Há já um ano que a pandemia do novo coronavírus vem assolando todo o planeta, contribuindo para que estes tempos sejam de medo, dor, angústia, de muitas incertezas como seja o modo de celebrar o Natal este ano, e de vários métodos propostos como meio de proteção contra a propagação da COVID-19, como por exemplo o isolamento social.
Perante estes fatores, é inato e suposto que todo o ser humano, que cada um de nós, procure um caminho que lhe traga alento, alívio, confiança e de algum modo o sentido da paz.
A saúde, tanto física como psíquica, é uma condição fundamental para a nossa existência, está inerente à vida humana e está associada à felicidade e à autonomia.
A vida do homem, perante situações de epidemias, crises, doenças ou outras fatalidades, é alterada de inúmeras maneiras como seja o sofrimento que o pode atormentar de forma contínua, com alterações emocionais, de comportamento e a perda de esperança de um futuro melhor.
Face a estas circunstâncias, é absolutamente necessário e inevitável procurar auxílio de modo a encontrar um caminho que proporcione um equilíbrio e um sentido para a vida, confrontando a própria existência, o que o aflige, a procura de um significado, um meio a fim de procurar satisfazer as suas necessidades, procurando ao mesmo tempo alivio ao sofrimento, conforto, bem-estar, tranquilidade e qualidade de vida, não só no domínio físico mas também psíquico com objetivo de poder eliminar a causa ou pelo menos lidar com a situação.
Uma forma de encontrar esse equilíbrio é o caminho da espiritualidade que pode auxiliar a pessoa a ultrapassar um momento de crise ou sofrimento. É algo que dá sentido à vida. É uma força crucial, invisível e viva em cada pessoa, trazendo um sentido de continuidade e significado para a nossa existência. Todo o ser humano busca a autenticidade face a si mesmo, aos outros e à vida. Alguns autores afirmam que a espiritualidade é o sentido profundo dos acontecimentos da vida pessoal, da vida dos outros e da história.
Algumas pessoas em situações limite na procura de respostas e consolo, procuram refúgio na igreja, na religião e na fé, enquanto que outras optam pela música, pelo ambiente, nos familiares ou nos amigos.
Normalmente o ser humano tem tendência por fazer uma associação da espiritualidade com o divino refletido na figura de Deus, através da religião ou da fé. No entanto, não é primordial que esteja ligada à doutrina. Apesar de poderem existir alguns conceitos que se possam sobrepor, não se pode confundir a espiritualidade com a religião, pois não são a mesma coisa.
Em situações de crise, de doença, de limite ou pandemia, a fé e a espiritualidade unem-se no interior do ser humano, influenciando para que este tenha a capacidade de lidar e de se adaptar à sua condição de vida. No entanto, a espiritualidade revela-se de forma única para cada pessoa.
É por meio da fé (a força interior de uma crença influenciadora e de absoluta certeza, que existe em cada um de nós) que se pode ter em relação a uma pessoa, a uma ideologia, à ciência ou mesmo a objeto inanimado, que se mantém a esperança num amanhã melhor ou por palavras de conforto para quem pretenda alcançar algo superior.
Algumas pessoas procuram a esperança e a crença em dias melhores através da oração que representa um meio de confiança em Deus, que é um caminho entre a espera e a esperança.
Os pedidos de suplica de caráter religioso remetem-nos para o início da era cristã.
Uma das características do Cristianismo é a conservação e a veneração dos restos mortais (reliquiae, do latim), dos mártires e mais tarde dos santos. Esta prática iniciou-se no início do século II nas Catacumbas de Roma onde existiam muitas sepulturas cristãs dos primeiros Apóstolos e Papas que tinham sido perseguidos pelas hostes romanas. A partir do século IV iniciou-se o culto prestado aos mártires (na própria sepultura) e que se estenderam a outros santos.
Com a expansão do cristianismo em várias regiões, a construção de igrejas e a dispersão das ossadas dos mártires, passaram a ser venerados pequenas parcelas de ossos, peças de vestuário, objetos pertencentes aos mártires ou objetos de tortura. Também se começaram a venerar objetos relacionados com a Paixão de Cristo, como o santo lenho da cruz e a coroa de espinhos.
Na época medieval, a morte e a vida estavam intimamente ligadas numa altura em que a medicina e os medicamentos estavam ainda muito pouco desenvolvidos. Os grandes medos das pessoas da Idade Média eram a fome, a peste e a guerra. A morte súbita era uma constante, assim como várias doenças que se espalharam pela Europa, como a pandemia de Justiniano que ocorreu entre os anos 542-610, a Peste Negra entre 1347-1352 e as agressões e hostilidades, sempre existentes em ambiente quotidiano.
O homem medievo vivia sobretudo com receio de morrer subitamente e comparecesse diante de Deus sem que tivesse tido tempo de receber os santos sacramentos (Confissão, Santa Unção e o Sagrado Viático), arriscando também qual o destino da sua alma. Perante estes fatos, o homem da Idade Média pedia proteção e auxílio a vários santos.
Naquele tempo em que os caminhos eram sinuosos e de perigos contantes, os viajantes e caminheiros antes de partirem, rezavam ou simplesmente olhavam para uma imagem de S. Cristóvão pedindo-lhe proteção e sorte.
Foram várias as dezenas de santos a quem lhes foram pedidos auxílio, mas os mais solicitados foram São Miguel Arcanjo, Santo Adriano, Santo Onofre, Santo Antão, Santa Bárbara e São Cristóvão.
Desde o início do século VII até aos finais do século XIV, S. Sebastião teve um lugar proeminente na proteção dos fiéis seguido por S. Roque.
Muitos destes santos eram invocados contra a peste porque muitos deles foram infetados por esta doença e posteriormente curados.
Em meados do século XVI estes santos entraram em declínio devido aos milagres efetuados por São Carlos Borromeu que decorreram em 1576, durante a grande peste em Milão.
Deve-se a São Carlos Borromeu, arcebispo da diocese milanesa, o conceito e a prática da quarentena (termo de origem italiana quaranta giorni, ou, quarenta dias).
Em 1576, quando Milão estava a ser fustigado pela peste, São Carlos Borromeu propôs uma quarentena geral em que todos os cidadãos deviam ficar fechados em casa durante quarenta dias, o que foi aceite a 18 de outubro desse ano.
Também qualquer navio mercante que atracasse no porto de Veneza era inspecionado, e se uma única pessoa fosse suspeita de estar doente, toda a tripulação ficava ali por 40 dias.
Os habitantes que estavam em quarentena, na cidade de Milão, não podiam ir à igreja rezar ou participar na missa. São Carlos ordenou que fossem colocadas cruzes e altares nas esquinas da cidade para a celebração das missas, para que todos pudessem participar de longe, através das janelas.
Na segunda metade do mês de dezembro, verificaram que a propagação da doença tinha diminuído, decidindo prolongar a quarentena. Apesar de concordar com a decisão, São Carlos lamentou que “o povo não poderia ir à igreja, nem mesmo na solenidade do Santo Natal”. Nesse ano, a missa de Natal foi diferente.
A quarentena foi o método adotado em várias cidades portuárias e considerada como um dos mais eficazes no controlo da propagação da peste.
A divulgação dos cultos de São Sebastião e de São Roque, fez-se nos finais do século XIV, mas principalmente no século XV, inicialmente pela disponibilização da Legenda Aurea de Jacobus de Varagine (1230-1290), que apesar de poder conter erros e lendas, descrevia de uma forma simples, graciosa e curiosa, a vida dos santos sendo a primeira e única hagiografia disponível durante algumas centenas de anos para o conhecimento do povo.
Com a invenção da imprensa, entre 1470 e 1500, foram realizadas mais de uma centena de tiragens diferentes, umas ilustradas outras não, podendo ter também acrescentos em relação ao original, o que permitiu que uma maior população tivesse acesso à obra.
Para o homem medieval que era por norma iletrado, ao ouvir os textos da Legenda Aurea compreendia melhor as pinturas, os vitrais e as esculturas que representavam episódios da vida dos santos, que se encontravam nas igrejas, catedrais e mosteiros.
Nos inícios do século XIV surgiu um maior incremento na indústria do papel e com um custo mais reduzido. Os blocos xilogravados que até então eram para uso na estampagem de tecidos foram utilizados para as primeiras xilografias.
O uso do papel no continente europeu tornou-se habitual o que deu origem a uma maior reprodução de imagens e letras. Agora o homem do povo já podia ter em sua própria casa as imagens onde figuravam cenas religiosas de Varagine e os santos que idolatrava.
Até então, estas regalias estavam unicamente destinadas aos grandes senhores mediante a posse de pinturas, esculturas e das miniaturas dos Livros de Horas.
Estas estampas para além de serem pouco dispendiosas, tinham ainda a comodidade de terem a proteção dos santos contra vários perigos, incluindo a peste, na própria casa o que deu origem a serem muito procuradas e que tivessem sido multiplicadas em quantidades inimagináveis. Estas estampas percorreram toda a europa durante o século XV sobre a forma de “folhas volantes”, sendo comercializadas nos lugares de peregrinação, à porta das igrejas e mosteiros e em feiras e mercados.
De acordo com alguns textos e algumas pinturas que chegaram até nós, descrevem e indicam-nos que as estampas adquiridas eram por norma pregadas no interior das casas, atrás das portas, nos móveis e no interior de arcas, baús e cofres, que serviam de oratórios quando em viagem.
Como forma de proteção ao próprio dono eram muitas vezes cosidas ao seu vestuário ou ao chapéu.
Devido à sua vulgarização, ao seu baixo custo e por terem andado de mão em mão, as primeiras xilografias são muito raras. As que chegaram até aos nossos dias estão incluídas em coleções particulares, museus e bibliotecas.
São Roque, o santo francês cujo nascimento pensa-se que se tenha verificado em 1295 e a sua morte em 1327, 1376 ou 1379, em Montpellier (França), adquiriu rapidamente fama logo após o seu falecimento e foi considerado como protetor das pestes.
Durante vários séculos, a europa foi assolada por várias ondas de peste.
Também Portugal foi afetado por algumas destas epidemias que geravam terror na população. Por altura do reinado de D. Manuel I (1495-1521), Lisboa foi atingida por uma vaga de peste. Tanto o rei como o seu antecessor D. João II já tinham conhecimento da fama e dos feitos milagrosos de S. Roque (o próprio santo tinha sido infetado pela peste e que se tinha curado milagrosamente), em 1505, D. Manuel I solicitou à República de Veneza, uma relíquia daquele santo para que este protegesse Lisboa desta doença terrível.
Os seus restos mortais estavam em Veneza e atualmente encontram-se na Igreja de São Roque na mesma cidade. O pedido do rei português foi aceite pelo Doge de Veneza, mas a relíquia do santo demorou quase dez anos a chegar a Portugal, apesar de em 1506 ter sido começada a construção de uma ermida num sítio descampado rodeado de oliveiras, para a receber e iniciar-se o culto a São Roque.
Posteriormente no mesmo local da ermida iniciou-se em 1553 a construção da Igreja de São Roque (no Bairro Alto).
Para além de Veneza e Lisboa, só existem mais duas cidades que possuem relíquias de São Roque. Com a vinda da relíquia apesar de “… uma coisa pequenina que ainda não se sabe bem o que é…”, S. Roque tornou-se um santo lisboeta e a crença que nele foi depositada ainda se mantém viva nos dias de hoje. Anualmente em outubro é celebrada uma missa onde a relíquia é exposta e realiza-se uma procissão em sua honra que percorre as ruas do Bairro Alto.
Mais tarde, a Igreja de S. Roque tornou-se no grande santuário das relíquias em Portugal.
Referências consultadas:
- Epidemias, quarentenas, igrejas vazias: precedentes na história. Acedido em 10/12/2020
https://www.vaticannews.va/pt/vaticano/news/2020-04/epidemias-quaretenas-peste-precedentes.html
- Ribeiro, Patrícia Cruz Pontífice Sousa Valente. A espiritualidade no doente crónico como uma estratégia de coping: uma narrativa de história de vida. Acedido em 10/12/2020 http://www.index-f.com/referencia/2008pdf/7-2131.pdf
- Roque, Mário da Costa. As pestes medievais europeias e o “regimento prouytoso contra há pestenença”: Lisboa, Valentim Fernandes (1495-1496): tentativa de interpretação à luz dos conhecimentos pestológicos actuais. Paris: Fundação Calouste Gulbenkian, 1979
- São Roque protegeu-nos da “peste”. Conheça esta deslumbrante igreja de Lisboa. Acedido em 11/12/2020 https://viagens.sapo.pt/viajar/viajar-portugal/artigos/sao-roque-protegeu-nos-da-peste-conheca-esta-deslumbrante-igreja-de-lisboa
Lurdes Barata
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