Foi sobre saúde e vacinação que falámos na última FMUL Talk. Porque onde há conhecimento, não há lugar para especulação, combatemos a desinformação e os receios gerados em torno da vacina contra a Covid-19, com as explicações de um painel de especialistas de excelência, que se juntou numa conferência virtual, aberta não só a toda a nossa comunidade, como também à sociedade em geral.
O Professor Joaquim Ferreira moderou o debate, que se iniciou com mais de 200 participantes, destacando a pertinência do tema que marca o regresso das FMUL Talks da Faculdade de Medicina da Universidade de Lisboa, em plena crise sanitária, num dia marcado pelo aumento galopante de casos de Covid-19 em Portugal, e em que a Agência Europeia do Medicamento aprovou mais uma vacina, desta vez da farmacêutica Moderna.
Na abertura da conferência, o Professor Fausto Pinto fez uma breve contextualização do panorama atual da pandemia no mundo, em que “estamos perto dos 90 milhões de casos e 2 milhões de mortes identificadas”, realçou, acrescentando que a Covid-19 é atualmente a quarta causa de morte em Portugal e a segunda nos Estados Unidos da América.
Destacou ainda, a grande capacidade da comunidade médica e científica “na análise das evidências”, que contribuem para “a tomada de decisões mais adequadas”, e apontou a vacinação como o caminho certo para a imunidade de grupo.
Prof. Joaquim Ferreira, moderador da Talk
Fausto J. Pinto, Diretor da FMUL
Fausto J. Pinto referiu também, que assistimos a “um dos avanços mais significativos em termos científicos”, que possibilitou a criação de uma vacina em 9 meses, considerando “genial” a metodologia aplicada ao RNA.
Num comentário em que apelou à “assertividade” da comunidade médica, o Professor afirmou que o “desígnio nacional” neste momento é “a implementação maciça da vacina”. Defende que a grande prioridade deverá ser a definição de uma estratégia concreta para vacinar o maior número de pessoas, o mais rapidamente possível. E questiona a razão de, até ao momento, terem sido administradas apenas 30 mil doses de vacinas contra a Covid-19, indicando o exemplo de Israel, em que os cidadãos com idade superior a 65 anos já estão vacinados.
Em resposta à pergunta que coloca a Imunidade de grupo natural e a vacinação frente a frente, o Professor Ricardo Mexia começou por apresentar uma perspetiva histórica da imunidade de grupo, que começou a ser abordada em 1910, percorrendo o tema ao longo tempo, até ao momento da “nova era das vacinas (a partir dos anos 50) ”.
Sobre os desafios atuais, entende que os mesmos estão relacionados com “questões sociológicas”, destacando que as pessoas que optam por não serem vacinadas beneficiam da imunidade de grupo, apesar do incumprimento de “dever cívico” da vacinação.
Esclareceu que a imunidade de grupo é um “conceito populacional”, em que “a proteção é conferida pela comunidade”, e contrapondo os dois cenários possíveis, Ricardo Mexia adiantou que a “via natural para chegarmos à imunidade de grupo é eticamente questionável, sendo que não temos exemplos na história em que isso se tenha verificado”. Daí que é através da “via artificial, com a vacinação, que lá chegaremos”.
Prof. Ricardo Mexia
Prof.ª Cristina Sampaio
Ricardo Mexia discutiu ainda, o limiar para a imunidade de grupo, explicando como decorre o cálculo desses valores, que “não são lineares”, bem como as limitações da mesma.
Apesar de “ainda não ser claro se a vacinação vai impedir a infeção” pelo novo coronavírus, o Professor e Médico de Saúde Pública não tem dúvidas de que “a vacinação é o caminho para travar esta pandemia”.
Por sua vez, a Professora Cristina Sampaio apresentou argumentos sólidos para erradicar qualquer dúvida ou especulação sobre o decurso dos ensaios clínicos, em que a possibilidade de terem sido ultrapassadas etapas no desenvolvimento das vacinas foi alvo de grande mediatismo.
Com a garantia de que “não foram queimadas etapas”, a Professora explicou que “a principal causa da rapidez é que a tecnologia do RNA [descoberto nos anos 60] estava disponível, e a celeridade dos ensaios clínicos prende-se com uma injeção de financiamento substancial, como não se tinha visto antes; a própria circunstância da Covid-19, que é uma doença rápida”, pelo que possibilitou a rápida execução dos ensaios; e a “colaboração internacional de todos os setores para derrubar barreiras processuais e humanas”, elucidou.
Ademais, Cristina Sampaio denota que a produção em larga escala, “sem certeza de eficácia”, foi determinante para a chegada de uma vacina que, foi tão reivindicada como contestada.
A Professora declarou também que, “é possível que haja o recurso à aceitação de pacotes de submissão que contenham muito menos estudos do que aqueles que são requeridos normalmente, por se tratar de uma situação de emergência”.
Considera que, “a repetição do mote de que era impossível termos uma vacina antes do fim do ano” enraizou essa mesma ideia na população, que reagiu com alguma desconfiança perante o resultado oposto. “Não significa que estávamos errados, mas estávamos a ser muito pessimistas”, denotou, acrescentando: “Fala-se de que anos foram convertidos em meses”, no entanto, “esses anos não são passados a fazer Ciência”, mas antes a providenciar os meios e recursos (humanos, financeiros, entre outros) para desenvolver o trabalho de investigação científica.
Em resposta a uma das questões colocadas pela audiência, a Professora explicou que “nem todos os ensaios clínicos são auditados”, e a inspeção dos mesmos não decorre de uma norma obrigatória, uma vez que “as comissões de ética têm o dever de acompanhar os mesmos”.
E foi, precisamente, sobre o que nos ensinaram os ensaios clínicos que convergiu a FMUL Talks, com a apresentação do Professor Joaquim Ferreira. “Estes ensaios disseram-nos que a hidroxicloroquina não era eficaz para tratar a Covid-19”, começou por explicar, mencionando a “história positiva da dexametasona”, ao revelar-se “eficaz no tratamento de alguns doentes com Covid-19”.
Quanto à história do remdesivir, Joaquim Ferreira entende estarmos diante de um enredo “mais complexo”, “mas mesmo que seja eficaz, a magnitude do efeito é mínima e, nesse sentido, estamos limitados, pelo que surge a necessidade de explorar outras alternativas, nomeadamente as vacinas”.
De seguida, o Professor apresentou os dados publicados pela Pfizer, Moderna e AstraZeneca, alusivos aos ensaios realizados no âmbito da vacina.
Prof. Luís Graça
Prof. Thomas Hanscheid
Prof. Emília Valadas
E sobre o modo de funcionamento destas vacinas, o Professor Luís Graça explicou como funciona a resposta imune nas infeções virais, bem como a ação das células T e B.
No comentário acerca da produção de anticorpos contra o SARS-CoV-2, o Professor explicou que “com a vacina há um boost na resposta imunitária, que nos protege”, salientando que “aquilo que nos confere proteção são os anticorpos neutralizantes”, defendendo ainda que o objetivo principal de uma vacina é “criar anticorpos protetores na primeira infeção”, a fim de neutralizar o vírus, discutindo desta forma o próprio conceito e definição atual de vacina.
Destacando a importâncias das investigações prévias, nomeadamente os estudos sobre o SARS Cov-1/MERS, Luís Graça analisou o impacto da segunda dose da vacina, “em que se verificou haver mais quantidade de anticorpos e maior afinidade (neutralização) ” dos mesmos, e terminou a sua intervenção elencando algumas questões, cujas respostas são ainda uma incerteza. “Não sabemos se a vacina impede a transmissão, se há perda de eficácia em indivíduos mais idosos, a duração da imunidade protetora e se a vacinação pode conduzir a pressão seletiva para emergência de novas estirpes”.
E foi nessa direção exata que o debate prosseguiu, com o comentário do Professor Thomas Hanscheid acerca das mutações do vírus e se estas podem, ou não, prejudicar a eficácia das vacinas contra a Covid-19.
Começando por desmistificar a realidade da mutação dos vírus, que é “normal” – evocando o caso do Sarampo, cujo “nível de mutação é semelhante e não foi necessário mudar a composição da vacina” – o Professor revelou que a estirpe detetada no Reino Unido inspira maior preocupação, atendendo ao número de mutações verificadas (17), sendo que os problemas que esta nova variante impõe à vacina prendem-se com o facto de ser altamente infecciosa. “O facto de ser mais contagiosa obriga-nos a seguir o caso de Israel e vacinar todos, ainda mais rápido”, a fim de travar “este aumento exponencial” e evitar mais contágios e mortes, explicou o Professor, comentando os casos específicos da estirpe detetada na África do Sul e, mais recentemente, na Nigéria, “sobre a qual sabemos muito pouco ainda”.
Mas afinal quem deve e não deve ser vacinado? E quando é que poderemos deixar de usar máscara? A Professora Emília Valadas responde categoricamente: “Todos!”. As exceções existem e aplicam-se “a menores de 16 anos e a situações muito raras e particulares”, ou seja, “a um pequeno grupo de pessoas em que há dúvidas da eficácia da vacina”. “Os idosos e os imunodeprimidos, apesar de se esperar uma menor eficácia, não são grupos que devem ser excluídos”.
Sobre este tópico em particular, o Professor Joaquim Ferreira alerta para a necessidade de inversão do raciocínio corrente, explicando que pelo facto de serem portadores de doença grave ou crónica, esse grupo da população deve ser considerado prioritário no âmbito da vacinação contra a Covid-19.
Sobre a administração da vacina às grávidas, a Professora Emília Valadas entende que “é cauteloso não recomendar” a vacinação nesse caso específico, sendo que em situação de aleitamento não há, até à data, evidências que sustentem o mesmo princípio.
Revelando que, até ao momento, estima-se que “tenham sido administradas 15 milhões de vacinas a nível”, a Professora analisou as recomendações do CDC (Centro de Controle e Prevenção de Doenças, sediada nos Estados Unidos) no que respeita às contra-indicações, notando as escassas reações adversas severas, detetadas até ao momento. Por sua vez, “as recomendações inglesas chamam a atenção para a necessidade de uma vigilância de, pelo menos, 15 minutos após a administração da vacina”, motivo pelo qual não defende a vacinação nas farmácias.
“Não há contra-indicação em vacinar pessoas com nova infeção”, adiantou, com a ressalva de que “não serão prioritários”. Segundo a Professora, “está na hora de vacinarmos o maior número de pessoas que podermos, o mais rapidamente possível”.
Sobre a utilização da máscara, Emília Valadas afirma que é um hábito a manter “enquanto a situação não estiver resolvida”. Apontou a existência de alguns estudos, “alguns até controversos”, sobre as máscaras que, “não sendo mágicas”, são uma medida essencial no combate à propagação do vírus. Para além da máscara, a Professora reforçou a importância da lavagem das mãos e das superfícies, bem como o arejamento das salas.
Na sua intervenção, Emília Valadas atentou ainda nos “sobreviventes da Covid-19” e nas eventuais doenças crónicas, “com prognóstico ainda desconhecido”.
Com a Covid-19, as sociedades de todo o mundo têm sido vítimas de uma outra pandemia, a “pandemia da desinformação”, designação atribuída pelo Professor Fausto Pinto ao fenómeno das fake news, cujo índice de contágio é, efetivamente, alarmante.
O Professor encerrou a FMUL Talks com “a parte que se não fosse trágica, era cómica”, numa análise à realidade “que criou mais situações anómalas nos últimos tempos”, desencadeada por “grupos contestatários baseados na ignorância”. E as consequências do que considera ser “uma doença maligna” podem ser “dramáticas”, garante o Professor.
Das notícias falsas que foram divulgadas publicamente sobre a vacinação, Fausto Pinto citou “a de um indivíduo vacinado contra a Covid-19 que tinha desenvolvido instintos canibalescos”, apresentou um caso de contas de Twitter falsas e ainda, um post nas redes sociais que sugeria que “a tecnologia RNA alterava o ADN” e “75% das vacinas tinham efeitos secundários”.
Imagem representativa do RNA
ADN
Este, e todo o género de fake news, podem ser denunciados na página oficial da Organização Mundial da Saúde, “onde é possível fazer relatórios deste tipo de desinformação”.
A desconfiança tem implicações sérias no comportamento, alertou o Professor Fausto Pinto, reiterando a importância de se assumir “uma atitude pedagógica para com a população, transmitindo segurança às pessoas”. “Mesmo o «não sei», quando é dito com assertividade e de forma adequada, transmite confiança”.
Nas considerações finais, o Professor garantiu que “estamos perante uma catástrofe”, admitindo que o cenário pode agravar-se, o que conduziu ao reforço do apelo enunciado anteriormente: “O objetivo principal deve ser a vacinação”.
Em tempo de “contenção máxima”, Fausto Pinto defende que devem ser empenhados todos os esforços e recursos à disposição, com vista à “vacinação massiva”, principalmente numa altura em que o vírus está a atacar com força – “resultado do alívio das restrições no Natal e do aparecimento de uma nova variante altamente contagiosa” – e em que “o nosso Sistema Nacional de Saúde está na linha vermelha”. “Cada dia que passa é mais um dia em que deixámos mais pessoas serem infetadas e morrerem”.
Sobre a vacinação dos estudantes de Medicina, aguarda-se “a decisão da tutela” diante da posição firme, “que equipara os nossos estudantes aos profissionais de saúde”, esclareceu o Professor Fausto Pinto em resposta a uma questão colocada pela audiência.
A conferência online culminou com uma “mensagem de confiança” do Professor Ricardo Mexia, que apontou a vacinação como uma “ferramenta fundamental” no combate à pandemia. Contudo, “é importante não baixar a guarda”, pois levará alguns meses até conseguirmos que a vacinação se estenda a toda a população.
Na nota de encerramento daquela que foi a primeira de uma nova série de FMUL Talks, o Professor Fausto Pinto afirmou que “é importante ouvir as vozes certas”, reconhecendo o caráter fundamental da partilha e discussão de assuntos decisivos para o bem-estar da sociedade e futuro do país.
É nosso dever informar e esclarecer, contribuindo para uma sociedade bem formada e conhecedora da Ciência. A educação é o que nos move, pelo que procurámos esclarecer todas as dúvidas sobre o mais mediático tema da atualidade mundial, num debate para ver na íntegra, AQUI.
Sofia Tavares
Equipa Editorial
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