Marco Torrado foi sempre muito próximo das pessoas, preocupando-se com aquilo que elas sentiam e o que as movia desde fases ancestrais do seu percurso de vida. Quis sempre cuidar e daí surge o seu desejo por trabalhar em Saúde e, particularmente, em Saúde mental. O gosto pela escrita e pela pintura voltou a emergir, nos últimos anos, mas ainda não sabe o que isto poderá traduzir-se no futuro, mas afirma que “traz novas cores ao caminho!”
É psicólogo clínico e psicoterapeuta. Doutorou-se em Desenvolvimento Humano (Ciências da Saúde), em 2013, na Faculdade de Medicina da Universidade de Lisboa (FMUL), tendo sido Bolseiro de Doutoramento pela Fundação para a Ciência e Tecnologia. Passou por vários contextos profissionais, designadamente em instituições de apoio psicossocial a grupos vulneráveis, cuidados de Saúde primários, serviços hospitalares, intervenção em comportamentos aditivos e assessoria em Saúde mental da infância e adolescência no Ministério da Saúde.
Atualmente, é Professor de Psicologia Médica na FMUL, desde 2013, desempenhando funções na Clínica Universitária de Psiquiatria e Psicologia Médica. É também Coordenador da Especialidade de Psicologia no Centro de Neurociências do Hospital CUF Tejo. Integra os Corpos Sociais da Sociedade Portuguesa de Psicossomática e o Instituto de Saúde Ambiental da FMUL, como investigador.
Nesta entrevista, vamos abordar o tema da ansiedade no regresso ao trabalho e dos estudantes às escolas e universidades, apontando as consequências desta doença que, por vezes, se manifesta com pequenos sinais de que não damos conta.
Quais as preocupações que a ansiedade pode trazer para a vida das pessoas? Que influências físicas e psicológicas podem estar envolvidas? Devido à pandemia Covid-19, teremos uma mudança na interação social? Estes sãos os pontos principais que o Psicólogo Marco Torrado irá responder.
A ansiedade do regresso ao trabalho pode causar bastantes preocupações na nossa vida. Como devemos controlar isso?
O retorno às rotinas habituais após um período de férias acarreta (quase) sempre um tempo de adaptação, por vezes com experiências de algum desconforto, inquietude ou mesmo mal-estar, mas que importa situar naquilo que é um ajustamento normativo a um ritmo mais exigente e tendencialmente menos brando do dia-a-dia. Por vezes com alguns sinais de resistência (ex: sonolência, fadiga ou mesmo irritabilidade), acabamos por nos adaptar aos ritmos menos folgados do pós-férias. É importante tolerar a tristeza que com frequência sucede a períodos de maior prazer e relaxamento sem fazer disso um problema ou pensar que isso pode ser um indicador de perturbação. Grande parte dos ajustamentos que fazemos diariamente face a stressors mais ou menos significativos não acarretam problemas compatíveis com psicopatologia. São, com frequência, estados transitórios de esmorecimento ou mesmo de recolhimento para melhor enfrentar as exigências de retoma de rotinas exigentes, seja na esfera ocupacional ou afetiva e familiar, e é importante gradualmente tolerá-los e aceitá-los. Claro que importa estar atento a possíveis dificuldades mais consistentes nessa retoma, por exemplo se esse mal-estar se prolongar ou intensificar por vários meses.
E as crianças e jovens, também sofrem com este regresso à escola, depois das férias?
Por vezes as crianças e os jovens também resistem ao regresso à escola depois das férias, mas eu diria que ‘sofrimento’ só se verifica numa porção muito residual de situações. Em crianças mais pequenas, por exemplo, pode verificar-se maior dificuldade em retornar às rotinas escolares sobretudo se, durante as férias, parte das rotinas de sono, alimentação ou tarefas de estimulação tiver sido mais descurada; ou mesmo quando passam períodos mais longos com outras figuras afetivas significativas (por exemplo avós) sendo por vezes difícil renunciar a essa presença tão assídua no início do ano letivo. Nos jovens são mais comuns as dificuldades em restabelecer horários, em ‘normalizar’ os tempos de sono e descontinuar períodos de socialização (que, mais contemporaneamente, acontecem não raras vezes on-line e em contexto de jogo ou redes sociais). Mas, como referi, tendem a verificar-se por períodos curtos, transitórios e sem continuidade. Quando mais arrastados no tempo, podem configurar situações menos saudáveis ou mesmo problemáticas, mas tendencialmente associadas a aspetos prévios de vulnerabilidade, como maior dificuldade em regular emoções negativas, tolerar a frustração ou aceitar a mudança.
Que influências, físicas e psicológicas, pode a ansiedade causar na vida dos mais adultos e dos mais novos?
A ansiedade, sustentada na emoção básica ‘medo’ surge em resposta a eventos, estímulos e acontecimentos que são avaliados pelo indivíduo (frequentemente de modo não consciente e automático) como potencialmente ameaçadores. Em níveis mais controlados e não disruptivos ela é um bom motor para fazermos face a eventos percebidos como mais exigentes, como a entrada num novo trabalho ou num novo meio académico, um exame, ou mesmo o início de uma nova experiência afetiva. Contudo nem sempre é assim dado que essa experiência de medo, continuadamente vivida, pode ativar demasiado o organismo, como se este estivesse sempre em preparação para agir face à adversidade. Esse agir mobiliza respostas ao nível de múltiplos sistemas que visam a defesa do indivíduo perante tais situações adversas, seja globalmente mais numa lógica de ‘luta’ e confronto, seja numa perspetiva de ‘fuga’ e evitamento.
Quando experienciada a níveis mais elevados e precariamente controlados, a ansiedade pode interferir negativamente com as várias áreas de funcionamento individual, seja qual for a faixa etária. Pode, portanto, promover alterações desde ligeiras e transitórias a outras mais continuadas no tempo e que, frequentemente, requisitam intervenção clínica em virtude do mal-estar acentuado que provocam. Alterações comportamentais, sentimentos de inadaptação e evitamento face a novas situações e contextos, inibição social marcada e irrequietude, rituais, dificuldades de concentração e manutenção do foco atencional face a determinadas tarefas, enfim, são múltiplas as suas manifestações e são por vezes acompanhadas de (ou antecipando) outros indicadores de desconforto emocional, nomeadamente sintomas depressivos.
Naturalmente que a expressão da ansiedade acontece de diferentes formas em função das várias fases do ciclo de vida e é modulada por inúmeros fatores, desde contextuais (ex: familiares, educativos...), psicológicos (ex: traços da personalidade, estados emocionais...), neurobiológicos e constitucionais, que por sua vez interatuam de uma forma complexa e não linear. Se cada caso é mesmo um caso, penso que é possível destacar que quer nos mais novos, quer nos adultos, a questão da gradual disfuncionalidade em múltiplas tarefas do dia-a-dia é central (o que anteriormente não se verificava), com impacto ocupacional, social e relacional significativamente negativo. Este aspeto normalmente sinaliza uma agudização da ansiedade, já com configuração clínica, o que requer apoio terapêutico especializado.
Uma das principais preocupações para os jovens universitários é o facto de se terem de deslocar para uma nova cidade e encontrar uma casa para viver. Esta preocupação pode causar complicações?
O abandono súbito ou progressivo dos contextos de vida que nos são mais familiares e promotores de estabilidade constitui um acontecimento de vida exigente, desafiador e excitante até, mas por vezes também ansiógeno. É naturalmente promotor de entusiasmo para grande parte dos jovens universitários que saem frequentemente dos seus locais de origem para ir estudar para outros lugares, é como que uma promoção para a vida adulta e para a sua autonomia! Mas justamente por isso acarreta também uma assunção de novas responsabilidades e adaptações, outrora não imediatamente necessárias em virtude da presença da rede familiar e de amigos. Na maior parte dos jovens essa adaptação faz-se de forma saudável, não que isenta de alguns ‘altos e baixos’. Há naturalmente casos em que tal é por vezes acompanhado de algum sofrimento associado ao desenraizamento e a sentimentos de desamparo, sobretudo se, ao longo do desenvolvimento do jovem, alguns desses aspetos foram vividos e pouco transformados interiormente podendo, nesse confronto com a mudança geográfica, ser de algum momento revividos ou evocados. Dentro desta minoria há situações que se vão tranquilizando com a criação de novas redes de suporte social, dentro e fora do contexto académico, e o próprio suporte das figuras afetivas mais significativas; havendo outras que, tendo mais dificuldades em tolerar processos de mudança, precisam de um suporte adicional. Neste âmbito importa salientar que toda a comunidade educativa/académica tem um papel de relevo, não só no apoio (de vários níveis) aos novos elementos, como no incremento da literacia em saúde, e particularmente em saúde mental, ajudando os jovens universitários no seu auto-cuidado e na monitorização do seu bem-estar.
É difícil regressar ao trabalho e à escola depois das férias. Este ano, com a pandemia, com a implementação do teletrabalho e das aulas online, temos pessoas que voltam novamente ao escritório ao fim de vários meses fechados em casa. A interação social vai mudar, devido a este isolamento provocado pela Covid-19? Estaremos prontos psicologicamente e fisicamente para voltar a uma rotina de trabalho em que passamos 7 a 8 horas no escritório, viagens de transporte e trânsito?
Os tempos de pandemia que ainda vivemos convocaram-nos para uma necessidade de adaptação súbita ao imponderável, ao imprevisível. Com os confinamentos a que assistimos e com o necessário ajustamento da vida na sua globalidade, os indivíduos depararam-se com a ausência de estabilidade de que tanto precisamos para garantir o nosso equilíbrio psicológico e, diria até, psicossomático. Não é com certeza por acaso que tantas pessoas em contexto clínico se referem ao abuso nutricional durante o tempo em que estiveram em teletrabalho, ao uso problemático do álcool, à manutenção do sedentarismo mesmo após a diminuição das restrições face aos indicadores de melhoria da situação pandémica. O equilíbrio psicobiológico e que integra a articulação inextrincável entre aspetos físicos e psicológicos do nosso organismo foi como que curto-circuitado pelas exigências da pandemia por COVID-19, tornando-se naturalmente num stressor para uma porção significativa da população. A progressiva adaptação feita a uma vivência comunitária muito distinta e predominantemente on-line durante cerca de 1 ano e meio, à custa de múltiplas ‘muletas’, deixou naturalmente feridas sobretudo no domínio da interação social, mas que considero serem reparáveis, assim haja continuidade de melhoria do cenário pandémico e reativação da vida afetiva e dos grupos de pertença.
Não obstante tantas mudanças em tão poucas décadas continuamos a ser indivíduos eminentemente gregários, profundamente motivados pelo vínculo afetivo enquanto garantia da nossa sobrevivência e presumo que tal continuará a verificar-se, não obstante os inúmeros novos canais que facilitam (mas não substituem) o contacto humano, integral e profundo.
Claro que a retoma aos novos ritmos requisitará também uma adaptação, que importa fazer de forma tão ponderada e serena quanto possível, assumindo de antemão que se trata de processos transitórios que exigem tolerância e capacidade empática, com os outros e connosco.
Como é que as famílias se podem preparar para este regresso?
Assumo não ter receituário para tal, com toda a humildade! Penso, contudo, que a chave para um bom regresso a antigos/novos ritmos vivenciais será sempre o investimento consistente e continuado nos contextos afetivos que alimentam o equilíbrio psicológico dos indivíduos, sem os quais periga a possibilidade de cultivar e amadurecer o potencial adaptativo do ser humano e que, como bem vimos, foi determinante para estes últimos tempos. Reinventar criativamente o dia-a-dia precisa dessa tónica afetiva, motor de esperança construído na relação com os outros e consigo mesmo, para tolerarmos as múltiplas adversidades que enfrentamos diariamente e outras, de maior magnitude, que por vezes nos retiram o sentimento de estabilidade e amparo de que tanto necessitamos para não incorrer em processos de alostase física e psíquica. Por outro lado, a dimensão do auto-cuidado parece-me essencial: a promoção e manutenção dos nossos hábitos e rotinas, desde alimentares, do sono, da vida afiliativa, entre outros. Cuidarmos de nós, do nosso ser psicossomático, uno, em que mente e corpo são as duas faces de uma mesma moeda é absolutamente determinante para o nosso sentimento de integralidade e para nos sentirmos vigorosos e motivados para caminhar por ladeiras já conhecidas e escalar novas montanhas!
Diria, portanto, que os regressos se fazem com esperança, estabilidade, auto-cuidado e proximidade(s) afetiva(s). Esta possibilidade de termos um lugar gratificante na nossa história individual, como na da nossa família e da comunidade é absolutamente essencial para ingressar e não temer os novos caminhos do nosso caminho.
Marco Torrado
Professor de Psicologia Médica na FMUL
Para finalizar esta reportagem, é de referenciar um espaço dedicado a este tema que apoia os alunos, sempre que estes necessitem, na Faculdade de Medicina da Universidade de Lisboa (FMUL). O Espaço S é um local onde é possível abordar os assuntos essenciais para o bem-estar dos alunos, onde profissionais os ajudam a compreenderem-se e a compreender os problemas. Onde os alunos podem ser eles próprios, sem barreiras, onde o que eles acham ser importante, é o que realmente é importante.
Uma entrevista ao Psicólogo do Espaço S, Rui Martins.
Os alunos vindos de outras cidades têm tendência para uma maior dificuldade de integração. Devido à pandemia esta dificuldade pode agravar?
Os estudantes deslocados deparam-se com mais dificuldades quando ingressam no ensino superior porque, para além da adaptação ao curso e às novas e maiores exigências, são forçados a um nível de autonomia que, muitas vezes, ainda não tinham. Estes estudantes acabam por ter mais fatores de risco para desenvolverem perturbações psicólogas ou problemas de adaptação. Quando as aulas foram online na sua totalidade, muitos destes estudantes optaram por ficar na casa de família, evitando o isolamento.
Nos períodos em que tal não foi possível, estes estudantes ficaram mais isolados, sobretudo os alunos que estavam a ingressar pela primeira vez, uma vez que não tiveram oportunidade de fazer um processo de socialização, tão importante nos primeiros meses do ano letivo. Toda a vida académica, que não passa só pelas aulas foi afetada e naturalmente que os estudantes deslocados acabaram por sofrer mais com isso.
Que consequências psicológicas pode trazer esta dificuldade para estes alunos?
Os jovens que, abruptamente, se veem afastados dos pais e por isso forçados a um processo de autonomização “instantâneo”, tendem a desenvolver psicopatologia ansiosa. Aqueles que acabam mais isolados, e diminuídos na sua capacidade de procurar atividades prazerosas e os relacionamentos sociais, tendem a desenvolver perturbações depressivas. Muitas vezes desenvolvem também adições com as tecnologias, redes sociais, jogos e binge watching de conteúdos visuais, isto é o visionamento compulsivo de vídeos, filmes e séries.
Devemos realçar que as perturbações psicológicas são multifatoriais e, por isso, não podemos afirmar que são causadas pelas dificuldades de integração e o isolamento. Certamente existe uma combinação de outros fatores anteriores ou concomitantes que acabam por desenvolver e precipitar as perturbações.
Passamos a estar todos mais afastados, devido à pandemia. Isto pode gerar novas formas de ansiedade?
Não creio que sejam novas formas de ansiedade. Parece-me que é um novo contexto, novos desafios e novos medos que nos levam às formas de ansiedade que já conhecíamos, que já chegavam às consultas e que já conduziam à procura de ansiolíticos, muitas vezes sem acompanhamento adequado. O afastamento, ou o isolamento social, já se conhecia como fator de risco, numa combinação viciosa: isolado fico mais exposto à doença psicológica, se estou doente isolo-me mais.
Talvez o que é novo para algumas gerações é o medo das doenças, a proximidade com a morte e a incerteza, que ainda não tinham experimentado nos seus anos de vida. Há certamente um aumento dos fatores de risco já conhecidos e investigados. É certamente, uma época mais difícil para todos.
Uma última nota
Pode ser difícil cada um de nós saber se o que se está a passar dentro de si é uma reação normal à saída de casa dos pais, a um novo contexto académico mais exigente ou uma resposta emocional ajustada à pandemia e ao “isolamento social”. Mas nos serviços de saúde encontramos a resposta para essas dúvidas e o apoio terapêutico, se necessário. Um psicólogo, um psiquiatra e o médico de família podem ser muito importantes. Os alunos da FMUL podem contactar o Espaço S, o serviço de apoio psicológico do Gabinete de Apoio ao Estudante.
Rui Martins
Psicólogo do Espaço S
Leonel Gomes
Equipa Editorial
