro, é muito importante que estes exames corram bem sobretudo nas primeiras vezes para motivar todos os envolvidos.
Às vezes, pode haver a tendência para transformar os OSCEs num exame oral, e em vez de avaliar as competências técnicas e comunicacionais com os doentes, volta-se a avaliar conhecimentos. É necessário evitar isto, porque o OSCE é um método de avaliação que implica um grande investimento de tempo, decorrente do número de horas que a equipa docente e a equipa de organização despendem para que esta prova se realize. É fundamental que o OSCE seja usado para avaliar competências que não são possíveis de avaliar num teste de escolha múltipla.
Os alunos sabem o que vai ser avaliado em cada estação?
Diogo Ayres de Campos: Os alunos sabem, deste o início do ano letivo, quais serão as áreas de conhecimento que vão estar envolvidas no OSCE. Mas, quando entram numa nova estação não sabem qual a área de especialidade que vão encontrar. Na vida real, quando um doente entra pela primeira vez no nosso consultório, geralmente não traz já consigo um diagnóstico que encaixa apenas numa área de conhecimento. Este exame serve para avaliar estas competências nos alunos e prepará-los para a rotina diária de um médico.
Este modelo de exame já decorreu, nos dias 31 de janeiro e 1 de fevereiro, é uma fórmula de avaliar que vai continuar?
Diogo Ayres de Campos: Essa é uma decisão que cabe ao Conselho Pedagógico e à Direção da FMUL, mas na minha opinião são avaliações que devem vir para ficar, porque as Faculdades de Medicina se devem preocupar com o ensino de todas as competências necessárias aos médicos atuais. As avaliações do OSCE são justas, porque são objetivas, detalhadas e estruturadas. Reside sobretudo aqui a sua mais-valia.
Vários são os rostos familiares, os professores reconhecem caras já vistas nas suas turmas de teóricas. “Ah, mas eu conheço esta cara” e sorriem, encarnando imediatamente o novo papel de alguém estranho que vem queixar-se de algo que mal sabe o que é. Alguns mais descontraídos no processo comunicacional, outros de mãos trémulas, rabiscam num papel as notas daquilo que consideram importante perguntar. O silêncio pesa nas salas, confere a estes estudantes o peso da responsabilidade. Entre os mais de 60 elementos que preenchem todo o espaço do Centro de Simulação Avançada no Centro Tecnológico de Medicina Avançada, não há um ruído fora do lugar, nem uma fuga de distração.
Enquanto examinava a mão de alguém que se queixava de dormência, uma estudante perguntava à monitora da avaliação se podia dar estímulos ao doente, para verificar reações nervosas. “Pique onde quiser, o doente é seu e estamos aqui ao seu serviço”, respondia a monitora. Mais tarde, essa mesma “aprendiz” sujeita a avaliação e sem certeza de sucesso, confidenciava ver como necessário nas aulas prévias, algumas interações mais, e na verdade nunca experimentadas até ao momento da avaliação. Não obstante dessa dificuldade de interação, era-lhe claro que se davam grandes passos de aprendizagem numa nova realidade de avaliação mais prática e interativa.
É fácil compreendermos o que passa na cabeça de um jovem estudante de Medicina que tem de fingir ser médico diante de professores seus, com tablets em riste e cujas áreas de domínio são precisamente aquelas que está a tentar desempenhar o seu melhor papel. “Não podemos ser demasiado implacáveis, senão podemos quebrar-lhes a confiança e eles precisam ainda muito de incentivo e autoestima. Eles são geralmente todos muito bons, mas o medo pode traí-los nestes momentos de pressão e há que os moralizar, não destruir as expectativas”, confidenciava um dos professores que fazia o papel de doente. Terminada que estava a avaliação e já sem condicionar qualquer comportamento ou a avaliação, o mesmo professor daria conselhos clínicos finais que jamais voltarão a ser esquecidos. “Se lhe aparecer um caso semelhante à frente, não diga que, se calhar, é necessária a cirurgia. Tem de dizer que a cirurgia é urgente!”.
Acabado o circuito de um grupo, realizado ao longo de uma hora, fazia-se o pequeno descanso que juntava todos os médicos e monitores numa sala só. Servidos a rigor com um confortável coffee break, organizado magistralmente pela equipa de colaboradores da Faculdade, os professores trocavam impressões daquilo que os alunos estariam a sentir, avaliando desempenhos. Entre algum paternalismo dos médicos mais velhos e o maior distanciamento dos mais novos que dificultavam um pouco mais a interação com os alunos do 4º ano, Diogo Ayres de Campos engolia à pressa um sumo enquanto saltava entre salas a confirmar que as transições eram feitas devidamente e que os tablets estavam operacionais.
Comunicar não é fácil, principalmente quando o tempo foge em cinco minutos de interação, ou porque a mudança de estação é o sopro de novo recomeço num outro caso, com outros interlocutores. Montanha russa de casos inesperados e dinâmicas nunca controláveis.
Calorosamente a trocar impressões na sala de alunos, fomos sentir o pulso quem esteve no centro do palco. Já com a ansiedade mais branda e após o primeiro impacto com o novo, uma ideia passou de forma clara, a nova forma de avaliação é para manter, para o bem da Medicina!
Pontos mais Positivos |
Pontos a Melhorar |
Exigência equilibrada dos professores |
Muito tempo de espera |
Instruções claras |
Muito tempo isolados entre grupos para não cruzar informação |
Tempo aceitável em cada Estação |
Nem todas as cadeiras são tão fáceis de avaliar |
A preparação desta prova não é tão desgastante |
Mais ensaios antes de prova final |
Esta experiência faz todo o sentido |
Não ter feedback dos professores no final |
Boa organização |
Algumas avaliações não correspondem às aulas práticas |
Melhor método de avaliação que os exames escritos e orais |
Demasiados conteúdos para avaliar num só dia |
Interação com professores é melhor nesta modalidade de avaliação |
Tempo exaustivo no que toca ao trabalho |
Muito semelhante aos role play de Psiquiatria |
Com este exame em mente as aulas precisam de outra preparação |
Texto: Joana Sousa
Entrevista: Leonel Gomes
Equipa Editorial
