No início era só mais um vírus, mas à medida que o tempo foi passando, o desconhecimento e a incerteza impregnaram as sociedades do mundo inteiro que, subitamente, ficou em suspenso, apreensivo, cauteloso e contido num isolamento que ditou o distanciamento daqueles que nos eram mais próximos. Perdeu-se o toque, o cheiro, o abraço e o encontro com o outro ganhou novas regras. A impossibilidade de contacto físico com amigos e familiares tem vindo a provocar inquietação e descontentamento crescentes, algo que podemos compreender facilmente com a naturalidade de quem é Humano e carece do outro para sê-lo na sua plenitude.
Forçou-se um isolamento coletivo e rapidamente ecoaram alertas para as consequências de uma medida necessária, por certo, mas tão disruptiva na relação interpessoal e na nossa atitude perante o outro até então, que gerou grande preocupação e desassossego.
E num período tão conturbado como o que vivemos hoje, em que a Covid-19 interrompeu ou suspendeu serviços de saúde mental em 93% dos países em todo o mundo, conforme avança uma notícia da SIC, e ao mesmo tempo se verifica um aumento da procura por este tipo de cuidados de saúde, é urgente delinear estratégias e procurarmos, individualmente, a melhor forma de mantermos a mente saudável e forte (por exemplo, ir ao encontro da Natureza, uma vez que frequentar espaços verdes pode mitigar efeitos indesejados da pandemia na nossa saúde mental, como aponta um estudo realizado recentemente em Tóquio). Caso contrário, corremos o risco de sucumbir às adversidades que se colocam diante de nós neste “novo normal”. Porque, de facto, a pandemia veio ativar o medo, desencadeando uma resposta emocional automatizada face a uma ameaça eminente e que, se não for devidamente erradicada – tal como se procura fazer com o vírus – as consequências podem ser, sem sombra de dúvida, devastadoras.
Se comer e dormir é meio sustento, como nos diz a sabedoria popular, a interação social surge agora como o mais recente elemento de uma tríade essencial para a vida do Homem.
Os resultados de um estudo desenvolvido por investigadores do Instituto de Tecnologia de Massachusetts (MIT) e do Instituto Salk sugerem que o nosso cérebro considera a interação social uma necessidade básica, tal como o nosso corpo precisa de se alimentar devidamente para funcionar.
Publicado pela revista científica Nature Neuroscience, o mesmo estudo concluiu que, depois de ficarmos em isolamento durante um determinado período de tempo, o desejo por interações sociais é, em termos neurológicos, muito semelhante à vontade de comer que sentimos depois de fazermos jejum.
Procurei compreender os impactos psicológicos de um evento tão avassalador para a dinâmica das relações humanas como a pandemia que enfrentamos atualmente, numa entrevista com Marco Torrado, Psicólogo clínico e Psicoterapeuta, Doutorado em Desenvolvimento Humano pela FMUL, onde é Professor Auxiliar de Psicologia Médica e Saúde Mental.
Na sua opinião (pessoal e profissional), de que forma a pandemia de Covid-19 tem afetado a nossa mente?
Marco Torrado: A pandemia provocada pelo SARS-COV-2 tem afetado as nossas vidas de uma forma global e extensível às várias áreas do funcionamento mental, tendo forçado a mudanças significativas na forma como percebemos o mundo e como nos relacionamos com os outros e connosco próprios. O impacto que esta pandemia tem tido nos âmbitos ocupacional (escolar, académico, profissional), social e familiar é de tal forma evidente que nos tem empurrado para uma necessidade permanente de adaptação a variações contextuais constantes, demasiado rápidas e que desafiam o nosso sentimento de conforto e de controlo sobre a realidade. Oferece, portanto, um desgaste muito significativo na capacidade psíquica que cada um de nós tem para gerir a adversidade e a mudança. E, como sabemos, quando as exigências do meio extravasam os nossos recursos cognitivos e afetivos (o mesmo é dizer: a nossa capacidade para pensar sobre o que está a acontecer) a vulnerabilidade ao adoecer aumenta. Claro que cada indivíduo, em função das suas características constitucionais, da sua história de vida e da qualidade do seu meio envolvente (nomeadamente relacional) pode estar mais ou menos apto a gerir internamente o impacto desta pandemia.
Poderá o medo generalizado que se sente hoje em dia ser responsável por algumas condições físicas mais débeis ou doenças concretas?
Marco Torrado: O medo é uma emoção básica e, como tal, adaptativa, sem a qual seria difícil que a espécie humana sobrevivesse a tantos estímulos e eventos mais e menos ameaçadores ao longo de milhões de anos. Mas o que vivenciamos com esta pandemia é uma sensação de medo e ameaça permanentes – seja o medo do contágio, de perder o emprego, do desamparo... – promovendo uma ativação continuada deste sistema primitivo de luta/fuga e que dificulta o equilíbrio e a estabilidade suficientes para a manutenção da saúde, em geral. Claro que a pandemia é promotora de estados de ansiedade que, naturalmente, podem ser mais ou menos significativos em virtude da história da pessoa, da sua situação psicossocial e dos seus recursos para a gestão da adversidade, bem como de aspetos da personalidade prévios. O impacto destes estados emocionais negativos experienciados continuadamente é grande: sabemo-lo pela clínica há muito tempo e pela investigação, nomeadamente em psicossomática, de uma forma mais recente. Além do impacto no adoecer psicológico e na emergência, entre outras, das perturbações mentais comuns, o desencadear de mecanismos psiconeuroimunológicos e inflamatórios sustentados na emocionalidade negativa (ex: sintomas ansiosos e depressivos) pode promover uma fragilização de condições físicas já existentes, nomeadamente as doenças cardiovasculares. Tudo isto, é claro, sempre influenciado pela maior ou menor rede de suporte dos indivíduos, onde naturalmente se inclui o apoio, mesmo que não presencial, da família, amigos e das comunidades em geral.
Quais são os principais fatores psicológicos agravados pela atual pandemia?
Marco Torrado: De momento o que sabemos é-nos descrito por alguns artigos que vão saindo nas revistas nacionais e internacionais da área da saúde mental, com dados ainda relativamente pouco sistematizados, por um lado; e, por outro, pelo que observamos no dia-a-dia da clínica. Diria que é quase inequívoca a perceção de um maior desconforto emocional nas pessoas em geral, o tão comumente denominado distress que vai ferindo progressivamente a capacidade de tolerar aqueles que previamente eram pequenos obstáculos quotidianos e que, rapidamente, são sentidos como profundas ameaças. Porque há justamente um sentimento de ameaça mais profundo à integridade, promovido por um vírus que, não obstante o empenho imperioso da comunidade científica, continua a ser novo entre nós e por isso ainda com poucos significados que, verdadeiramente, vão além da potencial ‘gripezinha’ (como levianamente ainda há quem o intitule!) até à possibilidade de ‘morte anunciada’. Penso que o termo ‘imprevisibilidade’ é talvez aquele que melhor define esta conjuntura que se arrasta. Sabemos que a imprevisibilidade é condição existencial e muitas vezes o cerne do sofrimento que frequentemente nos referem em consulta como o ‘medo de morrer’, mas de facto esta pandemia confronta-nos com esta dimensão de um modo ainda mais cru, o que em certa medida é reforçado pelo mediatismo comunicacional que observamos diariamente. As alterações do humor, com maior irritabilidade, os sintomas ansiosos e os sentimentos de maior insegurança são relativamente comuns. Os pensamentos de ruína e de desesperança também sobressaem, sobretudo quando há perdas de pessoas próximas por COVID-19 e um contacto mais frequente com a morbilidade, como no caso dos profissionais de saúde.
Como tem sido a sua experiência nos últimos meses em consultório, no que diz respeito às evidências do agravamento desses fatores psicológicos? Temos condições para, à data de hoje, avaliar o real impacto psicológico da pandemia?
Marco Torrado: A minha prática de intervenção psicológica em contexto hospitalar e em consulta privada alerta-me predominantemente para os níveis de ansiedade muito marcados nas pessoas que apoio, bem como os sentimentos de tristeza e desamparo, que não raras vezes reativam vivências prévias emocionalmente difíceis. A prática psicoterapêutica requisita muito da subjetividade e da dimensão não verbal do paciente e do terapeuta, e as máscaras dificultam muito a nossa intervenção, a não ser quando já existe uma aliança terapêutica prévia. As abordagens online vieram ajudar e importa estudá-las, nomeadamente pela possibilidade de continuar o apoio clínico e sem mais este obstáculo à leitura facial.
No que respeita ao real impacto em termos de problemas psicológicos e de morbilidade psiquiátrica, penso que esse só será mais evidente daqui a algum tempo. Parece-me ainda assim que, além dos aspetos que já mencionei, há um acréscimo das estratégias desadaptativas de regulação emocional desde os tempos do confinamento absoluto de março de 2020. Falo, por exemplo, no caso de adolescentes e jovens adultos com quem trabalho frequentemente, de um certo recrudescimento do uso do álcool e de outras substâncias aditivas na gestão dos contextos de isolamento social, como também do incremento da relação com o online para outros fins que não os de trabalho ou de formação. O online tornou-se a ferramenta possível de continuidade do percurso escolar e académico de muitos jovens e do trabalho para muitas famílias, mitigando as desigualdades e o decréscimo de oportunidades, mas também fertilizando terrenos de morbilidade afetiva e ansiosa para aqueles que, previamente, já procuravam mais um contexto online em detrimento de um ‘estar com o outro’ fisicamente. De forma similar, a omnipresença do online e dos ecrãs na vida das crianças, ainda mais consensualizada durante o primeiro confinamento, faz antever dificuldades na auto-regulação do comportamento e na gestão parental e isso já é claro no tipo de queixas que surgem. Penso, portanto, que será a médio prazo que melhor perceberemos as reais consequências psicológicas e psicopatológicas da pandemia que vivemos. Ainda assim, penso que há também aspetos positivos por entre toda esta imprevisibilidade. Temos crianças que referem sentir-se mais tranquilas com a presença diária ‘forçada’ dos pais em casa (que muitas vezes passaram a estar em teletrabalho ou mesmo que perderam o emprego) e mais acompanhadas nas suas tarefas, o que não deixa de ser interessante e que retoma uma discussão mais ampla em torno da qualidade das políticas sociais e de apoio à parentalidade.
E qual a sua perceção sobre o estado emocional dos nossos estudantes? Como os tem sentido? Estão psicologicamente perturbados com os constrangimentos inerentes á atual pandemia? Ou poderão as consequências manifestarem-se no futuro?
Marco Torrado: Acima de tudo sinto nos alunos um cansaço difuso, ora traduzido numa maior apatia ora numa menor disponibilidade e motivação. Não sei se é específico dos alunos, honestamente, penso que eles procuram genuinamente ajustar-se às contingências e pelo que vou percebendo até descrevem o regime misto de aulas (presencial e online) como bastante mais satisfatório. Uma das dimensões que me preocupa é a fragilização do suporte social que tende a acontecer e que, por mais grupos nas redes sociais que se façam, não substituem o gregarismo que naturalmente procuramos para nos sentirmos mais seguros e envolvidos. E isto é tanto mais verdade em jovens adultos que, pela sua fase de desenvolvimento, procuram afiliar-se, criar novos vínculos e desafiar-se em novos papéis sociais sem que os tempos atuais o permitam de uma forma mais vivida e eventualmente menos virtual. Quanto às consequências penso que elas poderão ser mais ou menos gravosas no âmbito da saúde mental em função de uma série de variáveis contextuais e individuais, mas naturalmente preocupa-me o arrastar dos elevados constrangimentos sociais e ocupacionais inerentes à pandemia, bem como esta mutabilidade de registos (ora mais confinados, ora menos) que incrementa a perceção de falta de controlo sobre o dia-a-dia e o futuro a médio prazo e, potencialmente, a emergência de mal-estar emocional.
De que forma ou quais as estratégias que podem ser implementadas, a fim de controlar/evitar danos psicológicos causados pela pandemia? O que é que ainda falta fazer (não só a nível individual, mas também no que depende do poder político)? E qual a sua avaliação da comunicação da pandemia no nosso país e no mundo até ao momento?
Marco Torrado: São perguntas complexas, de análise difícil e para as quais não tenho respostas fechadas. Penso que muito tem sido feito quer por diferentes níveis institucionais, designadamente academias, ordens profissionais e administração direta e indireta do Estado neste domínio, embora por vezes me pareça que muitas e diferentes estratégias sem uma concertação mais abrangente tendam a produzir resultados menos substanciais do que se desejaria. Claro que o investimento público, privado e do setor social em profissionais do domínio da saúde mental, em particular psicólogos, penso ser crucial num tempo como o que vivemos, seja nos cuidados de saúde primários, cuidados hospitalares, lares, linhas de apoio, entre outros. Até porque sinto, pelo menos na realidade hospitalar em que trabalho, um incremento importante dos pedidos de ajuda. Mas numa perspetiva mais ampla de promoção da saúde importa envolver mais o conhecimento científico da Psicologia na comunicação em saúde, sobretudo num contexto em que a promoção de comportamentos responsáveis e dotados de maior empatia pelo Outro são tão fundamentais para conter a disseminação deste vírus. Vivemos uma época de informação quase ilimitada, ou por vezes de desinformação travestida de informação supostamente baseada em evidência científica, que circula livremente nas redes sociais e múltiplos fora. E isso pode deter um forte impacto na perceção do risco de contágio, altamente mutável, e nos comportamentos de proteção concomitantes, em particular junto de grupos mais vulneráveis e com menores níveis de literacia em saúde. Importa, por isso, moldar a comunicação a múltiplos e diferentes interlocutores e penso que aí há um longo (e complexo) caminho a ser feito, nesta como noutras morbilidades, visando uma maior adesão a comportamentos preventivos.
Perante a informação de que é o "contacto social" que está na origem do aumento de casos, como é que se gere uma parte fundamental da existência humana - a relação próxima - em tempos de pandemia, em que nos é pedido o distanciamento do outro? A Dra. Graça Freitas, em declarações recentes à imprensa, afirmava que "é preciso reduzir contactos sem deixar de viver", apelando aos portugueses para não baixarem a guarda apesar do cansaço que é já bastante evidente. Como é que gerimos o afastamento sem quebrar os afetos e a ligação emocional como os outros?
Marco Torrado: A organização do nosso comportamento social é em muito suportada pelos comportamentos comunitários e da procura da pertença. Somos seres sociais e muitos estudos mais recentes das neurociências afetivas bem acentuam a importância do contacto social como experiência ímpar para o desenvolvimento humano desde tempos precocíssimos. Um vírus que se transmite entre humanos através dos contactos afiliativos põe de facto em causa uma dimensão nuclear da nossa existência, mas naturalmente requisita a nossa capacidade criativa de adaptação e cultivo dos recursos de resiliência. Diria mesmo que provavelmente nunca foi tão importante a conservação dos laços afetivos e a manutenção dos vínculos como agora, mesmo que por via digital. Claro que a nossa capacidade de adaptação e resistência à tensão promovida pela pandemia não é seguramente inesgotável, mas garantir uma proximidade relacional com as pessoas significativas, mesmo que nem sempre em presença física, é sem dúvida um dos fatores mais protetores relativamente ao adoecer físico e mental.
Que mensagens considera fundamental transmitir à sociedade num momento tão incerto e disruptivo como o que vivemos agora?
Marco Torrado: Creio que vivemos um momento de grande perturbação como de desafio face às crenças que a humanidade, em certa medida, foi desenvolvendo de que a espécie humana é omnipotente e tolera em absoluto a imprevisibilidade inerente à sua existência. Esta pandemia, como eventualmente outras passadas e quem sabe futuras, confrontam-nos com a nossa fragilidade, como com a necessidade de retornar a uma atitude de humildade perante o desconhecido, como também de empenho continuado pela proteção e desenvolvimento da saúde das populações. Parece-me também relevante avaliar o que estamos a viver como algo que, embora disruptivo, deverá ser transitório em virtude do enorme esforço da comunidade científica em garantir uma vacina ou mesmo eventuais fármacos para mitigar esta pandemia. Não podemos, contudo, deixar de antever potenciais consequências, mais ou menos duradouras, na saúde mental das populações. Acredito na ciência e na relação humana e empática como condição para essa resiliência. Seguramente continuaremos a ser capazes de nos reinventar!
Sofia Tavares
Equipa Editorial
