Conhecemo-nos num daqueles felizes encontros que viriam a permanecer como um forte contacto humano para a vida.
Apresentadas pelo Prof. Joaquim Ferreira, eu sabia muito pouco na altura, quase apenas o nome e que estava a trabalhar no seu Doutoramento, razão que a ligava ao Professor. A segunda razão que nos ligava entre todos, era o nascimento das FMUL talks, um projeto do Professor Joaquim Ferreira e que ficou sob a coordenação de Ana Tornada.
Olhos azuis e cabelo claro, o sorriso tranquilo mostra uma segurança contagiante. Seria um daqueles rostos que quereríamos ver se estivéssemos num voo com turbulência e o seu olhar mostraria que o voo permaneceria no estado certo. Na verdade também tem pânico de voar, mas não deixa que o medo a prenda e quando teve de voar até aos EUA sozinha, para um congresso, foi na mesma.
Ana Tornada é especialista em Medicina Interna e formou-se na Faculdade de Medicina da Universidade de Lisboa.
Depois de cinco anos de especialidade na Medicina 1 e um ano de mestrado a tempo inteiro em Londres, na área da prevenção das doenças cardiovasculares, foi para o Hospital de Cascais já como especialista. Recém-especialista e chegada a Cascais, Ana Tornada começou logo por chefiar equipas de urgência e enfermaria, sentindo “muitas vezes o isolamento e responsabilidade acrescida de trabalhar sem o apoio das outras especialidades”. Por lá ficou nos seus primeiros quatro anos, altura que reforça como “uma grande escola” e ter sido imprescindível para ter aprendido a ser “uma internista em pleno”.
Seguir-se-ia o doutoramento e o regresso aquela que diz ser a sua “casa mãe”, o Centro Académico de Medicina de Lisboa (CAML), com especial ligação ao Hospital de Santa Maria e à Faculdade. Todos os fatores se reuniam para ficar e construir um caminho sólido, pois se, por um lado ia traçando linhas de investigação sobre a hipertensão de decúbito, que a própria nos explicará, por outro lado, passava a contactar com um novo gosto seu, o de ensinar. Correção que faz de imediato, ensinar não, “orientar os alunos e internos”. A dar aulas ao 4º ano do MIM, orienta também estágios dos alunos do 6º ano. Ocasionalmente, recebe alunos de outras faculdades nacionais e internacionais em programa de mobilidade.
Há muitos meses a falarmos e a tratar de temas comuns, foi nos intervalos que a fui observando e admirando o seu caminho discreto e silencioso. Algumas vezes lhe perguntei, “já posso falar de si?” e a resposta manteve-se fiel, “ainda não, mas quando for o momento eu digo”. E assim foi.
Seria muito limitativo falarmos apenas sobre o tema do seu doutoramento já que tantas outras coisas foi dando para absorver. Vale a pena falar do seu ritmo nas urgências e fins de turno de manhã, em que ainda assim reunia comigo e os olhos já vislumbravam cansaço; Desde a sua entrega aos estudantes que a acompanham e bebem do seu conhecimento; às estratégias que encontrou para ajudar a chegar a um doente que não era seu, em pleno pico da Covid, e apenas para fazer chegar conforto. Esta é a Ana Tornada de quem hoje queremos falar, porque é o seu todo que ainda mais a engrandece. A mesma pessoa com quem não validámos esta introdução, porque senão não a deixaria passar por excesso de visibilidade. Mas arriscamos, ainda assim, pela admiração que foi causando.
Já podemos falar da sua tese de doutoramento e da ligação ao Professor Joaquim Ferreira?
Ana Tornada: O meu projeto de doutoramento pretende avaliar o impacto de uma entidade da qual pouco se sabe até ao momento - a hipertensão de decúbito. Todos nós já ouvimos falar da hipertensão arterial e os seus riscos para a saúde, caso não seja devidamente diagnosticada e controlada. Contudo, algumas pessoas apenas têm valores de pressão arterial elevados quando estão deitadas e isso designa-se por hipertensão de decúbito. Algumas podem até ter ao mesmo tempo valores muito baixos quando se levantam, a chamada hipotensão ortostática. Quando estas duas situações coexistem é muito desafiante equilibrar a medicação e manter uma vida relativamente normal.
Aquilo que pretendo estudar é o impacto da hipertensão em decúbito (deitado) e perceber se esse risco se aproxima da hipertensão arterial dita essencial, podendo, tal como nesta última, causar lesões cerebrais, cardíacas, renais, na retina e nos vasos sanguíneos. Se isto se provar, o próximo desafio é arranjar formas de equilibrar os mecanismos de controlo da tensão arterial, quer na posição de pé, quer deitada.
A população onde irei estudar, quer a frequência, quer o impacto da hipertensão de decúbito, é a de Doentes com Parkinson. É um modelo de doença em que ocorre, com alguma frequência, uma desregulação dos mecanismos de controlo das funções chamadas autonómicas, que estão por detrás da adaptação à posição adotada pelo corpo.
Daí a minha ligação com o Professor Joaquim Ferreira ser muito óbvia, tratando-se de um professor que tem dedicado muito da sua vida clínica e académica aos doentes de Parkinson. Há uns anos atrás, o Professor lançou-me o desafio de trabalhar, na perspetiva da Medicina Interna, num projeto integrado e multidisciplinar de abordagem ao doente com Parkinson. Foi aí que começou a germinar em mim, o interesse por disfunção autonómica e todas as comorbilidades que afetam esta população. Daí surgiu a necessidade de aprofundar conhecimentos e desenvolver a investigação na área da hipertensão e da disautonomia, que veio a transformar-se neste desafio do projeto doutoral do CAML.
O Professor Joaquim Ferreira deu-me todo o apoio e incentivo para desenvolver esta ideia e criar um projeto inovador. E tem-se mostrado sempre disponível para dar apoio, estimulando o pensamento crítico, essenciais para prosseguir com um projeto desta dimensão.
Como tem sido este duplo papel de dar aulas e de receber estudantes em estágio numa área tão complexa de conhecimento como é a Medicina Interna?
Ana Tornada: O contacto com eles e com a vida académica fazem-me sentir saudades. Guardo saudades desses tempos de Faculdade, de tudo... desde o despertar do meu gosto pela Medicina Interna, a especialidade mais pluripotencial e integradora que alguma vez conheci, até aos desafios de conciliar os estudos com o espírito académico, organizar eventos da Faculdade, tanto formativos como lúdicos, amadurecer enquanto jovem independente a viver fora da asa dos pais. Enfim viver uma vida plena.
A escolha da especialidade tornou-se lógica a partir do quarto ano da Faculdade, depois vieram os estágios e o contacto com alguns assistentes que me inspiraram e me deram força para continuar este caminho
Tem sido um prazer, transmitir alguma estrutura na avaliação do doente logo no 4º ano. Nesta fase tudo é uma novidade, desde o entrar pela primeira vez numa enfermaria, falar e tocar numa pessoa doente e muitas vezes fragilizada, organizar a entrevista clínica, interpretar e raciocinar sobre o que se ouviu e viu do doente, sobre o que se leu nos livros e tratados, sobre o que foi ensinado ao longo dos anos anteriores. Gosto de ver a forma deslumbrada como alguns alunos reagem a esta experiência e gosto de os estimular para integrarem todos os conhecimentos, toda a humanidade e manterem a humildade de continuar a procurar conhecimento para resolverem problemas.
No 6º ano, é um pouco diferente, trata-se de amadurecimento. Em geral os alunos chegam bem preparados e muito interessados em assumir o papel e a figura do “médico “ perante o doente e as famílias. Este é um período crucial para absorver toda a informação explícita e não explícita sobre o que é SER médico. Adquirem-se rotinas, trabalha-se em equipa, treina-se a capacidade de registar e comunicar o que é relevante, observa-se o que é frequente e o que é raro, conquista-se confiança e autonomia. Independentemente do rumo que tomam a seguir, tenho a certeza que este é um dos períodos mais marcantes do curso.
Há ainda a componente de estar de banco nas urgências. O cenário de urgências é sempre o pico da pressão para qualquer médico. Mas como se vive hoje em dia um banco de urgência?
Ana Tornada: Sem dúvida com alguma angústia e preocupação. Temos que gerir um número variável de doentes, uma plêiade de problemas clínicos de maior ou menor gravidade, uma estrutura organizativa e uma equipa de pessoas.
O Serviço de Urgências tem passado por múltiplas transformações ao longo do tempo. Há uma era pré e outra pós-Covid19.
Depois deste último ano vivido em pandemia, verificou-se uma reestruturação essencial dos serviços de atendimento de urgência, permitindo aos hospitais focarem-se mais no doente grave e os cuidados de saúde primários no doente menos grave e que permite uma janela temporal mais alargada para resolver os seus problemas.
Do lado dos hospitais, vivemos consecutivamente a necessidade de reforçar as equipas, adaptar procedimentos para garantir o máximo de segurança, gerir o stress e a frustração de lidar com uma doença nova que por vezes se comporta de forma diferente do esperado, e com recursos limitados, trabalhar mais horas para que nos pudéssemos apoiar uns aos outros e ao mesmo tempo gerir os problemas pessoais e familiares de cada um. As atualizações de procedimentos internos e externos eram praticamente diárias, vivemos um período muito intenso e muito focado.
Como é que se lida diariamente com a imprevisibilidade?
Ana Tornada: Efetivamente, mesmo quando já andamos nisto há alguns anos, deparamo-nos com o imprevisto, com aquilo que nem nos filmes acontece.
A melhor forma de lidar com o imprevisto é pensar e atuar com estrutura. Começamos por analisar a situação, identificar problemas e prioridades, distribuir tarefas e ajustarmo-nos às necessidades. Quando trabalhamos em equipa tudo se torna mais fluído e a discussão de ideias é geralmente frutífera para resolver cada imprevisto que surja.
Atravessámos um momento atípico de pressão e de stress, como se equilibram os papéis da Ana médica e da Ana quando deixa o Hospital?
Ana Tornada: É um equilíbrio constantemente desafiado. Há de facto uma carga de trabalho imensa quando estamos envolvidos em múltiplas atividades e mais ainda quando uma delas nos exige uma dedicação praticamente exclusiva, como aconteceu com a atividade clínica no auge desta pandemia. A família e os amigos ficam muitas vezes em suspenso, mas nunca esquecidos, compreendem que este é um modo de vida e que em cada Natal, em cada Carnaval, ou em cada feriado é necessário salvaguardar a saúde de todos, e que alguns de nós teremos que estar a trabalhar. Muitas vezes o descanso é que fica comprometido e isso reflete-se nas olheiras que trazemos.
Nunca tem medo de, ao ajudar os outros, se por a si em risco?
Ana Tornada: Uma das coisas que a formação e experiência nos traz, é a sensatez de avaliarmos razoavelmente os riscos, antes de nos atirarmos de cabeça. Depois também é preciso contar um bocadinho com a sorte, encher o peito de coragem e ir pensando em cada passo dado e como voltar atrás, caso seja necessário. Assim, quase que eliminamos o medo, pelo menos no momento de agir. Por vezes não temos mais do que alguns segundos para tomar uma decisão, seja para avançar ou perder uma oportunidade para sempre.
Enquanto médica consegue sempre tomar a decisão que entende ser a certa, ou nem todas as decisões estão apenas nas mãos do médico?
Ana Tornada: Nem todas as decisões estão na mão do médico, isso é fundamental que nunca seja esquecido. Quando lidamos com pessoas, todas trazem expectativas, ideias, problemas e experiências. Depois também vamos percebendo que há várias formas de lidar com os vários problemas que vão surgindo, seguramente com resultados diferentes, mas igualmente válidos face às expectativas criadas.
O mais importante é criar oportunidades para resolver problemas, incentivar, responsabilizar e apoiar independentemente dos resultados.
Nessa linha, gosto muito de fazer a consulta de Risco Cardiovascular porque aí consigo influenciar a saúde e a vida das pessoas de forma a nunca virem a “sentir” a sua doença, ou seja nunca terem sintomas nem eventos, nunca passarem do grupo de risco para o grupo em que a doença já está estabelecida, comprometendo a sua qualidade de vida.
Mas nesta especialidade temos também a possibilidade de acompanhar as pessoas nas várias fases da doença, mesmo em articulação com outras especialidades, e por vezes, os doentes chegam até nós numa fase em que já não nos é possível fortalecer o otimismo da cura ou da longevidade. Diria, que esta é a situação que nos deixa mais vulneráveis e que exige mais de nós enquanto clínicos e seres humanos.
Joana Sousa
Equipa Editorial