Daniel Sampaio é professor jubilado da Faculdade de Medicina da Universidade de Lisboa, psiquiatra, escritor (identifico 28 obras da sua autoria), fundador de vários organismos e entidades com vista à terapia familiar e Saúde mental. Foi diretor do Serviço de Psiquiatria do Hospital de Santa Maria entre 2014 e 2016 e é com grande prazer que se assume “Sportinguista de gema”, tendo já sido Vice-Presidente da Assembleia Geral do Sporting Clube de Portugal. Quando consultada, a biografia de Daniel Sampaio sugere-nos o homem dos mil ofícios, das mil atividades, dos mil feitos e realizações. Defensor acérrimo de uma cultura humanística. Acredita que o médico, enquanto profissional de Saúde, deve cultivar a relação médico-doente, sendo apologista por tratar o doente com tato, com humanidade, e não apenas como mais um número ou uma prescrição clínica. Durante a nossa entrevista, revela o amor que sente pela família bem como o estado de vigilância constante e rigoroso que tem para com os seus doentes. É com a voz enrouquecida, olhar doce e gestos afáveis que partilha connosco a sua experiência, as suas crenças e a disponibilidade total de ajudar o próximo.
A realização desta entrevista despertou o peso da responsabilidade, por tudo aquilo que realizou ao longo dos seus 74 anos de vida e, em simultâneo, o seu legado familiar. Irmão do ex-Presidente da República Portuguesa, Jorge Sampaio, filho de Fernanda Bensaúde Branco e de Arnaldo Sampaio, médico português especialista em Saúde Pública, que ficou famoso por assumir o cargo de Diretor Geral da Direção Geral de Saúde, no início da década de 70, tendo sido também o grande promotor do Plano Nacional de Vacinação e da criação dos Centros de Saúde, como os conhecemos hoje. Conclusão: é impossível rejeitar o seu legado familiar.
Falava-vos há pouco do peso da responsabilidade, não só pelo que Daniel Sampaio representa, mas também porque em março deste ano, atravessou uma prova de fogo nos cuidados intensivos do Hospital de Santa Maria com infeção severa por Covid-19. Não tinha a certeza de encontrá-lo com vontade de falar sobre o sucedido. A verdade é que, como o próprio me veio a confessar mais tarde, ao longo do internamento de 50 dias, houve um momento em que desistiu de lutar pela sua vida, tal era o cansaço e o isolamento provocados pela doença.
No dia da nossa entrevista, na sala de reuniões dos serviços centrais da FMUL, tenho uma folha com algumas perguntas anotadas e o gravador. Pouso tudo sobre a mesa. Ao reparar na minha folha A4, diz-me: “- Vejo que veio preparada. Serei capaz de responder a tudo isso?”. Receio ter-me excedido na quantidade e ou na profundidade das perguntas. Apesar disso, confirmo aquilo que já desconfiava: tinha perante mim um ser humano com uma capacidade de entrega incrível. Quando lhe pedi para evidenciar a sua principal característica, “ser participativo” foi a eleita, contudo, após conhecer as suas histórias e motivações, percebo que é a entrega total a tudo o que faz e a tudo o que ama que ainda o mantém ativo não só no consultório como na vida. Mesmo após ter atravessado o inferno no Covidário, Daniel Sampaio mantém-se fiel às suas convicções: escreve, conversa muito com os netos – para ele os mais jovens são um poço de sabedoria e potencialidades, respeita a fé dos homens, mas tal como Voltaire, apenas cumprimenta Deus.
Ao longo da sua vida foi alvo de várias distinções, foi fundador da Sociedade Portuguesa de Terapia Familiar, em 1979, bem como de vários núcleos e projetos de apoio à Saúde mental, escreveu livros, foi vice-presidente da Assembleia geral do SCP, etc… no meio desta panóplia de feitos e realizações, conte-nos: Quem é o homem por trás dos mil ofícios?
Daniel Sampaio: É difícil responder a essa pergunta, mas eu diria que aquilo que procurei sempre foi ser muito participativo. Mesmo quando estava no ensino secundário, estávamos no tempo de Salazar, e as associações de estudantes não eram permitidas. Na altura, eu pertencia a uma associação, chamada Comissão Pró-Associação dos Liceus, em que nos envolvíamos em muitos colóquios, muitas reuniões e falávamos com os estudantes de diversos Liceus, de modo a fomentar o espírito associativo nos anos que precediam à entrada na Faculdade. Penso que foi quando comecei verdadeiramente a minha participação. Depois, na Faculdade, trabalhei sempre na Associação de Estudantes, fui delegado de curso, algo muito importante na altura, uma vez que assumia as responsabilidades de organização dos exames e por vários apoios aos estudantes. Mais tarde, fundei várias associações: a mais importante de todas foi em 1979, a Sociedade Portuguesa de Terapia Familiar, algo muito inovador para a época. Não havia terapia familiar em Portugal e juntamente com outros colegas fundámos a Sociedade Portuguesa de Terapia Familiar, que tantos anos depois, em 2021, tem mais de 2 mil sócios e delegações em Lisboa, Porto e Coimbra. Ao longo destes anos, formámos muitos psicólogos, psiquiatras, pedopsiquiatras e Assistentes Sociais. Fui eu que lancei as bases dessa associação que felizmente teve muitos continuadores.
Ao longo da minha carreira, sempre me dediquei muito à adolescência e às famílias. Aqui, no Hospital de Santa Maria, criei o atendimento para jovens em risco de suicídio, uma estrutura chamada Núcleo de Estudos do Suicídio. Depois, com base na formação no estrangeiro que fiz, interessei-me muito por anorexia e bulimia nervosa, tendo criado também o Núcleo de Doenças do Comportamento Alimentar. Esta última estrutura caracterizou-se não só por ser uma associação de cariz científico, como também pela criação de núcleos de psicólogos e psiquiatras, que se dedicaram ao tratamento dessas doenças em Lisboa, Porto e Coimbra.
Nos anos 90, havia os psicólogos e os psiquiatras que tratavam essas doenças, mas são doenças muito difíceis de se tratar, razão pela qual a criação destes núcleos tenham contribuído para melhorarmos os atendimentos nestes principais hospitais: São João do Porto, o Hospital Universitário de Coimbra e aqui, Santa Maria. Portanto, eu diria que as duas características mais fortes, em mim, é a participação e a persistência. Ao longo deste percurso lutei contra muitas dificuldades, e uma das provas foi a criação do Espaço S, que agora pertence ao Gabinete de Apoio ao Estudante, mas foi algo muito difícil de se criar nesta Faculdade, havia muita oposição.
E porque é que foi tão difícil criar o Espaço S?
Daniel Sampaio: Porque havia uma ideia completamente errada de que os estudantes de Medicina não tinham problemas. Como eram muito bons alunos e tinham entrado na Faculdade de Medicina não tinham problemas psicológicos e isso não é verdade. Há muitos estudantes de Medicina com dificuldades psicológicas, porque o curso é exigente, muitos deles são deslocados, vêm de famílias que estão longe, têm de ir para residências universitárias ou para quartos alugados. Na altura da sua criação, em colaboração com a Associação de Estudantes, a Faculdade não nos deu grande apoio. É muito interessante esta história, porque iniciámos as consultas para os jovens no Estádio Universitário e só depois, após se verificar que eram importantes, é que houve uma mudança. Hoje em dia, já temos 2 psicólogos contratados pela Faculdade, vamos a caminho do 3º, uma prova de que este serviço se justifica completamente. Tenho muito orgulho de ter sido eu, juntamente com os Presidentes da Associação de Estudantes, de 2 anos seguidos, a lançar as bases para aquilo que é hoje o Espaço S. Atualmente, temos muitos pedidos de estudantes e esses psicólogos têm feito um excelente trabalho.
Sei que tem uma relação muito forte com a sua família, especialmente com os seus netos. É por causa da vivência com eles, enquanto adolescentes, que todas as questões circundantes ao crescimento e comportamento dos jovens lhe são tão “queridas”?
Daniel Sampaio: Não. Isso foi uma razão de especialização dentro da psiquiatria. Quando eu estava a fazer a minha formação em psiquiatria, contatei com um pedopsiquiatra muito conhecido nos anos 80, o Doutor João dos Santos, que gostava muito de mim, insistia que eu devia seguir por uma área onde não houvesse especialização. Isto, porque os pedopsiquiatras ocupavam-se de crianças e os psiquiatras de adultos, havia ali uma zona, entre os 15 e os 21 anos de idade, onde naturalmente já existem muitos problemas psicológicos, entregue a ninguém. Foi o Dr. João Santos quem me desafiou: " Começa a desenvolver esta área. É uma boa área para ti ". Na verdade, os pedopsiquiatras tinham dificuldade em lidar com os adolescentes, não tinham treino, ocupavam-se, sobretudo, das crianças e os psiquiatras de adultos. No final dos anos 70, quando eu fiquei especialista de psiquiatria, dediquei-me muito à adolescência. Comecei a fazer consultas, criei uma consulta de adolescência no serviço de psiquiatria, e passei a ir a muitos centros de saúde. Ao longo da minha vida fui a muitas escolas falar com jovens.
Agora, evidentemente, que a adolescência dos filhos e a dos netos, particularmente a adolescência dos netos, foi muito marcante. A certa altura uma pessoa vai envelhecendo e perdem-se contatos e os meus netos atualizam-me sobre as questões do dia-a-dia. Tenho 7 netos, entre os 10 e os 21 anos de idade, e posso concluir que a adolescência é muito diferente de quando eu comecei a trabalhar com adolescentes. A grande diferença, fundamentalmente, é a internet, não é?
Daniel Sampaio com os netos
Artigo de opinião escrito pelo Professor. Publicação desconhecida.
São os seus netos que o sensibilizam para estas novas temáticas?
Daniel Sampaio: Sensibilizam. Contam-me o que se passa nas escolas, como é que estamos nas redes sociais, quais são as novidades. Recentemente, há uns dois anos, foram eles que me explicaram o Tik Tok, que é uma coisa muito importante para as minhas consultas...
Como é que foi essa abordagem? Como é que lhe apresentaram o Tik Tok?
Daniel Sampaio: São muitos os adolescentes que me procuram. E uma das questões que os pais põe é justamente o tempo que eles passam no telemóvel, nas redes sociais e no computador. Logo, tenho de estar muito atualizado sobre todas estas questões que tenham a ver com as redes sociais e com as novas tecnologias. Os meus netos atualizam-me muito: mostram-me o que é o Instagram, o que é o Tik Tok, o Twitter, como funcionam. É uma coisa nova que eles me trazem e que me permite uma atualização.
Mas, o Professor está presente nestas redes?
Daniel Sampaio: Não. Eu acho que tenho de ter uma certa reserva. Só utilizo o Facebook e não muito. Sou da opinião que se quero permanecer como alguém que possa falar sobre isso, não me posso envolver muito, do ponto de vista pessoal. Apesar de tudo, como tenho uma página pessoal, onde tenho a minha biografia, muitos sabem a meu respeito, mas eu não me envolvo diretamente, e mesmo com aqueles que estão em tratamento comigo, eu prefiro sempre as consultas presenciais. Faço algumas online, mas sobretudo as consultas presenciais, e não ando nas redes sociais, porque isso dificultaria o meu trabalho profissional.
O seu pai foi um dos principais mentores da criação dos Centros de Saúde e do Plano Nacional de Vacinação em Portugal. Sobre as missões que abraça, são elas formas de dar continuidade ao legado do seu pai?
Daniel Sampaio: Sim, porque os meus pais eram muito participativos. O meu pai era médico de Saúde Pública e sempre foi muito participativo, exemplos disso: o Plano Nacional de Vacinação, como referiu, o fato de ter sido Diretor Geral de Saúde durante muitos anos, antes e depois do 25 de abril, foi dos poucos diretores gerais que continuaram depois do 25 de abril. Nem chegou a ser saneado, porque muitos foram. Ele tinha uma grande preocupação com a Saúde Pública, numa altura em que não se falava muito de Saúde Pública. Nos dias que correm, vemos a Saúde Pública todos os dias na televisão, até em excesso na minha opinião. Na altura, não se falava muito. Ele tinha feito a sua formação nos Estados Unidos, o que na época não era nada habitual. Sempre nos falou dos Centros de Saúde, e em 1973 foi ele com um colega, o Gonçalves Ferreira, que propuseram a criação dos Centro de Saúde e do Plano de Vacinação. Por exemplo, eu lembro-me do meu pai fazer a campanha de vacinação da Poliomielite. Nessa altura, nos anos 50, era eu ainda uma criança, havia muita poliomielite em Portugal, e ele é que iniciou a vacinação. Portanto, isto é uma característica de família. A minha mãe era explicadora particular de Inglês. Tinha muitos alunos. Nós vivemos em Sintra até aos meus 15 anos e a minha mãe era muito conhecida como a senhora que dava explicações em inglês. Como ela esteve 5 anos em Inglaterra, durante a sua juventude, sabia muito bem inglês. A minha mãe também falava com muita gente, portanto, isso é uma característica que provavelmente motivou a ida do meu irmão para a política, e no meu caso, a minha participação em muitas coisas.
Como é que se lida com alguém que vê o suicídio como a única opção, especialmente, quando se trata de alguém mais jovem?
Daniel Sampaio: Em toda a minha carreira, nunca conheci ninguém que quisesse só suicidar-se. Quando nós temos uma pessoa que nos fala em suicídio, há uma parte dessa pessoa que quer viver. Nós chamamos a isso ambivalência. O Suicida grave quer morrer, faz tentativas de suicídio, pensa muito no suicídio e às vezes suicida-se, mas há sempre uma pequena parte da sua consciência que quer continuar a viver. E nós, especialistas, trabalhamos muito com essa parte. Chamamos à atenção para os aspetos positivos que o doente tem na sua vida. Tentamos ligá-lo a pessoas, aos amigos, aos familiares, porque a pessoa que está em risco de suicídio cortou as ligações com os outros e está desesperado. É preciso uma grande disponibilidade por parte do profissional. Por exemplo, na escola, onde às vezes, há tentativas de suicídio, eu digo muito aos professores: "Vocês não precisam de tratar esses jovens, porque não são psicólogos nem psiquiatras. O que têm a fazer é, quando detetam uma dessas situações, encaminhar para um serviço de Saúde mental”, mas devem estar disponíveis, ou seja, poderem falar com esse rapaz ou rapariga, marcar um encontro no dia seguinte. É fundamental que se mostrem interessados nele, porque quando nós criamos laços com as pessoas que estão em risco de suicídio, diminuímos a probabilidade dessa pessoa se suicidar.
Não tenho por hábito dar o meu número a todos os doentes, mas desde que os telemóveis existem, dou sempre o meu número àqueles que estão em risco de suicídio. Dá uma réstia de esperança à pessoa. Geralmente, digo: "Quando estiver a pensar em suicidar-se, ligue!". Por isso é que os telefones de prevenção do suicídio, Centro de S.O.S, Voz Amiga - os números de apoio ao suicídio – são tão úteis. Nós, especialistas, chamamos momento de alta letalidade ao preciso momento em que o risco de suicídio é muito grande, por haver uma grande probabilidade da pessoa se suicidar naquele minuto e quando conseguimos aguentar a conversa com esse doente, a letalidade diminui. Na maior parte das vezes, o doente adia o suicídio. De seguida, é muito importante continuar a acompanhar o doente com uma consulta que não demore muito tempo a realizar-se.
A título de curiosidade, tive um senhor, que tratei durante dois anos, que em todas as consultas me dizia: "O suicídio não está resolvido. Eu continuo a pensar em suicidar-me. Está apenas adiado”. Esteve durante 2 anos a dizer-me isto. Ao fim desses 2 anos, disse-me: "Esteja descansado que eu já não me vou suicidar. Agora, está resolvido". Contudo, levou 2 anos para que o tratamento tivesse efeito. Nós, psicólogos e psiquiatras, junto das pessoas que estão em risco de suicídio, temos de ter uma presença muito importante.
Já recebeu muitos telefonemas fora de horas?
Daniel Sampaio: Sim, e já tive doentes meus que se suicidaram. Quando há colegas que dizem que nunca perderam um doente para o suicídio, eu digo sempre: "Ou não está a falar verdade ou tratou doentes menos graves", porque os doentes graves, alguns, suicidam-se por melhor que nós possamos fazer.
Recordo-me de um caso, em que ainda não havia telemóveis e eu tinha um bip. O doente contatava comigo através do bip. Certa vez, contatou às 4 da manhã, eu disse-lhe para ir à minha casa, porém, adiei a consulta, e passado uma semana recebi um telefonema a dizer que ele se tinha suicidado. Não correu bem. Evidentemente, que podemos sempre dizer que havia uma grande vontade de se suicidar, mas como eu lhe disse há pouco, há sempre uma parte que nós podemos trabalhar. Com estes doentes temos de ter uma disponibilidade muito grande. Perante uma situação depressiva não grave ou uma situação de ansiedade, nós podemos ver essas pessoas de mês a mês. A pessoa que está em risco de suicídio, nós temos de vê-la todas as semanas. E tem de haver serviços, atendimento diário: urgências de psiquiatria ou uma consulta especializada que atenda sem marcação. Essas pessoas não podem entrar nas filas burocráticas de marcação de consulta.
Na sua opinião, o Serviço Nacional de Saúde está preparado para dar apoio a estas pessoas?
Daniel Sampaio: Temos melhorado. Ainda não está criada uma das coisas que sempre defendi, que é as pessoas que estão em risco de suicídio terem uma espécie de "Entrada Direta". Essas pessoas que estão em risco de suicídio devem entrar diretamente numa consulta. A urgência muitas vezes não chega. A Urgência é onde eles são atendidos, mas depois há um período entre a Urgência, onde eles são vistos e, em muitos casos medicados, e a marcação da consulta. Esse período é, por vezes, muito grande. Deve haver um canal preferencial na urgência para a consulta do suicídio. Estes doentes devem passar à frente de outros. Este é um aspeto que é preciso melhorar. O que é fundamental para tratar o suicídio é a disponibilidade do especialista e a rapidez na marcação.
Posso concluir que já lidou muitas vezes com a morte?
Daniel Sampaio: Muitas vezes... Há pouco tempo lidei com a minha própria morte. Já lá vamos... (Esboça um sorriso).
Mas como é que se lida com a morte? (Pausa) Suponho que cause uma sensação de vazio...
Daniel Sampaio: A morte é irracional. Nós não conseguimos racionalizar a morte. Nunca encontrei alguém que dissesse que queria morrer rapidamente. Encontro pessoas a dizerem que querem morrer. Aliás, há uma frase muito utilizada no estudo do suicídio, pertencente a um senhor chamado Stengel: "Quero morrer, façam alguma coisa por mim". Esta frase traduz bem a tal ambivalência que falava há pouco. Não devemos desvalorizar uma pessoa que nos diz que quer morrer. Devemos levá-la a sério. Mas, depois, há outra parte da pessoa que quer que façamos alguma coisa por ela. De uma forma geral, a psiquiatria tem avançado muito no tratamento das depressões, que são a principal causa do suicídio. Se a pessoa tiver oportunidade de ser vista por um psicólogo ou por um psiquiatra ou, às vezes, pelos dois, a chance de não se suicidar é grande. Os medicamentos são eficazes e se o técnico se demonstrar disponível, a pessoa consegue ultrapassar a crise. Aquilo a que nós chamamos de crise suicidária, aquele momento em que há uma alta letalidade e a pessoa está muito focada no suicídio, é de curta duração. Se a pessoa conseguir ultrapassar essa crise, fica mais ou menos bem, depois pode ter outra crise, mas o trabalho intermédio, entre crises, é fundamental.
E o profissional? Como é que o profissional ultrapassa um doente que se suicida?
Daniel Sampaio: Muito mal, com muita dificuldade. Porque o profissional consciencioso deve-se pôr em causa e deve sentir alguns sentimentos de culpa. O profissional que tem um doente que se suicida deve-se pôr em causa, deve rever o seu método de trabalhar. Nós podemos sempre fazer melhor e é isso que devemos ensinar aos mais novos. Têm de estar disponíveis, têm de estar atentos, têm de fazer muitas consultas. Nem sempre é fácil, porque não há muitos especialistas nos serviços e há muita procura. As listas de esperas são grandes, mas como eu dizia há pouco, é preciso criar canais preferenciais. Quando se trabalha num hospital e um doente evidencia vontade de se suicidar, apesar de só ter consulta daqui a um mês, é necessário criar a possibilidade do doente visitar o médico amanhã. Às vezes basta uma consulta de 10 minutos para a pessoa ficar melhor.
No meio do conjunto de livros que já escreveu, consegue eleger um, em particular, que lhe tenha dado maior prazer? Porquê?
Daniel Sampaio: Vou eleger dois. Um trata da temática do suicídio que é um livro que se chama: "Tudo o que temos cá dentro" e que teve na sua base uma história verídica de um jovem, de 17 anos, cuja namorada se suicidou. É uma história muito bonita, eu acho-a muito bonita, talvez seja o meu livro mais bem escrito. Está um bocadinho romanceado, mas é muito interessante, porque recai sobre a diferença na forma como esse rapaz estava com a namorada, de um modo um pouco superficial. Ela era mais velha e para ele tratou-se de uma descoberta da sexualidade, enquanto ela estava completamente apaixonada. Essa diferença foi muito marcante nesse caso. Nunca a conheci, como é óbvio. Compreendi, daquilo que ele contava, que ele gostava muito era de estar com os amigos, jogar futebol, etc... e ela tinha carro e estava sempre à procura dele, sentia-se muito pouco amada. É claro, que houve outras razões para o suicídio dela, não foi só esse. O livro consiste numa reflexão sobre o que é o amor na adolescência. Depois, há um outro livro, o meu último, que eu acho que é muito importante porque é sobre o papel do pai na família. Fala-se muito no papel da mãe, com o bebé pequeno, da amamentação, os primeiros tempos de vida do bebé e hoje em dia há muita investigação que eu relato nesse livro, da importância do pai mesmo nos primeiros dias de vida do bebé. Por isso é que o chamei: "Dá-me a tua mão e leva-me", está relacionado com a ideia de ligar muito precocemente o filho ao seu pai. É muito interessante, porque quando eu fui pai, nos anos 70, o pai era muito pouco importante e agora os pais, de 30 anos, ambos vão às consultas de pediatria, acompanham o filho à escola, etc... Isso é uma grande mudança na família.
Recordo uma entrevista sua, no início da pandemia em 2020, em pleno 1º confinamento: “A pandemia e os efeitos nas relações humanas”, em que muito provavelmente ditou o primeiro alerta para a tendência gradual de consequências emocionais do isolamento e do medo da doença. Numa entrevista recente ao Jornal expresso, acaba por relatar a sua experiência na qualidade de doente por Covid-19, internado na Unidade de Gastro, transformada em Unidade de Cuidados Intensivos no HSM. Qual é a principal diferença entre o Daniel Sampaio da 1ª entrevista para o Daniel Sampaio após a infeção por covid-19?
Daniel Sampaio: Boa pergunta, boa pergunta... Uma grande diferença. É fácil falar como eu falei na primeira entrevista. Sempre me preocupei muito com a Saúde mental, acho a presença física junto do outro, o beijo, o abraço, mesmo o aperto de mão ou uma palmada nas costas fundamental na nossa socialização. Acho que não devemos viver isolados. A Pandemia afastou as pessoas umas das outras, particularmente, os mais velhos, os avós dos filhos e dos netos, as pessoas que viviam em lares...
A própria expressão "distanciamento social", que é uma expressão que não se deve usar. Deve-se dizer: "distanciamento físico", mas quer seja distanciamento físico quer social, nós ficámos mais distanciados e eu preocupava-me muito com isso e falei muito disso, nessa e noutras entrevistas. Para além das medidas de Saúde pública, que são fundamentais, nós devemos cuidar por não estarmos afastados dos outros, particularmente, das pessoas da nossa família e dos nossos amigos com as devidas cautelas. Provavelmente, isso teve influência na forma pouco cuidadosa como eu próprio encarei o vírus e a possibilidade de ser contagiado. Não fui prudente e tenho-o dito várias vezes. Eu e a minha mulher não fomos cuidadosos. Quando ela adoeceu, eu não me isolei dela e portanto, tudo aquilo que se passou lá em casa foi uma cadeia. Depois, como se costuma dizer, vivi a situação por dentro. E a situação de um Covid grave é uma situação devastadora, sobre os pontos de vista físico e psicológico. Fisicamente, a pessoa sente-se muito mal. Eu, pessoalmente, não tive dores, mas a pessoa está completamente imobilizada. Os braços e as pernas não funcionam. A pessoa não se consegue levantar, não consegue estar de pé. É uma experiência completamente nova em relação ao nosso corpo. Apesar dos médicos, enfermeiros e auxiliares serem extraordinários - (aliás, o meu próximo livro será dedicado aos profissionais aqui do Hospital de Santa Maria, porque eles é que me salvaram a vida), nós sentimos que não há um tratamento específico. O que existe são os derivados da cortisona e o oxigénio. Portanto, o internamento prolonga-se. Esta lacuna para um doente médico, é muito assustadora.
Mais consciente?
Daniel Sampaio: Mais consciente, sim. Eu sabia o que queriam dizer as análises, as radiografias... Fui sempre acompanhando a minha própria doença, mas a dada altura houve um sentimento de impunidade muito grande. A doença prolonga-se muito no tempo, eu estive 50 dias internado. Recordo um momento em que só dizia: "Não façam mais nada, deixem-me morrer para aqui". Primeiro, não contatava com ninguém, estava nos cuidados intensivos onde não havia telemóveis. Depois quando passei para a enfermaria, acabei por combater esta ideia justamente com a família e com os amigos, que me ajudaram muito através de telefonemas e mensagens. Imagino o caso de uma pessoa que viva muito isolada ou que seja idosa, e que tenha muito poucos contatos, deva ser uma experiência pior...
Desiste?
Daniel Sampaio: Pode desistir. Esta mensagem é muito importante ficar: a resistência psicológica à doença é muito importante. É uma doença em que uma pessoa se sente muito sozinha e portanto, temos de ir buscar as nossas reservas de energia e convencer-se de que tem de sobreviver, tem de continuar. Este mindset foi muito importante para a minha recuperação.
Sente-se já recuperado?
Daniel Sampaio: Não. A voz está diferente (pausa para beber água). Está um pouco rouca. Já iniciei a atividade no consultório e os meus doentes sentem a voz diferente. Ainda me canso, quer dizer, se eu andar muito tempo seguido, tenho de parar. Mas a recuperação está a ser excelente. Eu tive alta a 19 de março e nestes dois meses, tenho vindo a recuperar muito bem.
Durante o internamento, a morte foi o seu pior receio?
Daniel Sampaio: Sim, sem dúvida. Até porque estive na enfermaria e assisti à morte de um... (Não conclui a frase)
Erámos 4 pessoas. Curiosamente, 3 do Sporting e 1 um que não era do Sporting, e esse homem morreu. Assistimos àquilo tudo, à deterioração do seu estado físico. Estava cada vez pior, nós percebíamos isso. Acabou por falecer ao pé de nós na enfermaria. Não só é terrível assistir a isso: os médicos a virem para certificar a morte, etc... Como nós automaticamente pensamos: "Bom, isto pode acontecer a qualquer um de nós". Houve um outro episódio muito aflitivo, quando um outro doente caiu. Estava sentado num cadeirão e a certa altura quis passar do cadeirão para a cama e no momento em que o fez, perdeu o oxigénio. Ficou deitado em cima da cama sem oxigénio. Foi muito aflitivo. Eu e outro colega desatámos a tocar à campainha. Pensámos que ele poderia morrer por falta de oxigénio se o enfermeiro não viesse rapidamente. Veio relativamente rápido, mas passámos ali um minuto de grande aflição. Entretanto, sabíamos que havia pessoas que morriam nas enfermarias ao lado... A morte está sempre muito presente.
Depois desse confronto com a morte como está a sua relação com Deus? Mantém-se como Voltaire, continua apenas a passar por ele e a cumprimentá-lo?
Daniel Sampaio: (Sorri) Como Voltaire. Talvez tenha modificado um pouco. Sabe, fui muito crente até aos 15 anos. Ia muito à missa, a minha avó era judia, ela até achava que iria para Padre católico, porque eu falava muito bem e a minha avó dizia: "O menino vai para padre", mas depois a partir dos 15 anos, tive um professor de Religião e Moral que não era bom, no Pedro Nunes, e acabei por me afastar completamente da Igreja Católica até hoje. Contudo, como disse na entrevista ao Expresso, eu tenho muito respeito pela ideia de Deus. Fiquei muito contente por muita gente rezar por mim. Essas pessoas diziam-me sempre: "Eu sei que não acredita, mas estamos a rezar por si". Foi algo muito reconfortante, pois fiquei com a certeza que tenho muitos amigos. Algumas pessoas eu não via há 20 anos. E o fato de haver pessoas a rezarem por mim, foi muito reconfortante. Deu-me força. Eu não rezo, mas respeito muito quem reza.
Ainda assim não se apegou?
Daniel Sampaio: Não. Eu acredito muito na Ciência. Acreditei muito nos médicos. Alguns tinham sido meus alunos, que me trataram respeitosamente por Professor Daniel. Durante o internamento acreditei muito que os médicos aliados à minha força pessoal iriamos vencer a doença.
A mente é um labirinto, concorda?
Daniel Sampaio: Sim. Há muita coisa que não se sabe. Tem havido cada vez mais conhecimento do cérebro, mas há muitas coisas que nós desconhecemos. E, por exemplo, uma característica humana, que deve ser salientada, e que muitas vezes as pessoas não têm a dimensão, é a sua capacidade de adaptação à crise. Como lhe disse, houve momentos em que quis desistir, mas eu olhava para os meus colegas na enfermaria e eles lutavam. Uma vez um doente, que tinha retirado a máscara, tinha-se esquecido de a voltar a pôr, e a enfermeira passou por lá e disse-lhe imediatamente: "Ó Sr. Fulano, assim não sai de cá. Nunca mais vai para casa" e ele respondeu: "Vivo ou morto eu hei-de sair daqui", achei uma resposta fantástica. Há sempre uma parte de nós que pensa que pode morrer, mas há também sempre uma parte de nós que quer viver, tal como no suicídio. Há uma resistência nossa que nós podemos aumentar, através da nossa vontade e da nossa ligação com pessoas importantes na nossa vida.
A tal ambivalência…
Daniel Sampaio: Exatamente! Quero deixar apenas uma mensagem aos estudantes de Medicina relativamente à parte cultural. A Medicina desenvolveu-se imenso como ciência, o que faz com que eles tenham muito que estudar, em termos científicos, de biomedicina. Muito importante. Mas há uma dimensão cultural que é preciso melhorar nos médicos, nos estudantes e nos jovens professores e que é fundamental para a relação médico-doente. Por vezes, recebo algumas queixas dos meus doentes sobre médicos fazerem consultas muito rápidas. Queixam-se que os médicos olham muito para o computador, pedem muitos exames, mas não falam com eles. E essa capacidade de falar com um doente é uma parte mais artística, digamos assim, mas fundamental. Há doentes que melhoram com os mesmos medicamentos só porque mudam de médico, em que o segundo médico dá mais atenção.
Uma vez, aqui no hospital, uma senhora veio ter comigo e disse: "Quero ser sua doente!", Fui ver a ficha, e estava lindamente medicada. Ao que respondi que não se justificava mudar. Estava, de fato, a ser muito bem seguida, o médico era muito competente. “Porque é que quer mudar?” Perguntei-lhe. “Porque ele não me dá carinho" (Pausa) esta conversa tem-me ocupado a mente. Nós precisamos de ser carinhosos e atentos aos nossos doentes, para além do conhecimento científico. Os estudantes de Medicina deveriam preocupar-se com isso. Lerem, interessarem-se pelos aspetos importantes para a relação médico-doente, muito importantes para aqueles que querem fazer clínica, claro. Devemos ajudar os estudantes nesse campo.
Isabel Varela
Equipa Editorial