O combinado era passar na Associação de Estudantes às 15h para começarmos a entrevista. Envia mensagem a adiar por 10 minutos, está a acabar de almoçar, saiu da Medicina Interna às 13h, onde passa diariamente o seu tempo de estágio enquanto finalista de Medicina.
Quando combina uma hora cumpre-a exemplarmente ao segundo. Não é por isso de estranhar que quando entro já esteja animadamente a cumprir um dos seus excelentes papéis, o de relações públicas.
Na entrada está a Ana Isabel Jesus, a tesoureira de longa data da AEFML, e na gestão geral, a falar com ela reforça que as bagagens de fim-de-semana não podem ficar espalhadas na entrada. Grande parte dos nossos estudantes são de fora e aproveitam a sexta-feira para ir ter com a família. Ter um lugar para guardar a bagagem é compreensivelmente necessário.
A ele se deve o mérito de ter encurtado o caminho entre a Faculdade e a Associação de Estudantes como representante máxima deles. Essa é a sua grande obra feita. Obra que executou com extrema diplomacia, dedicação e brio, sempre silencioso e para lá do protagonismo tentador de quem assume cargos de visibilidade.
José Rodrigues é ainda, à data em que escrevemos este artigo, o Presidente da Associação de Estudantes da Faculdade de Medicina de Lisboa. Com 23 anos, é o filho mais velho de dois rapazes nascidos na Guarda, mas ambos a estudar em Lisboa. Filho de um advogado e de uma economista, as bases dão-lhe uma ética e um sentido de família enraizados, todo o resto é-lhe genuinamente intrínseco e preenche-lhe o carácter.
Chegou a Lisboa em 2015 para estudar no Mestrado Integrado em Medicina. A 12 de Junho de 2019, é eleito Presidente da Associação de Estudantes da Faculdade de Medicina de Lisboa. Desde que o conhecemos que nos diz que “é a generosidade inerente à profissão” que o mantém interessado na Medicina.
Está, na verdade, há 4 intensos anos na AEFML, anos esses que se inundaram de vida e tempo ocupado. Mas o último ano e 4 meses foi marcado por dias e dias seguidos de trabalho, sem direito a tempo privado, horas suficientes para dormir, férias para poder parar.
Atravessámos o jardim do Hospital de Santa Maria, das muitas pessoas com quem se cruza, fala gentilmente e com uma familiaridade que indicam ser muitas vezes esta a sua primeira casa. Sugiro sentarmo-nos num banco metalizado ao ar livre, porque acho que o consigo tirar mais da sua área de conforto se sairmos da AEFML, mas não ganho a aposta. Aceita os desafios, mas não os arrisca se for para perder o pé, "sentamo-nos aqui, está ótimo, mas mantemos a distância de segurança". Senta-se no extremo do banco, eu no outro. É assim em tudo, o primeiro a cumprir as regras, mesmo que ninguém o observe, entende por convicção que se elas existem, não devem ser ignoradas.
Isso explica que por mais que goste de alguém não se aproxima, se isso implicar riscos. Os avós sabem-no bem, esteve durante meses sem os visitar devido à pandemia, na altura confidenciou-me que acabariam as visitas ao lar por amor e zelo à avó paterna. Nos intervalos publicava fotografias com o avô materno, para colmatar a saudade, aquela que verbaliza sempre muito discretamente e mantém privada, numa esfera que sendo pessoal, mal a expõe mesmo diante de amigos. Volto à conversa no jardim. Tira o relógio do pulso, gadget que tem sincronizado ao telefone. Desafia claramente o tempo dizendo-lhe que não tem medo de o deixar controlar. E cumpre o desafio sem tentações. É a primeira vez que não olha um fragmento de tempo para os segundos, este foi o mesmo tempo que lhe deu a resiliência e autodomínio.
Diplomata e apaziguador por natureza, tem sentido crítico apurado, mas carrega a proeza de se expressar sem agredir ninguém, sem invadir espaço alheio. Sabedoria que lhe ultrapassa a idade física, conquistou um séquito de convictos que lhe foram abrindo as portas da troca de impressões, permitindo-lhe cada vez mais intervenção. Sem se dar bem por isso, sobre qual terá sido o momento certo, ou a ação direta, tornou-se elemento diário de equipas, o elemento criativo, contraponto e extensão de ideias e vontades, seja qual for o grupo de trabalho.
As primeiras perguntas são sempre as mais fáceis de se fazer, penso enquanto o aviso que o vou fotografando à medida que fala e que gravo o áudio da nossa conversa. Parece confortável com tudo, mas nunca se esquece que se está a gravar ou a captar algo. Enquanto fala e recorda momentos, que descreve sempre pelo lado positivo e sem excesso de emoção, desenha com o dedo indicador pequenos caracóis no liso e castanho cabelo, que lhe vai caindo sempre liso e leve, mal o solta.
Há meses que andamos a ajustar a data certa para falar, a única preocupação era não ofuscar datas ou eventos, cujo protagonismo já não lhe pertencesse. Assim fomos esperando. Há nele já parte de desprendimento, momento que parece ser sempre tão brando quanto a avalanche de adrenalina que foi tendo ao longo do mandato.
Estás quase de partida deste mandato que finda em outubro. Mas como é que tudo nasce? Calculo que comece com uma passagem de pasta.
José Rodrigues: A passagem de pasta vai-se fazendo. É preciso ir passando várias pastas. Eu comecei a receber a minha há um ano e meio atrás, refletia muito, lia e analisava o funcionamento de tudo. Dessa primeira consciência vem o trabalho seguinte de se escolherem as pessoas principais e analisar as visões e ideias. Cada pessoa que decide que vai avançar, já pensou que coisas gostaria mais de fazer e o que a deixa mais preenchida. Só depois destas ideias, há um encontro onde se discutem e cruzam aspetos globais, avaliando o que é exequível fazer. É com essa visão comum que depois se encontram as restantes pessoas para os Departamentos. Só nesta fase cresce um departamento que corporiza um conjunto de atitudes e iniciativas dentro da Faculdade e em diversas comunidades com as quais se têm parcerias. Por isso não há um momento só, é feito por fases.
Foste desafiado para te candidatar a Presidente da AEFML?
José Rodrigues: Era uma posição natural seguir este caminho, já no mandato anterior tinha reunido alguma experiência para assumir este compromisso maior. Estava na AEFML há algum tempo e achei que podia dar um bom contributo. Falei com a Leonor, a pessoa que estava na Direção há mais e ao mesmo tempo que eu. Nós os dois nem sempre estamos de acordo em tudo, o que é natural e desejável, mas nas decisões iniciais fomos sempre muito equilibrados e consonantes. Ela apoiou-me e também por isso é que eu assumi a candidatura.
É então depois desta conversa que começas a desafiar pessoas para que cada uma escolha o seu departamento e equipa?
José Rodrigues: Começámos a pensar quem seriam as restantes pessoas que seriam os vice-presidentes. Foi igualmente importante encontrar o tesoureiro, tarefa difícil, mas muito bem conseguida. Já com os coordenadores dos departamentos apurámos as restantes pessoas. Depois fizemos uma alteração que consideramos particularmente positiva.
O departamento de Direitos Humanos passou a Responsabilidade e Ação Social, não colocando nunca de lado os Direitos Humanos, mas tendo também uma preocupação e dedicação a outras causas muito importantes enquanto estudantes do Ensino Superior e enquanto futuros médicos.
Na tua primeira entrevista à Newsletter, após teres assumido o cargo de Presidente, apresentavas como "porta-estandarte" três grandes pilares: sensibilização ambiental, a salvaguarda do estatuto estudante / atleta e também a questão do voluntariado e da consciência social. Conseguiste erguer estas tuas bandeiras principais? (Reveja aqui o seu discurso da tomada de posse)
José Rodrigues: Fizémos muitas iniciativas de sensibilização ambiental e construímos uma parceria forte de saúde ambiental com o ISAMB (Instituto de Saúde Ambiental), uma dupla muito concertada e positiva de ambas as partes, nas pessoas do Prof. Osvaldo e Dr. Ricardo Santos, trazendo conteúdos e dando mais destaque aos temas ambientais. Quisemos mostrar o impacto das consequências ambientais e parece-me que conseguimos sensibilizar as pessoas. É irónico que 2 ou 3 dias antes de a Faculdade fechar, fomos comprar ecopontos para os espaços da AEFML. E já os temos nas várias salas, mas pouco puderam ainda ser usados, porque a pandemia obrigou a encerrar os espaços. Espero que os ecopontos durem mais tempo que a pandemia para que sirvam o seu máximo.
Isso quer dizer que a maioria das vossas vontades, não conseguiu ter real aplicabilidade?
José Rodrigues: Não houve momento para efetivar os circuitos dos ecopontos, por exemplo. Sobre o voluntariado, quer na Ação Social, quer na Saúde Pública e Sexual juntaram-se a projetos já existentes, desenvolveram-se e deram novos passos, o projeto Nexus é sinal disso. Mesmo com a pandemia, nunca parámos de criar mais iniciativas. Outro caso foi a organização de colheitas de sangue para os testes serológicos da Faculdade e em colaboração com a Universidade de Lisboa. Também agora com a Secretaria de Estado para as Migrações, estamos a promover um projeto de consciencialização e promoção de formação junto da comunidade migrante e requerentes de asilo. Os estudantes aderiram muito a esta campanha, apesar das limitações que temos agora, mas mantêm um sentido muito humanista mesmo nas situações mais complicadas; se já eram solidários, tornaram-se agora inexcedíveis. Em relação ao estatuto do estudante / atleta, apesar de um pouco afetado pela pandemia, o despacho da Universidade de Lisboa foi publicado em julho, e em agosto trabalhado com a área académica, com uma adaptação, o que permite que a Faculdade adote e assuma esse mesmo estatuto. Creio que a sua divulgação estará, por isso, por dias para muito em breve.
A verdade é que um ano não é quase nada para se conseguir implementar tantas vontades.
José Rodrigues: É pouco tempo para veres tudo feito.
Deixa-me lançar-te uma provocação. Há uns tempos dizias-me que muitas vezes quem está de fora entende que uma Direção só tem obra feita se ela for palpável e visível para todos, como a construção do novo bar de estudantes. Não havendo uma obra palpável, é como se não tivesses sonhado e implementado projetos?
José Rodrigues: (Hesita) Essa pergunta... Bem... Um ano... De uma forma mais abstrata ou geral, um ano na Associação é algo muito subjetivo, porque a perceção de tempo depende muito do nosso estado de espírito. Logo no início, quando estamos naquele entusiasmo de começar, queremos que passe o período de campanha eleitoral, ser eleitos, o período da tomada de posse, e parece que cada dia demora muito e que está tudo ainda longe de acontecer. Apesar de tão perto, parece tudo estar tão longe. Depois quando passamos os dias a trabalhar, só queremos que os dias aumentem imenso para conseguirmos fazer tudo o que queremos. Chega depois a época de exames e pensamos que o tempo passa rápido demais e que não teremos tempo para estudar tudo o que é necessário. Depois voltamos outra vez à engrenagem rápida da vida na Associação e só precisamos é de esticar mais os dias para fazer tudo. Quando começamos a chegar ao fim do mandato é que começamos a perceber que tudo devia ter demorado mais tempo e que esse tempo deixará um misto de saudade, com a sensação de grande dedicação, contributo e muitas horas dedicadas em exclusivo ao projeto. Sentimos, por isso, também que chega a hora de dar a oportunidade e o leme a outros, para que cheguem novas oportunidades, ideias e que deixem o lugar um pouco melhor do que o encontraram. Este é o resumo de um tempo que, sendo longo, parece tão pouco... Em situações normais, cada Direção tem o sonho de fazer com que aquele ano seja o melhor. Este sonho, que é de todos os que por cá passam, fazia sentido até ao momento extraordinário que estamos a viver agora. Talvez só daqui a décadas vejamos o verdadeiro impacto de tudo o que estamos a viver, mas provavelmente não haverá algo mais estranho, disruptivo e com tanto impacto como a pandemia de hoje. Tínhamos muitos sonhos, o de renovar a sala de informática, alterar algumas coisas na sala Prof. Eduardo Coelho (sala do "Aquário") e modernizar a sala da Direção, mas nenhum desses feitos alguma vez fará jus ao ser Presidente e sermos a Direção em que a COVID-19 eclodiu. Não por nossa responsabilidade, mas teremos um perfil biográfico bastante mais marcante do que qualquer outra Direção.
Queres falar-me desta fase que continuamos a viver e que marcou boa parte do teu mandato? Num sentido figurado a imagem que tenho é de alguém que está a correr a uma grande velocidade e de repente bate num muro e se trava à força. Emocionalmente, como é que alguém que dá a cara por uma equipa lida com a adversidade?
José Rodrigues: (Fica a pensar) Pois...Apesar de tudo já passaram mais de seis meses desde que chegou a pandemia a Portugal e da paralisação total do nosso país e agora acho que já se consegue olhar com alguma distância. A primeira coisa a dizer é que o mundo não acaba, a vida continua a existir, não da mesma forma para se concretizarem tantos sonhos e projetos de um conjunto notável de estudantes, mas não pára. Estes estudantes, todos os das comissões organizadoras, deram um cunho muito forte ao que foi feito e colocaram um sentimento de pertença grande na Faculdade. No começo, no primeiro impacto, quando foi preciso cancelar as grandes iniciativas praticamente todas (Olimpíadas, AIMS, Sarau Cultural, Corrida Saúde + Solidária), não entrámos sequer em desespero, tristeza, ou frustração, porque não houve muito tempo para isso. A Direção da FMUL colocou-nos um problema, discutiu connosco de forma muito aberta e cooperativa sobre possíveis caminhos e, mais uma vez, se demonstrou uma muito boa relação e trabalho da Direção e Equipa Administrativa da Faculdade, connosco. Em tempo recorde viu-se um esforço, colaboração e empenho para vencer diante de situações extraordinárias e para as quais não havia respostas até então. Por isso, posso dizer-te que o primeiro embate foi um grande pico de adrenalina e de "temos de resolver porque estamos à frente". Tínhamos muitas pessoas dependentes só de nós e não havia nada escrito em qualquer relatório de atividades a dizer o que deveríamos fazer; não havia ninguém para contactar, nem nenhum pedido de ajuda. Daí que tínhamos um espírito de missão muito forte nessa fase inicial. Tivemos de tomar decisões importantes como cancelar e devolver o dinheiro a várias atividades já pagas pelos estudantes. Depois, e como após um grande momento de pico da adrenalina, veio o sentimento anestesiante. Aquele que, mesmo antes de ires dormir já te sentes demasiado cansado. Sabes que o calor humano e a proximidade foi algo que sentimos como muito importante e ficámos sem isso...
O que é que se altera?
José Rodrigues: Estávamos muito juntos e tínhamos muitas atividades. Nem que fosse ir apenas beber café à sala de alunos, ou almoçar em grupo, mas a verdade é que estávamos muito em contacto, esse é o cimento de uma Associação de Estudantes. Tudo isso se foi perdendo e desgastando com a ausência. Ausência agravada com os meses seguintes em que era importante decidir algumas coisas, mas não havendo presença física, foi difícil captar e motivar novamente as pessoas. A nossa missão, na verdade, não tinha acabado, nós precisávamos de continuar a ser relevantes para os nossos estudantes. Esta foi a parte mais difícil, nós próprios precisávamos de ter força e depois de a passar aos outros, numa condição adversa e até aqui nunca vivida. Voltámos a ir para a casa dos pais e a viver com eles muito tempo, assumimos um novo método de aulas, deixámos de nos ver. E encontrar todos os dias motivação para tudo isso, foi uma prova superada com sucesso! Agora voltámos para esta reta final em que a prioridade foi olear todos os nossos serviços para receber os estudantes de volta e da melhor forma possível. Há que destacar o nosso Vice-Presidente Humberto, que se dedicou muito a este funcionamento e sem o qual a AEFML não estaria, neste momento, preparada e robusta para esta nova realidade.
Já há algum saudosismo Zé, ou ainda é cedo?
José Rodrigues: Vai havendo em certos momentos. (Fica pensativo)
Queres concretizar alguns desses momentos?
José Rodrigues: Com a redação dos relatórios de atividades e das várias ações que foram feitas sentimos esse saudosismo. Revivemos memórias de fim de festa onde acabámos muito cansados, mas trocámos momentos de convívio muito divertidos. Momentos como ir comprar algo para uma atividade, ou carregar caixas para um outro projeto. Também é lembrar as pessoas bonitas com quem contactámos e as amizades que daí nasceram. Fazem-se coisas muito bonitas na AEFML. É por isso que tantos têm um carinho muito especial pela Associação, porque muitos são os projetos e as iniciativas que dizem algo. O simples facto de entrar nesta sala de Direção depois de tantos meses afastado daqui, traz tanta nostalgia...Mas para já ainda é um saudosismo espontâneo que vai surgindo. Já fizemos a última reunião de Direção e o balanço de tudo o que foi feito. Agora, o maior saudosismo será a mudança formal, não a mudança em si que é algo feliz, porque traz renascimento e um novo início, mas é o trabalho que nos leva até aí, olhar para o discurso do fecho, comparado com o da tomada de posse. Pensar no começo, naquilo que era uma ideia pueril e agora pode ser visto com uma ignorância (ri). Também sei que quando começar a rever as minhas fotografias todas, desde 2016 e até agora, vou sentir um embate forte, sobretudo porque vou rever momentos tão marcantes quanto as assembleias gerais da ANEM (Associação Nacional de Estudantes de Medicina) que duravam o fim-de-semana inteiro e nós não dormíamos nada. Mas estávamos sempre lá, esforçados, com ideias, esses encontros e outros de formação são de profunda comunhão. Há memórias também incríveis das várias Olimpíadas da Medicina, enfim...
Todas estas reflexões serão muito importantes para que possa fechar um ciclo da minha vida.
Do que é que se abdica para gerir no curto tempo tudo o que é exigido nas tuas funções?
José Rodrigues: Depende de cada um e da forma como cada um gere a sua vida. No meu caso, passa muito por abdicar de algumas horas de sono em relação ao teoricamente definido, apenas compensado em alguns fins-de-semana. Também se abdica de alguma parte familiar e mesmo indo a casa, há momentos em que é preciso continuar a trabalhar. Perdemos alguns bons momentos com o grupo de amigos de sempre, quer os da Faculdade, quer os do secundário. Os amigos do secundário perdem-se ainda mais, porque acabamos todos espalhados por várias cidades. Mas também acho que quando gostamos das pessoas, a ausência não deixa esmorecer os sentimentos que temos por elas.
Fiz o exercício de ir ver as tuas fotografias desde os tempos do secundário, até ao teu momento atual na Faculdade. E as fotografias marcam uma transição de tempo. Sente-se a mudança de postura nas fotos mais recentes, talvez menos espontânea, ou livre. A responsabilidade traz peso nos ombros?
José Rodrigues: Isso é difícil... (Suspira e fica a pensar) É sempre difícil destrinçar esta evolução entre os 18 e os 23 anos, porque é uma altura em que a própria pessoa cresce e amadurece bastante, principalmente quando vai para a Faculdade e muda de cidade e passa a viver sem os pais. Só por si essas transições já trariam mudança, mas claro que essa responsabilidade acresce um peso às costas. A ideia que representávamos a AEFML era algo que assumia grande peso. Aprendi muito com a Direção do Rafa (Rafael Inácio, Presidente no mandato 2016-2017 e atualmente interno de Pediatria no HSM), por exemplo, e sempre houve valores que ele e a Gestão desse ano nos traziam, um deles era precisamente essa noção de responsabilidade. Mas nota, mais uma vez esta é mais uma preparação para a vida de médico. Estou num estágio de Medicina Interna há duas semanas, e apesar de ser um mero aluno de 6º ano, o peso da responsabilidade já é, incomensuravelmente, superior a tudo o que vivi até agora.
Queres falar-me desta tua nova fase de vida que é o contacto com os doentes do Hospital de Santa Maria?
José Rodrigues: Está a ter um impacto enorme, sinto que é o culminar de 5 anos que não foram só aulas, mas também o que foi feito fora das aulas. E o que foi feito no percurso da AEFML preparou-me muito.
Estar na AEFML enriqueceu-te para hoje estares com um doente?
José Rodrigues: Sim, porque à parte do conhecimento teórico que tens de ter, muitas das competências e da forma como sou agora, obtiveram muito reforço positivo daquilo que fui fazendo na AEFML. Não digo que todos têm de o fazer, mas o facto de se trabalhar em diferentes projetos, com diferentes equipas, o sair da nossa zona de conforto, falarmos com outras pessoas e desenvolvermos ideias, são ferramentas que desenvolvem o nosso curso. Sabes que tirando raros corajosos, é muito linear o que fazemos e que passa pelos 6 anos (do MIM) e depois a prova final, a seguir a vaga para o ano comum, só depois a vaga para a formação da especialidade... É de facto incrível como estas nossas ambivalências são tão úteis no nosso 6º ano.
Apesar de estarmos conscientes dos números assustadores da falta de vagas que há para a formação específica em Medicina e da luta da própria AEFML, através da ANEM, e também do Conselho de Escolas Médicas Portuguesas (CEMP) para combater essa limitação de vagas, a verdade é que o percurso em Medicina é muito linear, se tivermos em conta todas estas etapas.
Então e quem são "raros corajosos"?
José Rodrigues: São os que decidem não enveredar pela clínica e, como tal, não fazem o internato, fazem outras coisas relacionadas com a Saúde, seja gestão e saúde, ou políticas de saúde e que serão papéis cada vez mais relevantes na maior profissionalização da área.
Num dos dias de acolhimento aos novos estudantes chegaste mesmo em cima da hora do evento, coisa nunca tua até agora, porque tinhas vindo direto do estágio, como me referiste. Onde é que aprendeste antes aquilo que hoje aplicas aos outros? Ensaiaste em ti? Na família? Não se ensaia? E a forma como se comunica, aprende-se?
José Rodrigues: É um desafio interessante. Temos sempre a figura muito presente do tutor que nos orienta muito. Mas é logo aqui que se percebe da arte de ser médico e que é uma arte de aprendizagem com mentores e figuras. A vantagem de estar num estágio todos os dias é que aprendes tudo isto. A parte mais comunicacional já é bem abordada nas aulas práticas do 4º e 5º ano, ainda que não tão intensivamente. Acho que qualquer pessoa da nossa Faculdade irá bem preparado, seja para onde for. E por dois aspetos bem relevantes. Primeiro: pela extra-curricularidade da Faculdade, não são muitos os alunos que nunca tenham feito ou participado numa atividade organizada onde estas características são todas bem desenvolvidas. Segundo: e aqui é inevitável não falar do Prof. Barbosa, todas as cadeiras das quais foi responsável, que desenvolveu e foi também regente, acabaram por nos trazer grande sensibilidade. Logo no 1º ano com a área de Introdução à Medicina, que foca já muito no doente, num ano em que só abordamos o micro, ou seja, a molécula, o osso, a Anatomia e não vemos ainda a pessoa como um todo. Depois todas as restantes cadeiras e áreas desenvolvidas pelo Professor, designadamente a Psiquiatria e a Saúde Mental, são formas muito importantes de chegar à vida real e sabermos como abordar o doente.
Sei que é escasso o teu tempo de estágio, mas já houve alguma situação em que pensaste, "não sei nada o que estou aqui a fazer"?
José Rodrigues: (Fica em silêncio bastante tempo) Desde o início do curso que mal vinha uma matéria mais complexa, tinha esse pensamento. Mas faz parte do normal processo de aprendizagem. Primeiro vem a ira e uma negação completa com a nossa incompreensão e depois é um processo pessoal de ir com calma e estudando; mas saber pedir ajuda também é muito importante. Eu contei com ajuda de amigos que sempre me ajudaram e orientaram quando estava mais perdido. Outra ideia muito bem representada no Projeto Mentoring é mostrar que aquilo que hoje em dia alguns estão a passar, nós também já passámos e que muitas dessas pessoas, hoje, são profissionais brilhantes.
Este teu ano de gestão foi marcado pela tua refinada diplomacia. Este princípio sempre te foi instigado pelos pais? Ou partiu completamente de ti?
José Rodrigues: Acho que esta característica vem mesmo de mim, tento ser sempre consensual. Eu não gosto que ninguém fique mal, o que não é sempre uma coisa positiva, porque as pessoas têm que por vezes quebrar para que daí nasça algo melhor. Mas eu sou muito apologista do consenso e que todas as partes fiquem minimamente satisfeitas. Nas relações com a Faculdade foi sempre muito assim. Nós representamos sempre os estudantes da Faculdade e há que ter em conta que a gestão deste trinómio estudantes, Faculdade e Hospital é um exercício delicado, mas muito importante.
Achas que representaste bem os teus pares, ou sofreste críticas?
José Rodrigues: Críticas haverá sempre. Para qualquer ato ou passo que se dê, somos alvo de críticas. O mais importante dessas críticas é aprendermos com elas. É um exercício difícil, mas que é bastante importante. Quando alguém nos diz que não concorda, ou que achou algo mal, faz-nos pensar naquilo que deve ser melhorado. Acho inclusivamente que deveríamos ter recebido mais críticas para nos ajudar a identificar novas questões.
A sério que gostarias de ter recebido mais crítica, mesmo que ela tivesse sido menos positiva?
José Rodrigues: Sério! Devia eu próprio ter procurado mais isso, porque parte do que fiz diferente e tentei resolver, foi de feedback menos positivo. Logo, quanto mais contacto tivesse havido, mais poderia ter sido feito. Porque só podemos agir naquilo que conhecemos. E há que não esquecer que numa Faculdade que tem um curso com 6 anos como Medicina, uma licenciatura em Ciências da Nutrição, Mestrados, Doutoramentos, etc., é normal que haja muita matéria que se desconhece. Sabes, eu acho que quem toma a decisão está por dentro de todas as perspetivas e por isso também nos cabe a nós dar feedback, mesmo que seja para reconhecer que errámos. Aliás, é um gesto de grandeza reconhecer quando se errou.
Houve alguma coisa no teu mandato que poderia ter sido gerida de outra forma e que te aponte para esse erro?
José Rodrigues: Sim, a situação dos exames à distância, que poderia ter sido resolvida de melhor forma, mas que serviu de aprendizagem. Criámos o Conselho de Representantes em 2017, órgão encabeçado pelo Presidente da Direção da AEFML e que inclui pelas Comissões de Curso, assim como os Discentes dos Conselho de Escola e Pedagógico, tomámos uma posição sobre os exames à distância de uma forma mais assertiva do que é habitual, mas era preciso informar todos os estudantes, até porque era mais um aspeto novo.
Recebemos muitos pedidos de informação, de ajuda, foi um momento de enorme angústia e nervosismo para todos em que tivemos de agir. Agora, vendo tudo à distância acho que faltou ainda mais diálogo de início sobre este assunto, sinto que não conseguimos dialogar tão bem com as entidades decisoras e daí decorreu um processo mais atribulado do que o pretendido.
Falávamos há pouco do recolhimento e ao regresso a casa, ao ponto de origem. Como foi voltar a viver com os pais, depois de mais de 5 anos a viver de forma já muito independente?
José Rodrigues: Há duas respostas muito breves que são até um pouco cliché, mas que me parece que respondem de forma muito breve a isto. A primeira é que o ser humano consegue sempre adaptar-se. A segunda é que "o homem é o homem e a sua circunstância", e eu tenho duas circunstâncias muito boas, quer seja na vida que tenho em Lisboa, quer na Guarda, não me posso queixar de nada. Sou um privilegiado, porque adoro a minha vida em Lisboa, com toda a atividade que ela implica e na Guarda viver com a dinâmica de casa, com pais e o meu irmão, é algo que não vai voltar a acontecer tanto tempo seguido e que me soube excecionalmente bem. Foi viver com estes dois dilemas positivos de não saber dizer onde estava melhor, porque estou bem nos dois lados.
Agora, claro, foi um murro no estômago deixar a vida na Faculdade. Mas agora que voltei, já me adaptei a tudo novamente. Mas, desta questão, quero ressalvar que o mais importante é que nem todos tiveram esta sorte, há realidades muito diferentes, quem não tem acesso à internet, ou quem partilhava quartos e não tinha mais opções sentiu-se limitado e passou por dificuldades. E é também missão dos representantes dos estudantes e das Instituições de Ensino Superior pensar em todos os casos, quem tem possibilidades e não tem, para responder aos desafios e assegurar um ensino superior inclusivo e de iguais oportunidades para todos, mesmo numa situação pandémica, que agrava desigualdades.
Nem de propósito falavas de Ortega e Gasset sobre o homem e as suas circunstâncias e eu aproveito para te perguntar onde vais ainda integrar mais um papel na tua circunstância, este agora é o de novo estudante no curso de Filosofia, na Faculdade de Letras?
José Rodrigues: Ainda estou a começar o ano e a avaliar como é que vai ser possível conciliar... Nem consigo responder agora. (Sorri) Mas daqui a uns meses digo-te se é possível ou não e como está a ser.
Achas que te coube a ti a capacidade de aproximar os estudantes da Instituição?
José Rodrigues: Sim. Eu creio que no início do mandato e até à pandemia estávamos a conseguir muito essa relação de proximidade. Estávamo-nos a envolver e a aproximar, na senda do legado que foram os mandatos anteriores. Penso que o trabalho estava a ser enorme nesse aspeto. Mas a pandemia veio mudar o novo normal. E como? Quando as nossas imagens de marca deixam de ser concretizáveis, é um grande desafio a travar. Desafio esse que precisa agora de uma nova equipa. Daí a importância de sairmos para darmos espaço aos próximos "loucos" que aí vêm. (Ri) Sabes que estar aqui faz com que sejamos melhores pessoas, levamos ensinamentos para o resto da vida.
Proponho acabarmos a conversa na AEFML.
Para todos os efeitos é a despedida de algo que quase se termina.
Atravessamos de novo o jardim. Vê as horas e espanta-se pelo tempo, "já passou tanto tempo, não percebi". Passou 1h30, o tempo ganha um voo a pique quando queremos que ele pare e nos espere. Enquanto passamos pelo heliporto e se vislumbram dezenas de estudantes já a sair rumo a casa, pergunto o que gostava de ver na continuidade do seu trabalho. Diz-me que quer que as pessoas se sintam felizes a fazer o que fazem, porque só assim há sucesso nas provas para que se superem. Se não fosse a AEFML não teria tantos amigos como conheceu, reforça. Passam por nós várias caras conhecidas, deseja-se bom fim-de-semana, dão-se últimos recados interrompidos pelo barulho que inunda o corredor da entrada principal da Faculdade. Há sempre uma nostalgia que parece ficar perpetuada cada vez que se passa pelo juramento de Hipócrates, escrito na pedra branca das paredes da entrada principal. No regresso à Associação de Estudantes encontramos o Humberto, Vice-Presidente, e a Inês Carolino, da Imagem. Cada um está a resolver questões com um dinamismo como se fosse ainda o arranque de um sonho. Nas paredes há fotografias que ilustram um momento que agora parece curto e que marcou o último ano e meio. O Humberto passa ainda algumas preocupações finais antes de passar definitivamente a pasta.
Continuo a gravar, porque pela primeira vez para mim não ficou claro quando a entrevista terminou.
Como um apartamento em mudança que verá nova ocupação em breve, capto as imagens nas paredes, recheadas de fotografias e caras que foram assinando tantos momentos que a todos nos chegaram às mãos. A despedida é-me inerente também.
Depois de deixares o teu cargo vais continuar a entrar aqui nesta sala?
José Rodrigues: (Riem todos) Alguns de nós continuarão ligados à Mesa da Reunião Geral de Alunos, ou ao Conselho Fiscal, mas há que dar um tempo grande. Precisamos de assimilar o que foi esta relação duradoura e muito intensa e precisamos de arrumar as coisas que nos custaram mais para ficar apenas com as boas memórias. E há que dar espaço a quem chega, porque a nossa presença iria condicionar este novo grupo e isso não é desejável.
Não sais com a sensação que abandonas "um filho"?
José Rodrigues: Acho que não porque o filho vai ficar bem entregue. O que aconteceu aqui foi mais um babysitting que passa para pais cada vez melhores. Vamos ter saudade sim, mas nunca medo algum de deixar a AEFML mal entregue. Não vai ficar mal entregue!
No dia 20 de outubro o José Rodrigues fará parte do momento que assinala nova troca de mandato. Esta entrevista sairá após a tomada de posse de alguém que herdará tempos adversos, ainda assim com a missão de continuar a honrar os mais de 100 anos de história de uma Associação que viu passar alguns dos seus mais brilhantes médicos e investigadores.
Agora em estágio em Santa Maria e até dezembro, o quase médico José segue para a Guarda para contactar com a Medicina Geral e Familiar, depois seguir-se-á Pediatria e Cirurgia no Hospital Amadora-Sinta, regressará a Santa Maria para terminar, em apoteose, em uma das áreas onde mais aprendeu, a Saúde Mental e Psiquiatria.
Do Zé, a Faculdade guarda os maiores agradecimentos de cooperação e entreajuda, das horas que se excederam fora delas, em que foi preciso pedir-lhe ajuda e algumas vezes também ajudar, das férias que interrompeu para acudir a urgências nem sempre suas.
Nos murais da memória que não assina todos os que por ela passaram, fica um pouco da alma de alguém que quebrou as barreiras da hierarquia, mostrando que a harmonia e a extrema correção foram a sua maior arma para desarmar os mais obstinados. A mesma arma que uniu os mais críticos e colocou os opostos em colaboração.
Novo caminho se avizinha no horizonte, caminho que desconhecemos para já o sentido, mas que um dia poderemos voltar a cruzar.
Boa sorte!
Joana Sousa
Equipa Editorial