Hoje é Dia da Mulher. Apreciemos tudo o que temos, a paridade que se foi alcançando. Apreciemos como os dias de hoje, para muitas mulheres, são diferentes do que teriam sido se vivessem na primeira metade do século XX.
Fará ainda sentido reflectir sobre discriminação de género, sobre condições mais difíceis para as mulheres? Se olhar ao espelho, não. Não fui discriminada ao longo da carreira. Executei diversas funções de liderança desde cedo na vida, a diversos níveis e de acordo com a minha disponibilidade e capacidade para as abraçar. Não, o espelho não me diz que haja problemas de discriminação feminina. Mas, e se olhar um pouco para o lado? E se olhar para um pouco mais longe? O espelho também me diz que não há fome, nunca tive necessidade de comer sem o poder fazer e, muito menos, de ter de prescindir de comer para alimentar os que de mim dependem. Posso, por isso, afirmar que não há fome no mundo?
Os pontos que a seguir levanto não resultam de qualquer investigação científica. Nem tão pouco fiz verificação objectiva dos factos. As linhas que a seguir escrevo resultam meramente de pesquisa rápida de notícias em jornais que considero credíveis. Não confirmei fontes. O tempo e as capacidades não o permitem. Fica o repto, e o agradecimento antecipado, a quem o fizer. Entendam-se, pois, como meras reflexões semi-fundamentadas:
- Sabia que há em todo o planeta há cerca de 750 milhões de jovens e adultos que não sabem ler nem escrever e que, desses, 2 em cada 3 são mulheres?
- Sabia que a iliteracia aumenta a dependência, logo o risco de violência com pouca possibilidade de fuga, logo o risco de ser rampa para presa mais fácil para redes de tráfico?
- Sabia que o tráfico humano é das actividades ilegais que mais se expandiu no século XXI e que 70-80% dos humanos traficados são mulheres? E que muitas se destinam a comércio sexual? Estas reflexões poderiam levar-nos a uma outra discussão: os mitos sobre a prostituição, que esta aumenta em resultado de uma actividade livre e consciente da mulher, logo fruto da sua emancipação… Este mito não é esse o tema de hoje.
Sabia que, segundo o relatório anual do Fundo de População da ONU (2020) todos os dias cerca de 33 mil raparigas com menos de 18 anos serão obrigadas a casar? Além disso, uma preferência extrema por filhos em vez de filhas em alguns países alimentou a seleção de sexo ou a negligência extrema, resultando em 140 milhões de “mulheres desaparecidas”, que poderiam ter sobrevivido num mundo sem discriminação?
Mas atentemos a factos menos dramáticos, quiçá mais próximos:
- Sabia que na União Europeia apenas 52% das mulheres casadas ou em união de facto tomam livremente decisões sobre relações sexuais ou contracepção?
- Sabia que, em média, as mulheres despendem o dobro das horas em tarefas familiares, comparativamente com os seus parceiros, mesmo que ambos gastem o mesmo número de horas em trabalho remunerado? Sim, provavelmente não será o seu caso, logo, pela regra da matemática, haverá quem despenda muito mais…
E já agora, outra reflexão:
- Sabia que na grande maioria das religiões, para não dizer em quase todas as de grande representação no mundo, as mulheres estão impedidas de aceder ao ofício de ministro de culto? E porquê preocuparmo-nos? A religião tem vindo a perder poder no mundo!
Mas:
- Sabia que a religião e os princípios que a regem, independentemente do credo ou mesmo vontade, formata as regras sociais e até as consciências? Será por isso que se tornou ‘natural’ que as sociedades mais organizadas se tenham constituído cada vez mais como patriarcais? Será por isso que se tornou ‘natural’ que sejam, na sua maioria, homens a liderar o mundo? Que seja notícia especial quando é uma mulher a escolhida, felizmente cada vez mais, fazendo com que alguns homens já se sintam discriminados por essa minoria crescente? Não, as religiões não podem ser culpabilizadas de tudo, mas em questões de discriminação de género têm a sua quota parte. E talvez grande!
E, para terminar, algo de irónico:
- Sabia que num país do G7, onde as mulheres têm vindo (ainda que muito lentamente) a conquistar alguma paridade, há quem discorde publicamente da possibilidade de participação de mulheres em reuniões de Direcção, alegando que, no máximo, o poderão fazer se permanecerem caladas e apenas para poderem ‘ver o processo de tomada de decisão’? Qual será este país? Fica para a sua descoberta.
Feliz Dia da Mulher, apreciemos o que de bom a vida e os nossos antecessores nos permitem. Mas olhemos para lá do espelho.
PS: note que usei a forma neutra em língua portuguesa – nossos antecessores. Refere-se a nossos e nossas. Para além de gramaticalmente correcto, é também correcto afirmar que, neste assunto muitos homens e mulheres olharam e olham para além do espelho.
Lisboa, 8 de Marco de 2021
Ana M Sebastião
Subdiretora da Faculdade de Medicina da Universidade de Lisboa
Professora Catedrática de Farmacologia e Neurociências
Líder Principal de Investigação do iMM
Nota – A autora escreve o artigo com o antigo acordo ortográfico