
- Perspetiva de quem estuda e de quem trabalha
Exames. Ansiedade. Imprevistos. Um curso de Medicina é exigente em qualquer momento, principalmente numa crise pandémica, despoletando um misto de sentimentos, emoções e adaptações. Por esse motivo, fomos recolher o testemunho de uma estudante, a Maria Cunha, bem como a perspetiva da Psicóloga Cláudia Martins, uma das várias profissionais que integra o projeto do Espaço S da FMUL.
A estudante:
A Maria Cunha não para, como a própria nos conta: “não gosto de estar parada”. Desde os seus 4 anos de idade, altura em que recorda ter entrado no consultório do seu avô, cirurgião pediátrico, e ter visto um livro com uma imagem de um rapaz com um tumor gigante na barriga, que decidiu seguir Medicina. Durante algum tempo oscilou entre psiquiatria, uma das suas paixões, e a cirurgia, mas a vontade de estar “onde tudo acontece” e no “meio da confusão” superou a indecisão e fê-la optar por cirurgia geral. O interesse pela Saúde Mental surgiu logo no 2º ano de Medicina. Para além de outros projetos, como escrever na revista Ressonância, criou um grupo de debate, através do qual começou a visitar escolas com o objetivo de sensibilizar os alunos para os malefícios do uso de drogas, mas não “da maneira negativa como se costuma fazer”, pois como ela diz “eles (alunos) sabem que faz mal. Nós apenas os ajudamos a tomar a decisão de não usar drogas”.
Maria Cunha acabou recentemente um mandato na ANEM como Diretora de Saúde Pública, onde entre muitas atividades, webinares, dicas de saúde mental para estudantes entre outros, realizou um estudo sobre o burnout em estudantes de Medicina.
Como é te surge o interesse por estudar o burnout?
Maria Cunha: Foi durante uma aula do 1º ano, em que os professores, de acordo com a escala de Maslach (escala do Burnout), nos lançaram o desafio de nos avaliarmos a nós próprios. Ao preencher a escala e após constatar os resultados, todos nós percebemos que era um tema delicado e que merecia a nossa especial atenção. Nessa mesma aula falámos sobre o burnout e como o prevenir. Eu decidi pesquisar um pouco mais a fundo e na altura, em 2016, havia um guia da ANEM que era o Burnout Buddy (tools kit) sobre o burnout.
Retive as três características principais, bem como é que podia ajudar um amigo e como é que se diferenciava da depressão. Rapidamente surgiu uma vontade expressa em envolver-me mais em iniciativas de sensibilização e equacionei, pela primeira vez, desenvolver um estudo sobre o burnout.
Não havia nada sobre os estudantes de Medicina em Portugal, o que refletia um pouco a falta de sensibilidade e relevância que o tema tinha para os profissionais de saúde e instituições académicas.
Ao investigar os números de outros países, descobrimos dados muito interessantes na Holanda e nos Estados Unidos, descobrimos que as taxas de suicídio de profissionais de saúde eram enormes em países como a Alemanha, Coreia do Sul e China. Ou seja, tantos países com dados de burnout de médicos e estudantes e em Portugal não havia nada publicado. Queríamos desmistificar: Portugal não é perfeito, não somos perfeitos e não vamos ter taxas de burnout diferentes dos outros países, porque o nosso sistema não é assim tão diferente. O facto é que até estamos numa posição elevada nos rankings de burnout. Os nossos estudantes sofrem de mais burnout do que a média dos países europeus. Esse foi o mote para abraçar o desafio. Era preciso saber para podermos sensibilizar a Faculdade. Rapidamente compreendemos que uma das melhores estratégias a adotar para combater esta problemática passaria pela contratação de mais psicólogos a trabalhar e com os dados longitudinais – queremos muito conseguir esse objetivo!
No ano letivo de 2018/2019, avançámos com a realização de um estudo apenas para o 2º ano, mas foi o estudo realizado pela ANEM, com dados recolhidos referentes aos meses de fevereiro e março, que nos permitiu alcançar a taxa de burnout. Repeti-lo agora poderia refletir-se num erro. Correríamos o risco de obter resultados enviesados, pois andamos todos muito mais em baixo, sozinhos e deprimidos, o que não significa que estejamos doentes e suscetíveis ao burnout.
Na tua opinião, qual é o estado de espíritos dos estudantes nesta altura?
Maria Cunha: De um modo geral, os estudantes estão ansiosos e tristes. O cancelamento dos exames destabilizou-os. Sentem-se ainda pressionados com o fator tempo e o volume de matéria a estudar, entendem ainda que é importante uma pedagogia positiva a desmistificar “os grandes cadeirões” como a Anatomia. No questionário que fizemos na ANEM houve grande adesão dos estudantes da FMUL e foi referida a necessidade de mais apoio psicológico, manifestando ansiedade em ter vaga no Espaço S. É urgente um maior investimento na Saúde Mental dos estudantes, até como forma de prevenção de burnout. Vários estudos feitos pelo mundo inteiro apontam para elevados níveis de ansiedade nos estudantes de Medicina, e por comparação a estudantes de outros cursos. Conclui-se que ficam mais suscetíveis de terem depressão e é importante prevenir antes que se atinja o burnout. Os resultados na ANEM não serão diferentes.
A profissional:
Em dezembro, entrevistámos Cláudia Martins, psicóloga do Espaço S, que integrou a FMUL em pleno confinamento, em abril de 2020 e falámos sobre a pressão que os alunos sentem neste momento tão complicado.
De que forma a atual pandemia tem afetado psicologicamente os nossos estudantes?
Cláudia Martins: A pandemia e as respetivas restrições desencorajaram certos hábitos sociais e de lazer para todos. Os cursos na área da Saúde, especialmente o de medicina, são cursos muito exigentes e trabalhosos e que por vezes, leva muitos estudantes a terem dificuldade em gerir o seu tempo de forma equilibrada e saudável.
Sim, é fundamental ter tempo e usar esse tempo para estudar, mas é também fundamental, não só para a própria produtividade e para a saúde física e mental do estudante, ter tempo para si e para a sua vida social, familiar e atividades de desporto e lazer. Esta tem sido uma preocupação dos psicólogos que trabalham com estudantes de medicina e outras áreas, a importância de não dedicarem o seu tempo apenas ao estudo. A pandemia veio exacerbar todas estas dificuldades já existentes.
O isolamento social, a ansiedade e a depressão aumentaram exponencialmente desde que os estudantes ficaram privados de frequentar a faculdade, de terem aulas presenciais, estágios e convívio entre colegas. Neste ano 2020, perdeu-se o envolvimento dos estudantes nas atividades universitárias, mesmo que essas atividades se tenham realizado no formato online. Os estudantes universitários e a própria comunidade em geral revelam estarem cansados dos ecrãs e da distância que o ecrã lhes trás.
Este envolvimento presencial que deixou de existir, dificultou a integração no ensino superior e afetou a motivação dos alunos.
Os conflitos familiares também aumentaram, mais tempo em família, por vezes no mesmo espaço físico, exigiu uma restruturação das próprias relações familiares.
Mais do que o medo do vírus, o medo de infetar pessoas queridas passou a dominar a ansiedade de alguns estudantes da FMUL e esta ansiedade levou-os a isolarem-se cada vez mais, deixaram de sair de casa, de fazer atividades de lazer e de realizar exercício físico. Tudo isto prejudica o estado psicológico dos nossos estudantes e o seu bem-estar físico e emocional.
A procura de ajuda psicológica no Espaço S aumentou, após início da pandemia, o que para nós psicólogos tem bom prognóstico. Significa que os alunos estão atentos à sua sintomatologia e que conseguem perceber quando precisam de ajuda especializada. Contudo, também tem sido feito um amplo trabalho de divulgação do apoio promovido pelo Espaço S, seja pelas redes sociais, emails enviados pela Associação de Estudantes da FMUL (AEFML) e que incrementa a procura do apoio prestado.
Os alunos com problemas de ansiedade e depressão prévia à pandemia, pioraram com o confinamento, alunos que anteriormente não tinham expressão de qualquer sintoma psicológico, passaram a apresentar sintomatologia significativa (ansiedade, depressão, a motivação e isolamento social) após o confinamento.
A equipa do Espaço S tem estado presente tanto na intervenção clínica (quando já existe sintomatologia e o aluno procura ajuda psicológica) como na área da prevenção, através da organização de atividades de sensibilização ao bem-estar emocional perante as adversidades: Realizámos consultas clínicas no Espaço S remotamente, de abril a setembro. Em setembro a equipa do Espaço S retomou um vez por semana consultas presenciais, mantendo o acompanhamento online nos restantes dias.
Para além do trabalho clínico, a equipa do Espaço S participou em várias atividades da FMUL e na comunidade, entre as quais webinares sobre saúde mental como por exemplo “Ansiedade em época de exames.
Entrevista Sofia Tavares à Psicóloga Cláudia Martins
Entrevista Sónia Teixeira à ex-Diretora de Saúde Pública da ANEM, Maria Cunha
