Está a chegar a nova reforma do ensino clínico. É uma grande mudança no ensino da medicina e, por isso, há algumas preocupações e os receios por parte daqueles que vão abraçar este novo plano curricular.
Os alunos são os principais recetores desta renovação e, assim sendo, não poderíamos deixar de os escutar. Partilhamos a opinião de dois alunos que manifestam o seu olhar perante esta nova reforma do ensino clínico. Expõem aquilo que para eles são os benefícios desta reforma do ensino, mas também, as suas inquietações com esta mudança.
Bernardo Alves nasceu a 20 de Junho de 2000 no Barreiro e com quatro anos mudou-se para Lisboa. Ao longo da sua infância foi mudando de escolas, mas acabou por fazer todo o ensino secundário no Colégio Valsassina. Ingressou em Ciências e Tecnologias, no Ensino Secundário, por achar que era a área que mais se adequava às suas características e porque tinha um sonho ingénuo desde criança de curar o cancro. No Secundário teve a sorte de ter um excelente professor de Biologia que lhe permitiu desenvolver projetos de investigação com investigadores de diferentes universidades, desde a Beira Interior, à Universidade de Aveiro e ao próprio iMM.
Felizmente, esses projetos foram reconhecidos nalguns congressos e conferências e teve o prazer de, por exemplo, apresentar um trabalho na INTEL ISEF 2018 em Pittsburgh, entre outras experiências e prémios. E, se essas experiências foram fundamentais para o seu crescimento tanto pessoal como profissional, foram também essenciais para perceber que um trabalho a tempo inteiro num laboratório não era algo que aspirasse para a sua vida. Assim, Medicina surgiu naturalmente e, atualmente, diz com certeza que foi a decisão correta.
Por último, na FMUL contribuiu para projetos extraordinários da Faculdade, do qual destaca o Solvin’IT e o Conselho de Escola, entre outros.
Como olhas para esta nova Reforma no Ensino?
Bernardo Alves: Sendo um aluno do 3º ano, creio que não consigo compreender na totalidade a importância desta reforma uma vez que nunca saberei como era o ensino clínico pré-reforma. Contudo, do que procurei investigar e saber, parece-me uma excelente oportunidade para a FMUL e para os seus estudantes dado que a última vez que o programa foi atualizado foi em 2006/2007 e, enquanto Faculdade de referência, temos que procurar estar sempre atualizados. Esta reforma já está a ser trabalhada há muitos anos e os princípios pelas quais se rege (menor rácio tutor/aluno; integração de Medicina/Cirurgia; avaliação baseada em outcomes, entre outros) parecem-me ser ideias positivas e que contribuirão para uma melhor formação dos estudantes na Faculdade de Medicina da Universidade de Lisboa. Assim, diria que olho principalmente para esta reforma com esperança.
Enquanto aluno e membro do órgão do governo da Faculdade, qual é a tua opinião sobre esta Reforma?
Bernardo Alves: O Conselho de Escola permitiu-me neste último ano ter um maior contacto com a reforma e com a preparação da implementação desta. Desse contacto, como referi anteriormente, pude aferir que esta reforma já está a ser preparada há muitos anos por pessoas muito competentes, tanto docentes como alunos, e apenas não foi implementada já este ano por causa do SARS-CoV2. Assim, creio que esta reforma está bem estruturada e organizada, fruto dos anos de trabalho nela colocados e, mais importante de tudo, está assente em bons pilares. Além disso, creio que era necessária para atualizar a nossa formação.
Ainda assim, uma vez implementada a reforma, é também nossa responsabilidade monitorizar e detetar os seus possíveis pontos negativos e alterá-los na perspetiva de melhorar a qualidade de formação dos estudantes
Quais as expectativas dos alunos em relação à nova Reforma?
Bernardo Alves: Antes de mais é preciso destacar que não sou capaz de falar por todos os alunos, apenas podendo referir a minha opinião e a de alguns colegas com quem tenho debatido este tema. Tendo isso em conta, creio que a expetativa geral é a de que a reforma melhore o ensino e a formação dos futuros médicos, uma vez que este é o principal objetivo da FMUL e o que os alunos dela esperam.
Das conversas que tenho tido com os meus colegas, esta reforma é vista com esperança, mas também com alguma apreensão, acredito que vítima do medo do desconhecido - algo normal e que apenas será completamente desmistificado para o ano, quando estivermos realmente a experienciar as alterações realizadas. Ainda que seja natural haver algum atrito à mudança e uma certa tendência para se cair na conformidade, é crucial haver mudanças porque só estas levam a progressão. É, contudo, também necessário garantir momentos de reflexão e debate sobre estas mudanças e possíveis ajustes necessários.
A título de exemplo, a ideia de uma avaliação integrada é algo que reúne algum receio por parte dos estudantes; por outro lado, a diminuição do rácio tutores/alunos é um dos aspetos que me parece ter sido recebido com grande entusiasmo.
Como será a adaptação dos alunos?
Bernardo Alves: Uma vez que os estudantes que irão passar pela reforma não conhecem o programa anterior acredito que a adaptação será fácil. Mesmo assim, ocorrerão várias reuniões ao longo dos semestres para auscultar os estudantes, de forma a fazer os ajustes necessários, facilitando a adaptação e corrigindo eventuais falhas.
Enquanto aluno, quais as melhorias que esta Reforma irá trazer para o ensino da medicina?
Bernardo Alves: Esta reforma atualizará o programa curricular tendo em conta as falhas detetadas desde a implementação do programa anterior de 2006/2007 (tanto por revisores internos como por revisores externos do Best Evidence in Medical Education(BEME)) e a evolução da pedagogia e ensino médico. Os conceitos de outcome-based education, currículo SPICES (Student-centered; Problem-based; Integrated; Community-based; Elective - based; Systematic), a diminuição do rácio tutores/alunos, a integração de Medicina/Cirurgia de forma a unir os dois e dividir os semestres por sistemas, entre outros são pilares desta mudança e são métodos comprovados de eficácia no ensino da Medicina. Para o ano teremos que passar estes conceitos teóricos para a prática e posteriormente avaliar se realmente estão a provocar melhorias no ensino.
Há algum aspeto menos positivo que, na tua opinião, deveria ser melhorado?
Bernardo Alves: Respondendo de forma direta, creio que há pontos da reforma mais controversos entre a comunidade estudantil como a avaliação integrada dos módulos do semestre num único exame e numa OSCE (Objective Structured Clinical Examination), apesar de tal diminuição de momentos de avaliação ser importante para haver um conhecimento médico mais integrado, e a definição de critérios de passagem no exame prático adaptados à dificuldade deste, por exemplo. Contudo, não creio que se possam já definir como aspetos menos positivos. Foram decisões baseadas em bibliografia e em planos curriculares de outras faculdades e cujo único propósito é a melhoria da preparação dos estudantes do MIM da FMUL. Reiterando uma ideia importante, todos estes aspetos serão posteriormente avaliados, verificando se realmente são benéficos para a formação ou não, uma vez que estão definidos planos de avaliação da reforma e da implementação desta.
Sentes que os alunos estão preocupados com estas alterações, principalmente os que transitam do 3º para o 4º ano?
Bernardo Alves: Sim, acho que os alunos estão preocupados. Como referi na resposta anterior, há características do plano curricular que podem ser assustadoras como a realização de um único exame teórico por semestre com integração das áreas disciplinares e a definição de critérios qualitativos de aprovação no exame prático, entre outros. Creio que se pode dizer com segurança que leva a um aumento dos níveis de ansiedade e pressão nos estudantes com apenas um exame “de tudo ou nada” quando comparado à alternativa de ter um exame por cada área disciplinar. É algo que é preciso ser tomado em consideração. Tendo dito isso, acho que um exame teórico integrado pode ter também vantagens uma vez que se assemelham mais a casos reais onde os doentes podem ter múltiplas patologias de diferentes sistemas em simultâneo.
Por último, é preciso também referir que a maioria dos alunos recebeu estas informações dia 19 de Julho numa sessão de esclarecimentos entre duas épocas de exames exaustantes. Nesses momentos é muito mais fácil ver as coisas pela negativa.
Creio que é preciso ir para o próximo ano de cabeça limpa, sem ideias pré-concebidas do quão bom ou mau vai ser e depois na altura sim, avaliar os vários aspetos da reforma e como esta pode ser melhorada. Da minha parte apenas posso garantir que os estudantes serão ouvidos, a sua opinião será transmitida e que os melhores interesses deles serão sempre defendidos pelos estudantes nos órgãos de decisão.
Como é que se prepara um bom médico?
Bernardo Alves: Sendo eu um estudante de 3º ano, não me sinto na capacidade de dar uma resposta fundamentada a esta pergunta tão importante. Assim, apenas tendo em conta as minhas crenças pessoais e a limitada experiência que estes três anos de FMUL me deram, creio que há certos pontos importantíssimos, tendo eu a certeza que me devo estar a esquecer de outros igualmente ou mais importantes.
Os anos pré-clínicos (entenda-se os três primeiros anos) são fundamentais. Tenho um professor que diz que nos primeiros três anos se dá praticamente toda a matéria e os três anos seguintes são passados a sistematizar o conhecimento previamente adquirido e aprender como agir com tal conhecimento. Acredito nisso e creio que um bom plano de estudos pré-clínico é crítico.
Adicionalmente, os tutores nos anos clínicos são fundamentais. Do contacto que tenho com estudantes mais velhos, tutores “fazem” uma área disciplinar, podendo moldar completamente a nossa opinião relativamente à mesma. Por exemplo, a contratação de novos docentes potencialmente motivados para o ensino e a diminuição do rácio tutores/alunos é uma das medidas da nova reforma que creio mais irá contribuir para a melhoria da formação médica na FMUL.
Por último, acho que é fundamental estimular o raciocínio clínico e a prática dos estudantes. Acredito que estes dois, juntos, oferecem uma base importantíssima, permitindo aos estudantes uma abordagem básica competente ao doente e oferecendo pilares muito sólidos para a formação especializada.
O Daniel Lourenço foi colocado como Interno de Formação Geral no Hospital Beatriz Ângelo, em Loures, e foi estudante da FMUL no período 2014-2020. Ao falar com ele apercebo-me que transmite muita maturidade ao explicar que para escolher a especialidade, não basta o gosto pessoal, que é o mais importante. Têm também que pesar outros fatores, como o estilo de vida, remuneração, as horas de trabalho inerentes e também o tipo de trabalho, que pode ser muito distinto consoante as especialidades. Por tudo isto, ainda não sabe bem que especialidade escolher, porque as expectativas e momentos de vida podem influenciar a escolha.
Quando lhe pergunto se pode referir duas das opções que gosta, é curioso perceber que tanto se interessa pela mente, Psiquiatria, uma das áreas que mais interesse lhe despertou no curso; como também pelo desempenho e qualidade de vida da pessoa, na área da Medicina Desportiva. Fiquei com a convicção que, seja qual for a área a escolher, vai faze-lo com plena noção do que tem pela frente e dar o máximo pelos seus pacientes.
Durante a nossa conversa mostrou sempre preocupação pelo aspeto prático e clínico da medicina, sem descurar a componente humana: a comunicação com o paciente é essencial, e em geral vê como extremamente positiva esta evolução do ensino, que, segundo ele, tem sempre que acontecer.
Na altura de escolher porque escolheste a FMUL?
Daniel Lourenço: Tinha boas referências da faculdade, honestamente não acho que haja grandes diferenças em relação à outra faculdade de medicina de Lisboa. Não acho que haja diferença de qualidade, uma face à outra. Basicamente tinha boas referências, algumas pessoas que conhecia tinham andando na faculdade e foi essencialmente por isso.
O que achaste a nível de ensino e áreas?
Daniel Lourenço: Apercebi-me que o grau de exigência é elevado, existe uma exigência para ter determinado tipo de rendimento, o que é fulcral.
Adorei o grupo de amigos que criei e o espírito de grupo e de entreajuda que se desenvolve é um aliado no processo de aprendizagem. Em termos de ensino tornou-se mais ou menos óbvio, ao início, que é exigido que existam bases teóricas, sólidas. Nos primeiros anos é dada demasiada primazia a áreas como a anatomia, a título de exemplo e em detrimento de outras que acho que deveriam ter mais relevância, como a fisiologia e a microbiologia. Especialmente estas duas vão ser muito mais importantes nos anos clínicos do que a anatomia humana. Claro que não se pode descurar anatomia, mas em termos de proporção, devia dar-se mais ênfase ao ensino da fisiologia e da microbiologia face aquilo que aconteceu na minha altura em 2014. Foi uma noção que sempre tive, que quando se entra nos anos clínicos, é bastante útil teres uma boa base de fisiologia, fisiopatologia e microbiologia.
E em relação aos anos clínicos?
Daniel Lourenço: Em relação aos anos clínicos, o principal reparo que se pode fazer é o facto de idealmente haver mais e melhor contacto com os doentes. A questão do rácio tutor/aluno é muito importante e é algo que se está a tentar mudar. É bastante importante ter um rácio que seja o mais equilibrado possível, até porque o processo de aprendizagem torna-se mais prazeroso e o acompanhamento que é dado ao aluno é superior. Temos, também, que ter em conta que os professores e tutores têm a sua atividade clínica; no meu caso sempre nos foi dado um bom acompanhamento por profissionais de excelência, mas não sei se isso acontece com todos. Para melhorar esse processo acho que seria ideal o rácio ser mais equilibrado.
Em que mudanças te parece que se vai sentir a Reforma do Ensino?
Daniel Lourenço: Tendo em conta o que é previsto que aconteça, vejo que nada trará desvantagens. Há alterações que a acontecer, são muito bem conseguidas, nomeadamente a questão do rácio, o fato de as aulas teóricas estarem disponíveis e/ou serem lecionadas via digital. Algumas disciplinas nos anos clínicos já recorriam a esta abordagem e para a aprendizagem é positivo. É diferente da experiência da aula e de se estar lá, e se calhar há pessoas cuja aprendizagem será superior se estiverem no local, mas em geral acho que é mais vantajoso as aulas terem esse ‘auxílio digital’ . Outra coisa que também se falava que iria acontecer era mudar um pouco a forma como a aprendizagem é feita, porque durante o curso a aprendizagem é muito direcionada para o meio hospitalar. Facto é que uma parte muito significativa das pessoas, que termina o curso, não vai trabalhar em meio hospitalar. Há muito mais vagas em medicina geral e familiar do que em qualquer outra especialidade. É por isso importante adaptar mais o ensino a essa circunstância. É obvio que o ensino hospitalar não deve deixar de existir, e é uma parte extremamente relevante do ensino médico, mas deve ser complementado com uma abordagem pedagógica que vise uma maior proximidade à comunidade.
O que dizes de se juntarem as áreas cirúrgicas e as medicinas?
Daniel Lourenço: Honestamente não desgostei de como estavam na minha altura nesse aspeto, mas se calhar organizar por sistemas, falar de coração, pulmões, possa fazer sentido e parece-me uma medida boa.
E a importância dada às foundation skills?
Daniel Lourenço: Eu penso que é uma medida que enriquece a aprendizagem. Porque, à medida que o curso vai progredindo e se aproximando do fim, vai-se tornando cada vez mais certo que ter bases sólidas teóricas, é necessário. Mas não é o suficiente para se ser um excelente médico, que é o desejável. A parte do relacionamento humano é muito importante, a parte da gestão da saúde e ter noção em termos económicos sobre como funciona um ambiente hospitalar, também é importante, mas eu daria mais relevância à parte da relação com o doente. É um tema complexo, porque não é só necessário ter capacidade para comunicar com o doente, às vezes as circunstâncias em que o médico está envolto, mesmo tendo excelentes capacidades comunicativas, não são as melhores: cansaço, turnos que não acabam… A capacidade de gerir estas situações, em abono da verdade, só se adquire com a prática, mas bases teóricas para melhorar o relacionamento com doente, serão sempre bem-vindas e acertadas.
Existem ainda mudanças a nível das avaliações, mais integrativas, sem avaliações orais. Como analisas esta mudança?
Daniel Lourenço: De fato é difícil avaliar oralmente alguém de forma justa, homogénea e equitativa; os critérios podem ser subjetivos. Poderá contar mais a forma como a pessoa comunica, o modo como expressa o conhecimento e não o facto de possuir esse mesmo conhecimento. Acho ótimo encontrarem métodos de avaliação mais homogéneos. Se os critérios forem homogéneos, se se valorizar a capacidade de aplicar conhecimento, e não somente a posse do mesmo, acho que é um passo correto, é uma melhor forma de avaliar a capacidade clínica.
Parece-me, também, que é extremamente relevante o modo como se planeia e se faz um teste de escolha múltipla.
Em Ginecologia-Obstetrícia,e em Medicina 2, era notório o cuidado e a minúcia com que o momento de avaliação escrito era delineado se com esta reforma houver uma homogeneidade de padrões de qualidade, elevando-os o máximo possível, todos os intervenientes no processo educativo da faculdade sairão beneficiados.
Se fosses agora para o quarto ano como achas que seria?
Daniel Lourenço: Não acho que se pretenda que haja mudanças de dificuldade, pretende-se que haja um processo formativo melhor. Não que anteriormente não fosse bom, mas o objetivo da formação médica é ser sempre o melhor possível, atender a novas necessidades e formar profissionais com mais e melhores qualidades clínicas. Por isso, honestamente, acho que se eu visse que a mudança ia ser nestes trâmites (de melhorar o processo de ensino) sentir-me-ia confortável.
Em termos gerais quais são para ti as principais mudanças e as que destacas como fundamentais?
Daniel Lourenço: É de salutar a constante procura de estratégias que ajudem a optimizar o processo de aquisição de competências teóricas e práticas. Para mim é fundamental a questão do rácio tutor/aluno, um ensino que tenha mais em linha de conta a prestação de cuidados à comunidade e a atribuição de uma maior preponderância ao ensino prático.
Leonel Gomes | Sónia Teixeira
Equipa Editorial