Estávamos em 1984, quando deu os primeiros passos ao serviço da docência, na qualidade de Monitora na Faculdade de Medicina da Universidade de Lisboa.
Hoje, em 2021, é Professora Associada com Agregação no Laboratório de Farmacologia Clínica e Terapêutica da Faculdade de Medicina, e embora tenha feito uma “pausa” no ensino, orgulha-se “muito da ligação à Faculdade”, segundo a própria referiu na última FMUL Talk, onde esteve presente.
Atualmente é Chief Medical Officer na CHDI Foundation ( Fundação privada dedicada a investigação de terapias para a doença de Huntington) em Princeton, nos Estados Unidos.
Figura incontornável da nossa casa, da medicina e da farmacologia, já esteve na Agência do Medicamento enquanto perita.
Falamos de Ana Cristina de Brito Almeida Sampaio Cruz, ou entre nós, Cristina Sampaio!
A news@FMUL propôs à Professora que nos falasse das vacinas de combate à Covid-19 que tanta controvérsia têm gerado, por forma a desmistificar a questão!
Chegou finalmente a promessa do fim da tempestade com a descoberta da vacina?
Cristina Sampaio: O começo do fim da tempestade só chegará quando as vacinas (plural) estiverem efetivamente disponíveis e forem administradas a uma maioria alargada da população, não só do país, como do mundo. A existência das vacinas enquanto entidades abstratas que existem algures, dá algum conforto intelectual, mas não altera nada no terreno.
Qual será o seu real benefício?
Cristina Sampaio: O "real" benefício ainda não pode ser bem quantificado. Nós sabemos que em contexto de ensaios clínicos, as várias vacinas testadas têm uma eficácia elevada, acima de 70%, chegando mesmo aos 90-95%, na redução de casos de doença. Por isso o beneficio que podemos esperar, quando uma fração significativa da população estiver vacinada, é uma redução marcada dos casos de doença e, consequentemente, a redução do risco para a saúde da infeção. Ao reduzir o risco de doença para valores residuais, a vacinação permitirá a retoma das atividades económicas e permitirá o relançamento da vida social e cultural. Ainda há muitas incertezas, algumas diretamente relacionadas com a efetividade das vacinas, ie, vamos ter eficácia próxima dos 90% no terreno? Qual vai ser a duração da imunidade? Será necessário atualizar as vacinas periodicamente? Será a vacinação eficaz para proteger das infeções (sem doença) e consequentemente parar a transmissão? Esta última questão é muitíssimo importante, embora a maioria das pessoas pense que não se importarão de estar infetadas se não houver consequências, no entanto será um problema se o vírus continuar a circular sem contenção porque por cada passagem entre hospedeiros irá sofrer mutações, quanto mais se transmitir mais mutações sofrerá o que pode originar variantes resistentes às vacinas. Aliás, esta é uma das questões em aberto, qual será a evolução do vírus em face da pressão causada por uma população vacinada.
Em conclusão, o benefício imediato de uma ampla vacinação é a criação de espaço para reduzir o risco individual, relançar a economia, e repensar a organização e a sustentabilidade dos serviços de saúde. Os grandes ganhos de saúde vão estar associados a esse relançamento da economia, e a reorganização do sistema de saúde.
Não nos devemos esquecer que a vacinação só será eficaz se os problemas logísticos forem resolvidos. Da mesma forma que a COVID-19 tem poucas semelhanças com a gripe, a vacinação para SARS-CoV-2 também se afigura muito mais complexa que a da gripe, porque tem que cobrir a população toda, em vez de se concentrar em grupos de maior risco, e tem que ser uma cobertura mundial. Se houver necessidade de repetir a administração todos os anos será um enorme problema. Basta lembrar que a OMS faz um enorme esforço para vacinar as crianças em países de baixo rendimentos, com vacinas que são eficazes para toda a vida, como por exemplo o sarampo, e está longe de conseguir chegar a todos que necessitam.
Muitas pessoas temem a vacina considerando que surgiu tudo num curto espaço de tempo. Pode desmistificar esta questão?
Cristina Sampaio: Há que estar completamente confiante que não houve nada de misterioso, nem se queimaram etapas. Nada na vida tem risco zero! As vacinas para a Covid-19 são seguras, e contrariamente a todas outras vacinas e medicamentos sobre os quais se acumula lentamente informação de segurança ao longo de anos, a situação de pandemia fez que em poucas semanas se tivesse informação sobre milhões de vacinados. Por isso, podemos estar confiantes que a taxa de reações adversas graves é extremamente baixa.
Aconteceram duas coisas muito positivas que levaram ao sucesso do desenvolvimento das vacinas num espaço de tempo curto:
1) os cientistas estavam totalmente preparados para este desafio e a tecnologia para produzir as vacinas já tinha sido desenvolvida, estando disponível para ser adaptada rapidamente ao problema do SARS-CoV-2;
2) todos os parceiros mundiais alinharam-se num objetivo comum: desenvolver e produzir estas vacinas. O investimento financeiro a fundo perdido atingiu proporções nunca antes vistas (não esquecer que os desenvolvimentos clínicos de medicamentos e vacinas custam muitos milhões de euros, e parte do tempo que esses desenvolvimentos duram, é passado à procura de investimentos); e a colaboração internacional que incluiu desde os cidadãos comuns, que se voluntariaram para participar nos ensaios clínicos, às autoridades regulamentares foi de grande generosidade e de enorme amplitude. Esta expressão de boa vontade global ficará para a História como um testemunho do que de bom a humanidade pode conseguir quando se junta num objetivo comum.
Julgo que em março estávamos todos céticos de que este nível de colaboração fosse possível, e pensámos que era melhor avisar as pessoas que desenvolver uma vacina num ano seria um milagre. Todos nós, que passamos a vida a desenhar, coordenar e avaliar ensaios clínicos só podíamos visualizar as dificuldades e não a oportunidade. Para dar um pouco de contexto, às vezes a simples aprovação de um contrato para um ensaio clínico pode levar 3 meses ou mesmo mais.
Há um ponto importante a considerar, o desenvolvimento de vacinas é tecnicamente mais fácil que o dos medicamentos, e que no contexto de uma pandemia não faltam doentes para realizar os ensaios clínicos. De notar que o desenvolvimento de vacinas é muitas vezes condicionado, porque não há número suficiente de casos para concluir os ensaios clínicos. Claro que há casos difíceis como o do HIV e da malária, mas a taxa de sucesso do desenvolvimento de vacinas é em media de 40%, enquanto que a dos medicamentos é de cerca de 16%. Uma diferença muito significativa.
Existem guidelines produzidas pela EMA (European Medicines Agency) e pela FDA (Food and Drug Administration) para o desenvolvimento de vacinas. Estas guidelines que são anteriores à pandemia, a sua última versão data de 2018, definem quais são os requisitos em termos de qualidade, eficácia e segurança para qualquer vacina. Devo dizer que comparei os requisitos nessas guidelines com os programas de desenvolvimento das vacinas que já estão aprovadas e posso assegurar que todos os requisitos, que seriam obrigatórios antes da pandemia, foram cumpridos.
Por que razão no caso da Covid-19 a vacina terá uma taxa de sucesso superior à dos medicamentos?
Cristina Sampaio: Como disse na resposta anterior as vacinas em geral, não só as vacinas da Covid-19, têm uma taxa de sucesso muito superior à dos medicamentos. As vacinas têm uma grande vantagem sobre os medicamentos, o agente causador da doença é conhecido, está bem caracterizado e é claramente o "culpado". Os criadores de vacinas têm que criar um processo para apresentar este agente ao nosso sistema imunitário; não é tarefa fácil, mas é uma tarefa bem definida. No caso dos medicamentos, o principal problema é descobrir qual é o "agente", i e, o alvo. As doenças são alterações complexas de um ou mais sistemas, é difícil descobrir quais são as alterações primárias e qual é sua importância relativa. Para saber qual deve ser o alvo de um novo medicamento, temos que demonstrar que esse alvo é verdadeiramente uma causa, ou um fator no desenvolvimento da doença. Desenvolvem-se muitos medicamentos com base em alvos que não foram suficientemente validados, ou foram-no em modelos animais que não tem suficiente correspondência em humanos. Esta é uma das principais razões porque a taxa de sucesso do desenvolvimento de medicamentos é tão baixa.
Depois da reunião que aconteceu no Infarmed, a meio de janeiro, e onde se ouviram inúmeros especialistas, um dos números apresentados prevê que em poucas semanas os infetados possam duplicar, ou seja, dos 10 mil para 20 mil casos, e que o número de mortos se manterá numa média de 150, mesmo entrando em confinamento. Até se conseguir vacinar o maior número de pessoas vamos, entretanto, perdendo muitas vidas? Não há como acelerar o processo?
Cristina Sampaio: Para acelerar o processo de vacinação são precisas duas coisas: 1) obter muitas mais doses de vacinas; 2) acelerar o processo de distribuição. Neste momento a grande limitação é o acesso a mais doses de vacinas. As cadeias de produção das vacinas estão a ser puxadas ao limite. Todos os países ricos estão a fazer uma enorme pressão para obter mais doses. Portugal não tem qualquer poder negocial, com exceção do que resulta de ser membro da União Europeia, o que é uma enorme vantagem, mas insuficiente. Graças à União Europeia temos a garantia de que vamos receber doses suficientes para cobrir a população, mas o que falta é rapidez na aquisição dessas doses. Este problema afeta de forma razoavelmente semelhante os vários países europeus. As empresas estão a fazer o possível para aumentar a produção, mas não e fácil até porque as matérias primas têm disponibilidade limitada.
O que é uma Vacina de RNA (a que a Professora se refere na FMUL Talk de 7 de janeiro)?
Cristina Sampaio: O RNA é um ácido nucleico tal como o DNA; o DNA é a base do nosso código genético, reside no núcleo das células, onde está relativamente protegido; como está separado do compartimento onde se passa a maior parte da ação a nível celular pela membrana nuclear precisa de um mensageiro. Este mensageiro é o RNA. Assim, o RNA faz cópias das mensagens contidas no DNA e passa para o citoplasma através dos poros na membrana nuclear. No citoplasma estas cópias, na forma de RNA, são usadas para produzir proteínas. Esta maquinaria molecular está continuamente em operação nas nossas células. O que as vacinas fazem, é aproveitar a maquinaria já existente (de uma forma semelhante a que o vírus também faz). As vacinas de RNA usam o RNA para transportar para dentro do nosso corpo a mensagem da proteína que devemos sintetizar com vista a estimular o nosso sistema imunitário para produzir os anticorpos necessários. Há outras tecnologias que obtém o mesmo resultado, mas o RNA é fácil de sintetizar e fácil de alterar se for necessário adaptar as vacinas a futuras mutações.
Se conseguiram acelerar a descoberta do processo de vacinação e tendo por base o RNA, por que razão não se descobriram ainda vacinas contra o cancro que é estudado precisamente através da mesma molécula?
Cristina Sampaio: "Cancro" é uma abstração, existem centenas de doenças oncológicas, muito distintas entre si e por isso nunca se pode generalizar. Além disso, as vacinas de RNA em doença oncológica são tratamentos e não servem para prevenção. Tem havido progresso significativo com as vacinas de RNA nalguns cancros. A questão é que mesmo dentro da mesma doença oncológica, cada doente tem tumores geneticamente diferentes, por isso não é possível criar vacinas para uma doença especifica, elas têm que ser criadas para cada tumor individualmente. O desenvolvimento desta tecnologia está em curso, muito provavelmente será bem-sucedida e vai ter o seu lugar na panóplia de tratamentos oncológicos, mas não pode ser encarada como uma solução para erradicar o "cancro", o que é um mito. Uma das questões nas vacinas de RNA no contexto de doenças oncológicas, tal como disse acima, é encontrar os alvos certos para criar o RNA apropriado. No caso das vacinas da COVID-19, estava perfeitamente claro que o alvo era a proteína do espigão do vírus.
Como se explica que tenhamos vacinas que precisam de duas doses para ter os mais de 90% de eficácia e outra apenas uma toma?
Cristina Sampaio: Todas as vacinas aprovadas de momento são vacinas de duas doses. A vacina da Janssen (Johnson and Johnson) que ainda está em desenvolvimento, testou dois regimes de administração: só uma dose ou duas doses. Parece (dados ainda não publicados) que uma dose poderá ser suficiente. A lógica das duas doses baseia-se num paradigma em que a primeira dose estimula o sistema imunológico, como que o faz acordar, mas esse estímulo inicial para consolidar vai precisar da segunda dose. Há sempre alguma eficácia só com uma dose, mas para aumentar essa eficácia é necessária a segunda. Para tentar um regime de uma só dose, é necessário que o estímulo causado por essa única dose seja suficientemente intenso; a intensidade do estímulo pode estar relacionada com a quantidade da proteína alvo que é produzida e também com a duração dessa produção no nosso corpo. O RNA das vacinas da Pfizer e da Moderna é destruído muito rapidamente e por isso a quantidade de proteína produzida será pequena, enquanto que a vacina de Janssen é uma vacina de DNA e pode ter uma durabilidade maior com a consequente maior produção da proteína alvo. Estas diferenças terão que ser especificamente estudadas para se poderem compreender.
Soube-se esta semana que a Janssen Pharmaceutical também concluiu a 1ª e 2ª fase de testes clínicos, considera que poderá estar para chegar mais uma “frente de combate a esta doença”?
Cristina Sampaio: Sim, com certeza, para vacinar os nossos 10 milhões de portugueses e para vacinar o resto do mundo vão ser precisas muitas vacinas, e vacinas que usem matérias primas diferentes porque parte das limitações à produção é a falta de matérias primas.
O que sente um médico quando tem que escolher entre vidas?
Cristina Sampaio: Os médicos como todos seres humanos não são monolíticos, as reações a situações de grande dissonância cognitiva e emocional como a de ter de escolher quem tratar e quem deixar ao seu destino serão seguramente distintas mas sempre dolorosas e traumatizantes.
Lembro me vivamente que Março quando a Itália fazia frente ao surto de COVID-19 em condições Dantescas, o colégio Italiano de Anestesia, Analgesia, Ressuscitação e Cuidados Intensivos publicou guidelines para orientar o acesso aos cuidados intensivos, que já não chegavam para todos. Ler estas em italiano (que não domino, leio por aproximação ao português) causou me uma enorme angústia, e a sensação de que tínhamos cruzado uma fronteira moral. Note-se que dadas as circunstâncias, considero estas e outras guidelines semelhantes, absolutamente necessárias.
Cristina Bastos
Equipa Editorial
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