– Com Maria José Diógenes
Imagine o mote para o seguinte filme trágico-cómico: uma mulher de 43 anos, com duas filhas em telescola e o marido a trabalhar fora, a tempo inteiro, fica sem empregada da limpeza e vê-se fechada em pleno confinamento a gerir a casa, as filhas e a carreira de investigação científica. Vislumbre de caos? Ainda não. Nesse mesmo período de confinamento, descobre então que uma terceira filha vem a caminho. Assim, à mais crescida, a Lúcia e à do meio, a Francisca, juntava-se agora a Inês.
Bom começo de guião que a descreve sem exagero inicial. Não fosse a sua brandura nas palavras, já tão característica, e entenderíamos que nela houvesse alguma irritabilidade escondida em cansaço, ou mesmo tentativa de fuga de todo o cenário montado. Mas se algum desses pensamentos lhe desafiou a personalidade, não lhe chegou a fintar a paciência que lhe é sempre dominante.
Maria José Diógenes é Investigadora do Instituto de Farmacologia e Neurociências e docente na mesma área da Faculdade de Medicina da Universidade de Lisboa. Estuda formas de reestabelecer os efeitos do BDNF (Brain-derived neurotrophic factor), fator neutrófico derivado do cérebro, em doenças como a Doença de Alzheimer e a síndrome de Rett. Ambas, com disfunções semelhantes no cérebro, precisam ainda de respostas para tratamento. Para manter os seus dois principais caminhos de estudo, e apesar de abrir a porta a uma terceira via de análise sobre a esquizofrenia, Maria José Diógenes precisa de equipas que façam mover todas as pistas que seguem quando estudam o BDNF. Essa dinâmica em equipa acontece tanto mais quantos forem os financiamentos nacionais, ou estrangeiros, que a permitam prosseguir e desenvolver equipas e questões.
Mulher por inteiro, zela pelos seus em patamares diferentes, mediante o que a pandemia lhe permite. Segue as filhas que lhe dão desafios bastante diferentes, entre a mais velha que já projeta planos de ser médica, outra que pede um ensino mais focado no seu bem-estar e equilíbrio, há ainda uma pequena que lhe dá as manhãs de graça, para que a mãe possa ir planeando em simultâneo as funções da casa, com o regresso à Faculdade depois da licença de maternidade.
Regressemos um pouco atrás no tempo, em que se falava pela primeira vez da necessidade de um confinamento geral. Responsável pela gestão de todos os meios e suportes hospitalares, o marido tinha de se manter no campo de batalha, “não era na linha da frente, mas no piso menos 1, onde tudo se preparava para chegar às equipas e doentes”. Horas e noites em claro, e a ir dormitar num quarto à parte, para não por em risco toda a família, o marido aprendia agora quais os materiais e que fornecedores procurar para garantir a máxima eficácia no seu hospital, já que a eficácia de casa tinha de ter outra gestora, Maria José Diógenes. E enquanto um cuidava dos outros “lá fora”, o outro elemento da equipa assegurava todo o resto “lá dentro”, em casa.
A gestão passava a ser também por gerir prioridades e o mais urgente era o que se ia fazendo, porque para o que era apenas importante talvez nunca se viesse a ter tempo.
Aos primeiros sinais de mal-estar e extremo cansaço, pensou que a má disposição permanente podia ser menopausa precoce, ou excesso de stress que lhe modificara algum equilíbrio pessoal. “Grávida?”, pensava, “não podia ser, porque as duas filhas anteriores precisaram de ser clinicamente planeadas”. Mas a evidência chegava finalmente, depois de um teste de gravidez comprado por uma amiga, “faz lá o teste, tu estás grávida de certeza”, conta com um sorriso quase fugido de vez para a euforia. Foi aliás essa euforia que a fez gritar de êxtase quando o teste assinalou dois traços em forma de mais. A verdade era essa, vinha mais um elemento para enriquecer a família. A alegria era proporcional ao embate das diversas emoções que chegariam em seguida e que são também reflexo de alteração hormonal.
Entre a casa que acumulava roupa por tratar e a agitação obrigada a caber entre portas, e que pedia reposição de alimentos e a força anímica, havia uma mulher a gerir, à distância, uma equipa de laboratório que ia findando o projeto e despedindo-se para seguir novos caminhos pós-doutoramento; havia também duas filhas a pedir rotina e estabilidade e uma mulher cansada e com o corpo em transformação. Chorou, claro, diz-me, e teve igualmente fragmentos do dia em que quis apenas fugir, fugir de todos. Talvez por saber que não estava agora no papel de ser cuidada, mas de ser a cuidadora de todos e dela própria, percebeu que não havia outro caminho senão o do confronto e a tomada de ação. O que quebrou, ergueu sempre em seguida, porque era isso que a vida esperava dela. Diante da pergunta, “como ficará emocionalmente, quando toda a turbulência passar”, responde com a sabedoria de quem gere a dor sem ansiedade e com a devida relativização, “não saio pior, porque o nosso pior já o vivemos quando passamos quase dois anos seguidos em hospitais” (a acompanhar uma das filhas), agora na verdade só fiquei fechada em casa com elas, mas sempre na nossa casa, então o pior já passou há muito.
Maria José Diógenes é o testemunho de quem precisou de encarar a realidade e olhando-a de frente, assumiu planos para encaixar tudo no devido lugar e afrontar o destino. O trabalho encaixava-o apenas quando mais ninguém da prole precisava dela; a Lúcia, a adolescente que quer passar a vida a cuidar dos outros, encarregava-se de algumas tarefas domésticas ligeiras e as compras eram geridas pelo marido aos fins-de-semana, quando conseguia fazer uma pausa do hospital. Não pediu ajuda à família mais próxima porque decidiu, também essa proteger, e como tal, só foi ver os seus próprios pais quando a bebé Inês nasceu a 12 de novembro no seu hospital de coração, Santa Maria. Com a família reunida no carro, correram entre portas e janelas a apresentar a pequena Inês que viria a ser milagre, também já fora da barriga, pela paz e sorriso que lhe pertencem e contagiam todos os outros que com ela convivem.
“Foi o momento de verdadeira felicidade”, conta-me com uma cara de magia, de quem pode escrever uma história de encantar, quando recorda o momento no nascimento da mais recente filha. Recorda que não é fácil controlar a dor com máscara colocada, ou encontrar no bloco um aluno com quem agora se cruza numa área clínica. Mas tudo se transforma em momentos únicos e marcantes, dando sempre a perspetiva positiva das coisas.
Fibra de quem foi gerindo tantas áreas ao mesmo tempo, principalmente a das emoções.
Em poucos dias regressa ao ativo à faculdade, pelo caminho terá de constituir e agregar nova equipa de investigação, já que alguns elementos da anterior cumpriram, como é habitual, o seu percurso académico. Assumirá por completo o papel de professora e mantém os laços pedagógicos com a Faculdade, mantendo-se atenta e presente em possíveis ações que motivem novos alunos a vir ao Dia do Candidato da Faculdade, dia esse que coordenou no passado. Com a Francisca na escola e a Lúcia em teleaulas ainda em casa, reparte agora os tempos de parentalidade com o pai das filhas.
No seu espaço, engolido pela responsabilidade e pelo, tem sempre a doçura de quem só quem passa por tempos difíceis é que sabe verdadeiramente olhar o outro.
A nossa entrevista passou a correr. A bebé Inês não interrompeu, mas a verdade é que já esperava a mãe Maria José, com um sorriso rasgado e de braços no ar. Sei porque recebi uma fotografia. E em seguida uma mensagem que dá o título a esta nossa conversa e que depois dela, nada mais poderia escrever.
“Sabe, a Lúcia é o nosso oxigénio não vivemos sem ela, faz parte de nós, mas pouco a vemos, porque está sempre a estudar no seu quarto. Depois temos a Francisca, o nosso sol, é que nos aquece, quando ela está em casa é impossível não sentirmos aquele calor e a presença constante que nos desafia. Depois a nossa pequena luz, a Inês, que no meio da pandemia, desta escuridão terrível de dúvidas e algum medo, surgiu para mostrar como a vida é magnífica e nos dá esperança. Fala-se muito das pessoas que estão na linha da frente, dos médicos, dos enfermeiros, de pessoas que, como o meu marido estão a salvaguardar a gestão dessas enfermarias, mas quem está em casa a trabalhar, a cuidar da casa, a fazer refeições, a tomar conta dos filhos, também está seguramente na linha da frente, a aguentar outro barco. Esse é o barco das crianças que são o nosso futuro e que precisam tanto de nós. Somos afinal de contas linha da frente, também!”.
Joana Sousa
Equipa Editorial