Parcas palavras, discreto e reservado. Encontro-o no seu Gabinete no Edifício Egas Moniz. Camisa branca e calças num tom camel. Tem um sorriso escondido que é característica de quem pensa muito mais do que aquilo que fala, ou expressa verbalmente. É uma aparente calma que parece nunca sentir o próprio coração a entrar em arritmia, mas ele entra, especialmente quando se lembra dos três filhos que tem em casa e parecem nunca esgotar a energia. Responde cuidadosamente às questões de família apenas com "sim" e "não" e, entre gargalhadas genuínas, percebemos que poderia ser aquele comentador sério que num direto na televisão vê a sua prol a entrar-lhe pela sala aos gritos, com a baby-sitter a puxá-los aflita. Vive bem com a sensação de não há perfeição em nenhum papel social, principalmente o de pai, mas é introspetivo e, quando confrontado com o tempo e a sua gestão, é zeloso nas palavras.
Daniel Caldeira é Cardiologista e Farmacologista Clinico, faz investigação, dá aulas na Faculdade de Medicina e muito recentemente integrou a equipa de Comissão de Ética do Centro Académico de Medicina de Lisboa. Sempre teve a convicção que seguiria Engenharia Biomédica e cumpriu essa vontade. Explica que apesar de adolescente preguiçoso, a verdade é que lhe era natural ser bom aluno. Entrou quando quis em Engenharia Biomédica e ficou um ano. Depois percebeu que afinal queria traçar um plano mais estratégico de metas profissionais a atingir. Mudou então. Não, não para Medicina de imediato, mas sim Dentária, Medicina Dentária. Experimentou duas realidades diferentes e só no terceiro ano de contacto com o ensino superior, entendeu que o rumo que mais lhe encaixava era a Medicina, verdade que apesar de a saber cedo só se quis confrontar com ela depois de alguma teimosia da personalidade.
Fez o ciclo básico de Medicina na Madeira e a partir do 3º veio para Lisboa, onde completou o curso. No 4º ano começou a dar aulas sobre Mecanismos das Doenças (atual Fisiopatologia), algum tempo depois assumia o ensino da Farmacologia Clínica e Terapêutica, como Assistente, e já mais tarde como Professor Auxiliar.
Após os 6 convencionais anos de formação e escolhida a especialidade em Cardiologia, seguiu para o Hospital Garcia de Orta. O elo à Faculdade mantinha-se sempre com as aulas de Farmacologia Clinica e Terapêutica. Chegaria quase em simultâneo ao fim da especialidade e conclusão do Doutoramento. Não satisfeito com o volume de trabalho, submeteu-se a exame à Ordem dos Médicos em Farmacologia Clínica, o que fez com que se tornasse especialista em Cardiologia e Farmacologia Clínica, tudo isto num curto espaço de 6 meses e com 33 anos.
Não é por isso de estranhar quando diz que a linha de pensamento para o seu Doutoramento foi sobre Medicina e Farmacologia Clínica, onde se debruçou não só sobre aspectos como a Farmacoepidemiologia, Segurança e Farmacoeconomia dos anticoagulantes orais. Tema que ainda o mantém bem presente, quando ainda há menos de um mês a FMUL assumia uma posição, em parceria com a Sociedade Portuguesa de Cardiologia, em que se defendia que “os anticoagulantes orais diretos (tecnicamente designados por DOACs ou NOACs) pudessem ser prescritos em receita renovável para os doentes com fibrilhação auricular”. Artigo completo que pode consultar aqui e que é da sua autoria.
Define-se como um “clínico de uma especialidade que tem meios complementares de diagnóstico e que exigem algum raciocínio clínico e fisiopatológico”. Apostou na Cardiologia por ser uma área onde a tecnologia apresenta grandes avanços e, como peixe dentro de água, depara-se também com uma especialidade onde os ensaios clínicos são muitos e igualmente desafiantes para criar outros mais. Sendo uma área que apresenta elevado número de mortalidade, a Cardiologia também tem muitos casos de eficácia e intervenções, perfil ideal que se encaixava nas suas reais valências.
Investigador e já com mais de 100 artigos científicos publicados, gosta de procurar respostas de tudo aquilo que ainda não vê como esclarecido. Sempre foi assim, curioso não por tudo, mas “pelas matérias que prometiam ter sumo para dar”.
Como é que sendo a Cardiologia uma das áreas mais avançada tecnologicamente, continua a ser, em Portugal, continua também a ser a área com mais casos de mortalidade?
Daniel Caldeira: O primeiro aspeto é que os fatores de risco cardiovascular são muito prevalentes, sendo que um dos primeiros é a idade. À medida que prolongamos a longevidade os fatores de risco têm mais tempo para atuar. Mas também a hipertensão arterial que é prevalente em 30% a 40% dos adultos. A diabetes, o tabagismo e a obesidade são igualmente elementos muito abrangentes. Mas sabe que apesar de esta ser uma das principais causas de morte em todo o mundo, há um desinvestimento nas patologias cardiovasculares, se as formos comparar, por exemplo, com doenças oncológicas. Se olharmos para os dados mundiais podemos até verificar que as mortes por questões cardiovasculares são maiores.
Quer dar a sua opinião por que razão há esta opção financeira mais favorável para as Doenças Oncológicas?
Daniel Caldeira: Existe um ónus social associado às doenças oncológicas que traz uma espécie de culpa que as pessoas acarretam e que parece não existir em relação à doença cardiovascular.
Como se o cancro tivesse outro peso social coletivo?
Daniel Caldeira: É! É um peso social sim. Eu sou uma pessoa muito de números e não consigo dissociar a Oncologia das Doenças Oncológicas. Pense no seguinte, as pessoas consideram que um prognóstico no cancro é muito mais grave, mas a verdade é que um prognóstico de uma doença coronária com insuficiência cardíaca grave, tem igualmente um peso enorme. E, no entanto, o peso social dado a cada uma destas áreas não me parece ser o mesmo.
Estamos neste momento em dezembro, passaram-se 9 meses desde que começou a pandemia em Portugal. No final de setembro as notícias começavam a dar sinais que viria aí uma vaga ainda mais preocupante que a primeira. Medidas cada vez mais apertadas e restritivas fizeram os hospitais refazerem a sua própria organização para receber doentes Covid. Onde estão os seus doentes da Cardiologia?
Daniel Caldeira: Os doentes de Cardiologia que estão agora a ter as primeiras consultas, ou seja que nunca tinham tido consultas desta especialidade antes, estão a ser recebidos de forma presencial. Os restantes, depende da situação clínica, mas estamos a assegurar consultas telefónicas e aqueles que nos parecem precisar de mais cuidados podem e devem vir. Mas estamos a falar de um período de consulta, porque há patologias que surgem abruptamente e sem aviso prévio para os quais os doentes têm de ser avaliados. Doenças cardíacas e neurológicas, ou seja, doenças cardio- e cérebrovasculares nomeadamente doentes com enfarte do miocárdio e com acidente vascular cerebral, esses não se devem resguardar e há sempre urgência. Não ter atenção a estas questões corre-se o risco de estas serem doenças que causam um impacto maior que a própria pandemia.
Pode acontecer a curto prazo a inversão dessa hierarquia de cuidados, prioridades?
Daniel Caldeira: Se as pessoas não recorrerem aos serviços de urgência, se não estiverem informadas, se não houver equidade nos cuidados de saúde, então sim pode haver esse risco. Recordo que durante o primeiro confinamento observámos uma diminuição substancial de doentes admitidos por enfarte do miocárdio, ora os enfartes não deixaram de existir.
Certo, os doentes deixaram de vir por medo, foi isso?
Daniel Caldeira: Os enfartes não deixaram de existir, por isso é o medo sim. A interpretação da informação não foi feita talvez da forma adequada, causando um medo excessivo em relação à pandemia e comparativamente a alguns quadros que as pessoas estavam a viver, que em condições habituais fariam a pessoa dirigir-se a um serviço de urgência para ser avaliado. Esse peso, muito pelo desconhecimento, fez com que algumas pessoas ficassem doentes e não tivessem sido acolhidas em tempo útil. Observámos isso em algumas situações aqui em Santa Maria.
Estamos a falar de doentes e isso faz-me colocar uma questão já habitual. Consegue fazer a separação do espaço do médico e do espaço privado e "não levar o doente para casa”?
Daniel Caldeira: Consigo. Estabelece-se essa regra à priori.
É sempre assim racional?
Daniel Caldeira: Só em algumas coisas. A questão é proteger áreas da vida pessoal que não saiam afetadas com o papel que já implica ser médico.
Como é que um recém médico formado está preparado para intervir com o doente? Como se preparam estas pessoas para o embate real? Como foi consigo, como se preparou para saber aplicar o que tinha aprendido?
Daniel Caldeira: Eu acho que tive um pouco de sorte porque está muito ligado ao meu percurso, eu desde os primeiros anos que tinha muito contacto com a clínica. Desde o 1º ano que tive muito contacto com os doentes e no 3º ano (não sei se devia dizer isto), mas faltei a algumas aulas teóricas para ir para as urgências observar os doentes.
É importante dizer que, até passarmos às técnicas mais invasivas, existe um salto substancial, em que só executamos se houver necessidade disso e havendo uma aprendizagem prévia que se baseia na observação repetida, ensaios e só depois a execução.
Conte-me lá essa ida para as urgências...
Daniel Caldeira: Achava que era o "setting" em que poderia absorver o conhecimento que noutras circunstâncias eu não conseguiria. Esta era a parte da aplicabilidade daquilo que íamos aprendendo na parte mais teórica da nossa formação académica.
Quando é que percebe que tinha gosto por ensinar os outros?
Daniel Caldeira: Foi muito precocemente. Findo o 1º ano temos algumas oportunidades de docência e as disciplinas chave para isso são as de Anatomia. E comecei logo por essa experiência e gostei. Gostei por vários motivos, porque ajuda a relembrar a nossa prática clínica e mantém-nos atualizados, a própria transmissão do conhecimento faz-nos estar mais atentos a nós próprios; depois a interação com alunos, também nos ensina perguntas novas, perspetivas novas e obriga-nos a estudar e não estar estagnados. Faz-nos tentar encontrar a forma certa de transmitir o conhecimento e depois cativar quem nos ouve, para que se envolvam, se interessem.
Fará diferença para um grupo de jovens, como é o caso dos nossos estudantes, ter um Professor mais próxima da sua idade? Poderá um professor mais novo ter uma natural empatia com os seus estudantes?
Daniel Caldeira: Não tenho dúvida nenhuma disso. Como não tenho dúvida alguma que daqui a 10 ou 20 anos os jovens professores dessa altura vão conseguir ter uma comunicação mais empática do que eu. O tempo avança e muda-nos e eu ainda me sinto um pouco naquele que era o espírito do aluno de Medicina, lembro-me das dúvidas que eu tinha e das dificuldades, lembro do que gostaria de ter tido e que não tive e esforço-me para tentar colmatar alguns desses aspetos. Claro que com o passar do tempo perdemos noção, perco noção, daquilo que são as necessidades e vontades de cada uma dessas gerações.
Tem dezenas de papers publicados, diria que é das pessoas mais jovens já com maior número de publicações. A investigação que faz atravessa duas áreas, a Farmacologia e Cardiologia. Mais uma das suas várias áreas de trabalho...
Daniel Caldeira: Um dos instrumentos de investigação sobre os quais me debrucei mais foram as revisões sistemáticas com meta análise. A minha primeira revisão foi publicada estava eu ainda no 6º ano e saiu numa revista com peer review, o que na altura me causou uma satisfação tal, que quis mais. A partir daí comecei a publicar. Em conjunto com pessoas que me apoiaram (mais novas e mais experientes), e sem querer ser injusto para ninguém, tenho de fazer a ressalva a 4 pessoas que muito me apoiaram, os Professores Joaquim Ferreira e o Fausto J Pinto (meus orientadores de Doutoramento) e o Professor João Costa e Dr. Cláudio David.
Ao referir esses nomes está a dizer-me que há pessoas que "nos inspiram" mais?
Daniel Caldeira: Sim, totalmente!
Também gosta de inspirar outros quando ensina? Não por ego, mas para motivar outros a abrir novos caminhos.
Daniel Caldeira: Isso sem dúvida! Sabe que eu acho que devemos ser críticos e ter esse espírito, gosto de passar isso, mas também de ser crítico em relação a mim.
Fica confortável nessa posição de crítica pessoal?
Daniel Caldeira: Fico porque me obriga a reposicionar, a pensar no que digo, até em algumas ações a lecionar.
E lida bem com a crítica?
Daniel Caldeira: Quando é bem fundamentada sim. (Ri) Não pode ser teimosia e só porque sim.
Também um papel editorial em revistas cientificas.
Daniel Caldeira: Assumo esse papel na Cochrane Heart e recentemente fiz parte do corpo editorial da Revista Portuguesa da Diabetes. Tive outros papéis editoriais que, por força da minha agenda, me obrigaram a colocá-los de lado.
Como é que lida com a morte, a perda súbita numa área como a da Cardiologia em que o momento súbito é muito propício?
Daniel Caldeira: (Longo silêncio e ouvem-se dedos a bater na mesa subtilmente, como um tic tac do relógio) Tento avaliar se houve algo que pudesse ter feito e não o fiz, mediante o meu juízo da situação tento aprender.
Deixe-me tocar no tema família. Como é gerir o papel de pai de 3 filhos tão pequenos?
Daniel Caldeira: Não é fácil. (Contém o riso mas ri com o olhar enquanto repete 5 vezes que "não é fácil"). É preciso contar com muita ajuda, tanto em casa, como aqui no trabalho.
Se calhar é importante desmistificar que não há super heróis que aguentem tudo.
Daniel Caldeira: Não há não mesmo. Não é possível. Ao contrário da fase inicial da minha carreira em que eu era o motor da investigação, agora o meu motor também está direcionado para a outra parte e que não chega para tudo. Eu acho que passa pela gestão em que sabemos que temos de delegar. No trabalho tenho pessoas com as quais colaboro e que correspondem áquilo que eu preciso.
Esse é o papel mais difícil que tem hoje em dia? O de ser pai?
Daniel Caldeira: (longo longo silêncio) Sim...Sabe porquê? Porque é difícil integrar tudo. (Não responde mais, mantém-se muito silencioso, das 4 questões que se seguem só me responde que sim, a grande dificuldade é o tempo, ter tempo)
Ser pai mudou-lhe a perspetiva sobre a vida humana?
Daniel Caldeira: Mudou sim. Ganham-se mais certezas, mas também mais medos. Passei a saber muito bem o que quero e aquilo que não quero e o medo é porque há uma extensão de mim sob a qual eu não tenho um domínio e isso, no mínimo, deixa-nos desconfortáveis, mas aprendemos a viver com isso.
Apesar de uma gestão matemática de um tempo sem um segundo de desperdício, Daniel Caldeira não quis deixar de abrir outra porta para aqueles que um dia possam vir a seguir o seu perfeito papel de alguém do CAML, o Centro Académico de Medicina de Lisboa. Manifestou plena abertura para continuar a seguir todos aqueles que queiram fazer um Doutoramento, na verdade, tal como fizeram com ele.
Daqueles que já foi e vai acompanhando, há já casos de sucesso de publicações em grandes revistas científicas, passo que já os colocou noutro patamar de exigências, mas igualmente de novas metas e oportunidades.
Porque as pessoas mais seguras do seu conhecimento querem sempre ser uma extensão para outras, assim é este homem que reúne o triângulo de compromisso clínico, académico e de investigação na sua vida.
Joana Sousa
Equipa Editorial