É curioso, e até irónico, que tenha sido um vírus a colocar a saúde mental na ordem do dia. A pandemia de Covid-19 impôs o confinamento que determinou, para muitos, uma alteração drástica de hábitos, em que nos vimos privados de uma liberdade que, gradualmente, reaprendemos a valorizar. De um dia para o outro, a realidade do quotidiano mudou. A mudança é inevitável, como sabemos, mas a capacidade de nos reinventarmos e adaptarmo-nos às situações, encontrando formas de crescimento e evolução é uma escolha. Escolha essa que se revela difícil se não estivermos mentalmente fortes, daí ser fundamental cuidar da saúde mental. Porque a verdadeira saúde só existe quando corpo e mente funcionam de forma saudável e harmoniosa.
Segundo a Organização Mundial da Saúde, não existe uma definição oficial do termo. No entanto, a organização define-a como “o estado de bem-estar no qual o indivíduo tem consciência das suas capacidades, pode lidar com o stress habitual do dia-a-dia, trabalhar de forma produtiva e frutífera, e é capaz de contribuir para a comunidade em que se insere”.
O que é facto é que a atual pandemia criou e agravou as determinantes sociais de várias doenças. E as doenças mentais têm estado no centro das atenções de muitos especialistas, que se mostram preocupados com o aumento do número de casos de ansiedade, depressão e de problemas ligados ao álcool e à toxicodependência, defendendo uma ação concertada e muito bem articulada entre a Medicina Geral e Familiar, Psiquiatria e Psicologia, para além da coordenação com os múltiplos setores da sociedade, da segurança social, educação, economia à justiça, habitação, transportes e cultura.
O Bastonário da Ordem dos Médicos, Miguel Guimarães, afirmou recentemente numa entrevista que “o maior problema que temos neste momento na área da saúde tem a ver com os doentes não covid”, alertando para a realidade da falta de recursos nos hospitais, nomeadamente a carência de médicos, enfermeiros, psicólogos e assistentes operacionais.
À semelhança de outros serviços e especialidades, também a Saúde Mental se viu obrigada a reorganizar-se com planos de contingência, de forma a assegurar a disponibilização de cuidados de saúde essenciais.
Na opinião de Miguel Guimarães, "a saúde mental vai ser a grande pandemia deste século", atentando numa situação que “deveria ter sido acautelada há muito tempo, implementando e investindo no plano nacional de saúde mental”. Uma mensagem que é também o mote do Dia Mundial da Saúde Mental para este ano, apelando ao aumento do investimento na Saúde Mental.
É um alerta sério este, que nos é apresentado. E a doença mental não acontece só aos outros. A pandemia trouxe não só o confinamento (um capítulo violento para muitos nesta história que se escreve a cada dia), mas também o distanciamento físico, uma nova dinâmica de relacionamento interpessoal, novos modelos de trabalho, o medo da infeção, a crise económica e, principalmente, a incerteza do futuro. Só esta incerteza, por si só, enraizou no nosso quotidiano, o stress e a ansiedade que prejudicou, em menor ou maior escala, a nossa saúde mental.
O teletrabalho foi a solução que muitas empresas encontraram para evitar a propagação do novo coronavírus e, ao mesmo tempo, conseguir manter os empregos, evitando cessar atividade. Mas será o teletrabalho a nova idolatria? A discussão foi lançada pelo Psiquiatra Pedro Afonso, Professor Auxiliar na FMUL, num artigo de opinião em que alerta para os “riscos de que o teletrabalho, realizado em regime exclusivo, possa causar danos à saúde psíquica”, defendendo que a dignidade humana “não pode ser espezinhada em nome de uma modernidade laboral”. Segundo o Professor, o teletrabalho não deve ser imposto, referindo “o isolamento social e o individualismo no trabalho”; “o desaparecimento dos limites entre o trabalho e a vida familiar”; e “o desligamento da cultura da empresa” como as principais desvantagens do teletrabalho, um tema que merece, na opinião de Pedro Afonso, um debate público mais sério e abrangente.
No mesmo artigo publicado no Observador, o Professor toca ainda num ponto chave, evidenciando que “não é a sociedade quem concede os direitos humanos, mas são estes que pertencem às pessoas como algo próprio e inegociável”.
Numa publicação da SIC Notícias é revelada a conclusão do relatório sobre os impactos da pandemia na saúde mental dos portugueses ("Crise Socioeconómica, Pobreza e Desigualdades Durante e Após a Pandemia"). O documento foi divulgado pela Ordem dos Psicólogos no Dia Mundial da Saúde Mental, comemorado no passado dia 10 de outubro, e “aponta para impactos negativos, como a diminuição do bem-estar e o aumento do stress e de problemas de saúde mental, como ansiedade e depressão, provocados pela crise socioeconómica”.
Fator acrescido de ansiedade têm sido algumas notícias e estudos, muitos difundidos pela comunicação social sem matéria de prova sólida ou o fundamento científico necessário para validação rigorosa do teor de verdade dos mesmos. Exemplo disso é a análise do Professor Joaquim Ferreira a um relatório científico sobre os efeitos neurológicos da covid-19 (avançando que a memória e a linguagem podem ficar comprometidas na sequência da doença) e que ainda não foi revisto por pares, ou seja, por “outros cientistas que conhecem da matéria”.
Prudência e sensatez são fundamentais na comunicação de uma pandemia e o facto de se terem encontrado partículas do material do novo coronavírus no cérebro, não atesta por si só a existência de danos cerebrais irreversíveis decorrentes da infeção por SARS CoV-2, explicou Joaquim Ferreira em entrevista à SIC Notícias, realçando que a envolvimento do cérebro na “equação” da pandemia não é novidade, já que a perda de olfato, reportada por alguns doentes, foi desde logo uma pista de eventuais sequelas neurológicas da covid-19. “As pessoas ficam assustadas por estarem doentes”, denotou o Professor, chamando a atenção para o facto de alguns dos sintomas neurológicos associados à covid-19 (“dores de cabeça, defeito de memória, alteração de comportamento, sonolência”) poderem ser “motivados pela ansiedade de ter uma doença que tem todo este impacto e não pela lesão cerebral em si”.
A comunidade médica e científica tem vindo a estudar o vírus e a doença ao longo dos últimos meses e Joaquim Ferreira faz um balanço do conhecimento adquirido ao longo dos últimos 9 meses. “Conhecemos muito sobre a fase aguda da doença, ou seja, conhecemos muito daquilo que são as semanas que se seguem à infeção. Não conhecemos rigorosamente nada sobre o risco daquilo que vai acontecer daqui a 6 meses, 1 ano ou 1 ano e meio”.
Quando a mudança entra nas nossas vidas sem pedir licença, podermos sentir-nos por vezes demasiado assoberbados, dominados pelo pânico e pelo medo, que ocupam na nossa vida o lugar do discernimento e da alegria. Nesses momentos, pedir ajuda é o primeiro passo. É imperativo deixar de sofrer em silêncio para dar início à recuperação, mergulhando num processo, muitas vezes doloroso, mas essencial para resgatar o bem-estar e a saúde plena nas nossas vidas.
Sofia Tavares
Equipa Editorial
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