“1 minuto e 36 segundos” é o nome do livro escrito por Pilar Burillo Simões. Uma jovem médica destemida que nunca abandonou a paixão pela escrita, mesmo nos momentos mais sombrios da sua formação académica. O título sugere aquilo que se passa na Prova, tão bem conhecida e temida pelos nossos estudantes de Medicina, a Prova Nacional de Acesso à Formação Especializada – Um “Cabo das Tormentas” com duração de 4 horas, que exige a análise de 150 casos clínicos e a capacidade de resposta de 1 minuto e 36 segundos por pergunta.
Confessa que ao longo do seu percurso académico foi uma estudante de Medicina com muitas atividades extracurriculares, e apesar de ter tentado encerrar todos esses capítulos atempadamente, com o objetivo de se preparar para a prova de fogo, a paixão pela escrita levou-a a dar continuidade ao seu diário de bordo: The Nutsbook – o blog que começou a escrever em 2017 e que nunca deixou de alimentar, nem nos períodos mais exigentes do curso, e que serviu de base à publicação do seu primeiro livro.
Pilar Burillo Simões é atualmente Interna de Formação Geral no Centro Hospitalar Universitário de Lisboa Norte (CHULN) e nos últimos tempos tem colaborado com uma empresa dedicada à formação de profissionais de Saúde, que visa preparar médicos recém-licenciados que irão realizar a PNA. Concluiu o Mestrado Integrado em Medicina em junho de 2019 na nossa Faculdade e fez parte da “fornalha” que teve de lidar, pela primeira vez, com o novo modelo da prova.
Pilar, para alguém com o dom da escrita e que já foi laureada com algumas distinções literárias, como é que acaba por escolher Medicina?
Pilar: Eu não acabei por escolher Medicina, eu comecei por escolher Medicina! Nunca quis outra coisa, pelo menos, de forma consistente. Ser médica sempre foi o objetivo de carreira profissional, desde que abri o primeiro livro de Ciências, enquanto escrever sempre foi o que quis fazer do ponto de vista pessoal. Para mim começou, e começa sempre, por ser um exercício de intimidade. De mim para mim. Depois comecei a partilhá-lo com a ideia da experiência comum em mente. Todas as pessoas são diferentes, mas encontramo-nos muitas vezes nos mesmos lugares mentais e temos vivências semelhantes. Encontrarmo-nos no outro é uma descoberta que nos suporta, que nos dá um sentimento de pertença, de compreensão e é nessa perspetiva que enquadro a escrita "publicada" e nunca com um intuito profissional.
Sendo o 6º ano de Medicina um ano tão exigente, onde é que arranjou tempo para escrever um “diário de bordo” e ainda, em simultâneo, alimentar um blog?
Pilar: Diria que o blog é que me alimentou a mim e ao livro! Fui uma estudante de medicina com muitas atividades extra-curso, e antes da preparação para a prova encerrei o máximo de capítulos dessa fase da minha vida, por mais bonitos que fossem. Inclusivamente, fui planeando o percurso para não deixar nada que verdadeiramente quisesse por fazer, mas de forma a "estar despachada" antes do último ano. Rapidamente compreendi que ia enlouquecer se não tivesse um escape, se não desse um significado àquela experiência além da própria linha da meta que, quando se começa, parece tão longe. Esse escape foi continuar a escrever, mantendo as publicações regulares no blog. E dessas publicações nasceu este livro.
Em que condições começa a escrever este livro?
Pilar: Na altura estava muito assustada. Penso que quase todos passamos por isso, ao início, sobretudo a nossa fornada, os licenciados 2013-2019 que fomos os primeiros a realizar o novo modelo da prova. A sensação que tinha, como descrevo no livro, é que era um avião prestes a levantar voo, com medo que a pista fosse demasiado curta. Depois, à medida que os capítulos se acumulavam, houve uma certa consolidação. A certeza do caminho feito. Probabilidades são probabilidades, mas sentia que estava a fazer tudo para que estas me fossem favoráveis e isso foi extremamente importante.
Durante o Curso, houve algum momento em que lhe tenha apetecido desistir?
Pilar: Sim! Fiz o curso quase todo a achar isso estranhíssimo, mas depois aconteceu-me.
E o que é que lhe aconteceu?
Pilar: Fui a uma melhoria de uma oral à qual não devia ter ido. A nota não era má, era só abaixo da minha média habitual. E eu já estava bastante desgastada pela época de exames que tinha passado e também por motivos pessoais. Foi um erro. As assistentes que me avaliaram tiveram uma postura particularmente dura. Todos temos dias maus e nenhuma delas conhecia o meu contexto, mas rapidamente a discussão transitou da minha nota para se eu deveria, ou não, continuar em Medicina. Se teria “direito” àquilo. Não que eu alguma vez pensasse em não querer outra coisa. Apenas me foi sugerido - depois de cinco anos lineares - que aquele não era o meu lugar. Mal comparando, foi como se eu quisesse cantar e os jurados do "Ídolos" me dissessem que a minha voz era a pior que já tinham ouvido.
Como é que ultrapassou esse episódio?
Pilar: Cumpri o ritual suposto nestas circunstâncias que é chorar imenso e perguntar a todos os que me são próximos se estava no sítio certo. Todos me chamaram idiota. E todos tinham razão. Passados um ou dois dias, cheguei às conclusões evidentes. Tinha feito a cadeira. Tinha feito todas antes daquela, com boas notas. E adorava aquilo que fazia. E sonhava com o que iria fazer depois. Por isso, optei por ignorar a única sugestão de que estaria no sítio errado e abracei todas as anteriores que gritavam que o meu lugar era aquele. Até hoje!
Depois desta partilha, o tema do Burnout parece-nos incontornável. Alguma vez passou por um episódio de Burnout durante o curso? Ou durante a preparação para a PNA?
Pilar: Não, nem pensar, mas não é porque sou a super-mulher ou tenha a resistência do Presidente da República. Tem muito a ver com a gestão do horário, com a rentabilização dos vários momentos e com as concessões que estamos dispostos a fazer. Do ponto de vista de suporte emocional, não é preciso assim tanto tempo para sabermos como estão os nossos e estarmos presentes. É preciso lembrarmo-nos de o fazer, apontar na agenda como se apontam os prazos de entrega dos trabalhos. Mas não é só fazível, como ESSENCIAL. Do ponto de vista daquilo que agora se chama "selfcare", procurei nunca perder de vista o número de horas de sono que precisava para "funcionar" normalmente. Se abusava num dia, compensava noutro. E pronto. Tinha apoio, descansava e gostava do que fazia. Foi assim que fiz o curso. A PNA foi mais difícil, porque há mais coisas em jogo e a jornada é muito longa. Os meus últimos dois meses resumiram-se a uma batalha contra a minha própria saturação. E para isso a cura foi escrever. Compreender que o cansaço acumulado era sinal de que aquele percurso ia terminar em breve e que só faltava um último esforço. Mas essa reta final pode ser bastante complicada e foi, para mim, o período mais exigente.
Na sua opinião, que iniciativas poderiam ser criadas nas escolas médicas com o objetivo de apoiar os estudantes e evitar episódios de Burnout?
Pilar: Acho que fizemos já um longo caminho desde que comecei o curso. O Projeto Mentoring, cuja Comissão Organizadora tive o privilégio de integrar (e nesse contexto fundar também o Projeto Solvin’It), cresceu, foi abraçado pela Faculdade e tornou-se uma ferramenta fundamental de apoio e integração aos estudantes na nossa casa. A nível nacional, todas as escolas médicas dispõem agora de um Gabinete de Apoio ao Estudante, do ponto de vista da saúde mental. Portanto, essa estrutura, pelo menos, existe. Mas está pouco divulgada. Além disso, estamos longe de viver numa sociedade em que falamos do cuidado e preservação da nossa saúde e bem-estar mental com a mesma naturalidade com que o fazemos em relação à saúde física. Essa é a principal mudança que ainda tem de acontecer.
Podemos afirmar que o seu livro “1 minutos e 36 segundos” é uma mensagem de coragem e resiliência para os estudantes de Medicina?
Pilar: Gostava que fosse visto dessa forma. Sinto que há uma enorme solidariedade entre colegas ao longo do curso. No entanto, o isolamento que inevitavelmente acaba por instalar-se algures a meio da maratona faz com que nos apoiemos menos uns aos outros nesta fase. O grande objetivo da publicação dos textos é transmitir que todas as maratonas chegam ao fim e que o que importa é continuar o caminho, pessoal e profissionalmente.
Há alguma parte do livro/capítulo lhe tenha dado mais gosto escrever e porquê?
Pilar: O último capítulo é particularmente especial. Primeiro, porque foram muitos os momentos em que duvidei que seria capaz de concluir o projeto. Durante o estudo, nem sempre me apetecia escrever ou nem sempre via claramente qual o ângulo a seguir. É um processo interior que também dependeu da sorte, porque o ponto de partida era escrever as várias crónicas seguindo a ordem em que as catorze especialidades médicas surgiam na bibliografia e foi uma coincidência feliz que os acontecimentos da minha vida também fossem acontecendo numa ordem cronológica, que me tenha permitido permanecer fiel a essa sequência que me autopropus no início. E também porque o último capítulo é Psiquiatria, e está inspirado numa doente que tive e que representou na perfeição a mensagem final que pretendia deixar, de cuidarmos de nós enquanto fazemos o caminho. Às vezes podemos ter um conceito na cabeça e não saber como representá-lo. As vivências que temos à posteriori ajudam-nos a completar o quadro.
Vamos continuar a ouvir falar de si? Para quando o próximo livro? Ainda sobre a importância da saúde mental dos estudantes académicos?
Pilar: É difícil dizer! Este livro foi o resultado de uma conjugação de fatores muito bonita. Pandemia incluída, que adiou o desenrolar do projeto tempo suficiente para ele terminar a ser apresentado na Feira do Livro de Lisboa. De momento, continuo a escrever no The Nutsbook e tenho algumas ideias em desenvolvimento que, para já, vão ficar nos cadernos. Se alguma delas vier a conformar um projeto com envergadura suficiente para se poder equacionar a sua publicação, teremos de ver se existe interesse por parte do público. Para já, a resposta tem sido bastante positiva, considerando especialmente que sou uma autora desconhecida e que nos encontramos num contexto de pandemia. Se a publicação não for possível, o blog será o destino final deste tipo de projetos, com acesso livre à comunidade que me tem acompanhado. Mais do que a Saúde mental, cuja importância é inquestionável, sinto que o meu trabalho irá sempre focar-se na experiência humana que, na sua diversidade, é comum a todos. Essa é a minha paixão e hei-de continuar a trabalhar sobre ela, tanto na Medicina como na Escrita.
N.B: O livro “1 minuto e 36 segundos” pode ser adquirido nas livrarias WOOK e Bertrand. Na FMUL, poderá encontrá-lo na Biblioteca da Faculdade, onde existe um exemplar, ou na Bookspot (livraria da sala de alunos, que receberá em breve uma consignação de alguns exemplares).
Isabel Varela
Equipa Editorial.