Espaço Aberto
2010 - Ano Europeu do Combate à Pobreza e Exclusão Social - "Dia de Reis"
Much we feel can only be understood in terms of the more diffuse consequences of the class structure: poverty, work conditions (and what we termed the social division of labour), and deprivation in its various forms.
The Black Report, 1980
A porta do prédio é de metal – uma chapa perfurada pintada de verde – para resistir ao vandalismo. Na escadaria e patamares manchados, grafitti misturam-se com plantas e Nossas Senhoras de Fátima, caixas de cartão e tábuas abandonadas. São quatro andares de escadas e o último é o destino. A clarabóia manchada deixa passar a luz cinzenta da tarde de Inverno.
É como lhe digo, doutor. Aquela miúda não tem conserto. Um preto engravidou-a em Espanha aos catorze anos, depois foi internada num asilo do Algarve por se pegar à porrada nas lojas. E agora parece que se drogava e apanhou SIDA. E como já tem vinte anos a polícia anda atrás dela. Fugiu do asilo, apareceu aqui e pôs-se logo a roubar. Não tem conserto, digo-lhe eu. A tia anda a tentar metê-la nos eixos, mas o mais que conseguiu foi levá-la ao dentista depois do médico lhe ter tratado um abcesso. A criança já foi dada para adopção, mas parece que ela ainda quer ficar com ela. Não sei como pode. Não pode. Ainda se tivesse uma família para ajudar, mas o pai está na penitenciária, da mãe ninguém sabe e a tia, coitada, mal tem para cuidar dos quatro que lá tem em casa, ainda por cima com o meu genro desempregado.
O interior da casa está limpo e arrumado, graças aos préstimos atentos da equipa da Santa Casa. Copos de brinde de refrigerantes, chávenas de café e cálices de um modelo antigo amontoam-se na pequena cristaleira. Em cima do móvel, naperon branco e amarelo, alinham-se fotografias de casamentos, crianças, adultos.
E eu para aqui sozinha. Não tive sorte, não senhor. A falta que o meu querido marido me faz! O senhor doutor, que foi médico dele até ao fim lembra-se dele, não lembra? Há vinte anos que partiu e faz-me tanta falta! A minha filha ainda vem cá de vez em quando, mas as minhas netas não me ligam nenhuma. Querem é ir com os rapazes para o café e fumar. Só a terceira é que parece ter juízo e ainda não chumbou nenhuma vez, mas as mais velhas não querem estudar. Uma delas já trabalha num supermercado, mas a outra passa o dia em casa a mandar mensagens com o telemóvel. É o que a minha filha me conta. É uma vergonha. Falta-lhes um pai para as meter na ordem, é o que lhe digo. Deviam ter um pai como o cigano aqui do prédio ao lado – aquilo vai tudo trabalhar para a praça e anda tudo direitinho, e isto digo-lhe eu que até nem gosto de ciganos. A mãe dele, do cigano, é que tem problemas de falta de ar e está sempre a ir ao médico. Ela diz que é asma mas aquilo é mesmo é nervos, desde que o marido dela morreu, como o meu querido marido, lembra-se do meu marido, doutor?
A chaminé enegrecida na cozinha testemunha o último “acidente”, de há um ano atrás. Felizmente ninguém se magoou. Dentro do frigorífico acumulam-se refeições do Centro de Dia, esquecidas, e iogurtes, muitos iogurtes.
Mas tenho aqui estes altos na cabeça, doutor. Ponha lá aqui a mão. Sente? Está a sentir? Isto foi da queda que dei a semana passada. Estava de noite e caí quando fui à casa de banho, eu vou sempre duas ou três vezes de noite, e não vi a porta e tropecei e bati com a cabeça. No tempo do meu marido estas coisas não me aconteciam. Os altos doem-me mais à noite, e quando me doem mais tomo mais um comprimido dos para dormir. Ele fazia-me companhia e estava sempre perto. Agora se não fosse esta senhora da Santa Casa eu não via ninguém, a não ser a minha filha que cá vem às vezes, que as minhas netas não me ligam nenhuma. Eu já lhe disse que uma delas está a trabalhar num supermercado? Os diabetes também me sobem à cabeça mas faço uma análise com a fitinha e fico melhor. A falta que o meu marido me faz! O senhor doutor era médico dele e sabe que ele me fazia muita companhia.
No quarto, claro e arrumado, de paredes nuas, múltiplas caixas de medicamentos contidas num tupperware baço. Um separador de comprimidos, com os dias da semana, repousa sobre a mesa de cabeceira, cápsulas e comprimidos multicolores desalinhados com o dia e a hora. A foto do falecido marido, amarelada, ao lado do pequeno candeeiro.
Há tempos eu e uma velhota aqui do primeiro andar ainda íamos até aos bancos do jardim ali em frente, mas deu-lhe uma trombose no ano passado e agora está entrevada, e a mim já me custa muito subir a escada. As varizes não me deixam e os joelhos estão todos partidinhos. Só saio daqui para ir levantar a reforma com esta senhora, que se não fosse ela não sei o que seria de mim. Não tenho apetite nenhum. Já sei que o senhor doutor me vai ralhar mas não me apetece comer. Não tenho fome. Eu, que fui cozinheira e cheguei a cozinhar para mais de oitenta pessoas, agora não tenho apetite nenhum. A comida não me sabe a nada. Só como uma bananinha ou um iogurte por causa dos comprimidos, para não me caírem no estômago sem nada. Mas a comida não me apetece. Esta senhora insiste mas dá-me o fastio. Quando o meu marido ainda era vivo eu fazia-lhe o almoço e o jantar e comia com ele. Agora dá-me o fastio. O senhor doutor conheceu-o, não foi? Lembra-se dele, não lembra? A falta que ele me faz! Vai-me medir a tensão, não vai? Meça-me a tensão, senhor doutor, que estes altos na cabeça deve ser a tensão alta que os faz doerem à noite.
À saída do prédio, homens sentados no muro ou encostados à parede. Há novos, velhos e de meia idade. Nenhum tem emprego. Partilham cigarros e minis do café da esquina. É breve a estrada até ao mundo da cidade cintilante.
O texto acima condensa informações de múltiplos locais e encontros, com modificações menores efectuadas no sentido de preservar a identidade das pessoas. Os factos são todos reais.
Prof. Doutor Armando Brito de Sá
Professor auxiliar convidado
abritosa@fm.ul.pt
The Black Report, 1980
A porta do prédio é de metal – uma chapa perfurada pintada de verde – para resistir ao vandalismo. Na escadaria e patamares manchados, grafitti misturam-se com plantas e Nossas Senhoras de Fátima, caixas de cartão e tábuas abandonadas. São quatro andares de escadas e o último é o destino. A clarabóia manchada deixa passar a luz cinzenta da tarde de Inverno.
É como lhe digo, doutor. Aquela miúda não tem conserto. Um preto engravidou-a em Espanha aos catorze anos, depois foi internada num asilo do Algarve por se pegar à porrada nas lojas. E agora parece que se drogava e apanhou SIDA. E como já tem vinte anos a polícia anda atrás dela. Fugiu do asilo, apareceu aqui e pôs-se logo a roubar. Não tem conserto, digo-lhe eu. A tia anda a tentar metê-la nos eixos, mas o mais que conseguiu foi levá-la ao dentista depois do médico lhe ter tratado um abcesso. A criança já foi dada para adopção, mas parece que ela ainda quer ficar com ela. Não sei como pode. Não pode. Ainda se tivesse uma família para ajudar, mas o pai está na penitenciária, da mãe ninguém sabe e a tia, coitada, mal tem para cuidar dos quatro que lá tem em casa, ainda por cima com o meu genro desempregado.
O interior da casa está limpo e arrumado, graças aos préstimos atentos da equipa da Santa Casa. Copos de brinde de refrigerantes, chávenas de café e cálices de um modelo antigo amontoam-se na pequena cristaleira. Em cima do móvel, naperon branco e amarelo, alinham-se fotografias de casamentos, crianças, adultos.
E eu para aqui sozinha. Não tive sorte, não senhor. A falta que o meu querido marido me faz! O senhor doutor, que foi médico dele até ao fim lembra-se dele, não lembra? Há vinte anos que partiu e faz-me tanta falta! A minha filha ainda vem cá de vez em quando, mas as minhas netas não me ligam nenhuma. Querem é ir com os rapazes para o café e fumar. Só a terceira é que parece ter juízo e ainda não chumbou nenhuma vez, mas as mais velhas não querem estudar. Uma delas já trabalha num supermercado, mas a outra passa o dia em casa a mandar mensagens com o telemóvel. É o que a minha filha me conta. É uma vergonha. Falta-lhes um pai para as meter na ordem, é o que lhe digo. Deviam ter um pai como o cigano aqui do prédio ao lado – aquilo vai tudo trabalhar para a praça e anda tudo direitinho, e isto digo-lhe eu que até nem gosto de ciganos. A mãe dele, do cigano, é que tem problemas de falta de ar e está sempre a ir ao médico. Ela diz que é asma mas aquilo é mesmo é nervos, desde que o marido dela morreu, como o meu querido marido, lembra-se do meu marido, doutor?
A chaminé enegrecida na cozinha testemunha o último “acidente”, de há um ano atrás. Felizmente ninguém se magoou. Dentro do frigorífico acumulam-se refeições do Centro de Dia, esquecidas, e iogurtes, muitos iogurtes.
Mas tenho aqui estes altos na cabeça, doutor. Ponha lá aqui a mão. Sente? Está a sentir? Isto foi da queda que dei a semana passada. Estava de noite e caí quando fui à casa de banho, eu vou sempre duas ou três vezes de noite, e não vi a porta e tropecei e bati com a cabeça. No tempo do meu marido estas coisas não me aconteciam. Os altos doem-me mais à noite, e quando me doem mais tomo mais um comprimido dos para dormir. Ele fazia-me companhia e estava sempre perto. Agora se não fosse esta senhora da Santa Casa eu não via ninguém, a não ser a minha filha que cá vem às vezes, que as minhas netas não me ligam nenhuma. Eu já lhe disse que uma delas está a trabalhar num supermercado? Os diabetes também me sobem à cabeça mas faço uma análise com a fitinha e fico melhor. A falta que o meu marido me faz! O senhor doutor era médico dele e sabe que ele me fazia muita companhia.
No quarto, claro e arrumado, de paredes nuas, múltiplas caixas de medicamentos contidas num tupperware baço. Um separador de comprimidos, com os dias da semana, repousa sobre a mesa de cabeceira, cápsulas e comprimidos multicolores desalinhados com o dia e a hora. A foto do falecido marido, amarelada, ao lado do pequeno candeeiro.
Há tempos eu e uma velhota aqui do primeiro andar ainda íamos até aos bancos do jardim ali em frente, mas deu-lhe uma trombose no ano passado e agora está entrevada, e a mim já me custa muito subir a escada. As varizes não me deixam e os joelhos estão todos partidinhos. Só saio daqui para ir levantar a reforma com esta senhora, que se não fosse ela não sei o que seria de mim. Não tenho apetite nenhum. Já sei que o senhor doutor me vai ralhar mas não me apetece comer. Não tenho fome. Eu, que fui cozinheira e cheguei a cozinhar para mais de oitenta pessoas, agora não tenho apetite nenhum. A comida não me sabe a nada. Só como uma bananinha ou um iogurte por causa dos comprimidos, para não me caírem no estômago sem nada. Mas a comida não me apetece. Esta senhora insiste mas dá-me o fastio. Quando o meu marido ainda era vivo eu fazia-lhe o almoço e o jantar e comia com ele. Agora dá-me o fastio. O senhor doutor conheceu-o, não foi? Lembra-se dele, não lembra? A falta que ele me faz! Vai-me medir a tensão, não vai? Meça-me a tensão, senhor doutor, que estes altos na cabeça deve ser a tensão alta que os faz doerem à noite.
À saída do prédio, homens sentados no muro ou encostados à parede. Há novos, velhos e de meia idade. Nenhum tem emprego. Partilham cigarros e minis do café da esquina. É breve a estrada até ao mundo da cidade cintilante.
O texto acima condensa informações de múltiplos locais e encontros, com modificações menores efectuadas no sentido de preservar a identidade das pessoas. Os factos são todos reais.
Prof. Doutor Armando Brito de Sá
Professor auxiliar convidado
abritosa@fm.ul.pt