O Professor António Flores nasceu em Lisboa a 3 de janeiro de 1883 e faleceu a 13 de dezembro de 1957, no Instituto Português de Oncologia da capital, precisamente dois anos depois (no mesmo dia e mês), do falecimento do seu antecessor na cátedra de Neurologia, Prof. Egas Moniz.
De olhar azul, notava-se na sua fisionomia influências nórdicas e francesa. Descendente do apelido francês Pied de Fleurs, daí o sobrenome de seu pai ser Pé de Flores, o comerciante António Pé de Flores.
A sua educação iniciou-se no Colégio de Campolide, cujo ensino era administrado por padres jesuítas, que funcionou no bairro com o mesmo nome, em Lisboa, durante os anos de 1858 a 1910.
Ao terminar o curso liceal com elevadas classificações, o pai presenteou-o com uma viagem a Paris, Bruxelas, Amesterdão, Liverpool e Londres, que associada ao seu domínio fluente do inglês e do francês, contribuiu para que este jovem de 16 anos se abrisse a novos horizontes e apreende-se conhecimentos mais alargados da realidade.
Após ter frequentado a Escola Médico-Cirúrgica da capital, terminou a licenciatura em medicina em julho de 1906, com a classificação de 16 valores.
No decorrer do seu percurso académico demonstrava já elevada cultura, personalidade bem vincada e seriedade de estudante, qualidades pouco comuns. Com elevadas classificações, recebeu inúmeros prémios nas cadeiras de Anatomia Topográfica, Anatomia Patológica Externa, Patologia Interna, Patologia Geral e o prémio Alvarenga em Matéria Médica.
No momento da escolha da especialização optou pela Neurologia, uma área que naquela época tinha pouca representação, tanto na Escola Médica como nos hospitais em Lisboa. Muitos anos mais tarde, o Prof. António Flores na sua “Última lição”, justificava a sua escolha: “A lógica precisão dos seus diagnósticos, baseados na físio-patologia, o cotejamento dos dados clínicos com os anátomo-patológicos, etc”.
Nos cinco anos seguintes à licenciatura, com o objetivo de especializar-se no campo da psiquiatria, frequentou as mais famosas escolas e acompanhou os grandes mestres de neurologia europeia. Em Paris, conceituado centro de estudos, tanto de cultura geral como especializada, nos anos de 1906-1907 e 1910-1911, António Flores segue os ensinamentos de Dejerine, Babinski e Pierre Marie nas suas consultas, nos seus laboratórios e clínicas.
É na labuta pelo conhecimento alheio à medicina como história, belas artes ou economia, que António Flores, após aquelas atividades diárias, frequentava ainda as conferências que se realizavam, por exemplo, na Sorbonne ou no Hotel des Sociétes Savantes.
Na Alemanha, entre os anos de 1908-1910, frequentou o Instituto Neurológico de Berlim, sob a direção do Prof. OskarVogt, a clínica neuropsiquiátrica da Universidade, no Hospital de Charité, e ainda as consultas do Prof.Oppenheim.
Num dos seus estágios orientado por Alois Alzheimer, foi-lhe proposto um trabalho sobre o sistema nervoso do ouriço cacheiro (um insectívoro), que viria a ser publicado na Alemanha, no “Journal für Psychologic und Neurologic”. Este trabalho traduzido para português iria constituir a sua tese de licenciatura, com o título “A Mieloarquitectura e a Mielogenia do Cortex Cerebral do Erinaceus Europeus”, que foi defendida em 1911 na Faculdade de Medicina de Lisboa, comentada pelo seu Professor e Mestre Marck Athias e premiada com a alta e invulgar classificação de 19 valores.
Na Alemanha, o Prof. António Flores recebeu um forte conhecimento científico na área da neurologia, devido ao intenso trabalho que desenvolveu à sua personalidade e descrição, à sua robusta preparação, por falar fluentemente a língua germânica, aos ensinamentos dos grandes mestres e, simultaneamente, ao prestígio que alcançou através das relações que conquistara no meio médico. Na sua estadia em Berlim, conquistou a amizade e apreço do seu mestre Vogt que, anos mais tarde, o convidaria a realizar um novo estágio naquela cidade, para atualização de conhecimentos sobre neurologia e familiarizar-se com fatores genéticos, o que veio a concretizar-se em 1927.
Quando regressou a Portugal nos finais de 1910, o nosso país vivia tempos conturbados, motivados pela mudança de regime e pelo assassinato do Prof. Miguel Bombarda. António Flores ficou constrangido com a desorganização e os parcos meios de trabalho existentes no nosso país, em comparação com os excelentes laboratórios e clínicas onde tinha trabalhado em França e na Alemanha.
Depois de ter recusado o lugar de diretor do Hospital de Rilhafoles, ainda em 1910, iniciou a sua carreira académica em julho de 1911, após a reforma do ensino médico, a criação da Faculdade de Medicina de Lisboa, as especialidades de Neurologia e Psiquiatria e da entrega da cátedra ao Prof. Egas Moniz, cuja escolha foi bastante turbulenta entre a classe médica de Lisboa, quando aceitou o convite do Prof. Egas Moniz para 1º assistente de Neurologia na Faculdade de Medicina da Universidade de Lisboa, mediante determinadas condições, entre as quais a de lhe serem confiadas metade dos doentes da enfermaria e a direção do laboratório de Anatomia Patológica.
Em novembro de 1941, foi nomeado Professor extraordinário de Neurologia. Por limitações no quadro de Neurologia da FML de 1942 a 1945, foi designado Professor Catedrático de Psiquiatria e, a partir de fevereiro de 1945, foi nomeado Professor Catedrático de Neurologia, sucedendo mais tarde a Egas Moniz. A sua jubilação ocorreu a 3 de janeiro de 1953.
Os vastos conhecimentos que possuía, que eram reconhecidos por todos, desde as várias gerações de alunos de que foi mestre até aos vários colegas do Hospital de S. José e de Santa Marta, que amiudadamente solicitavam a sua presença e colaboração.
Logo após o início da Primeira Guerra Mundial, foi mobilizado como neurologista do Corpo Expedicionário Português em França, tendo sido condecorado com a medalha de Bons Serviços em Campanha entre 1914 e 1918 e em 1917-1918, como Capitão Miliciano de Neurologia ao serviço do CEP.
É de salientar os relevantes serviços prestados pelo Prof. António Flores nesta época, usufruindo da sua capacidade de comunicação em língua inglesa, pois conseguiu ir aos hospitais ingleses (que apesar de estarem muito bem equipados) tratar dos soldados portugueses aí internados que padeciam de doenças mentais e nervosas, mas que lhes era difícil a comunicação com os clínicos devido à incompreensão dos dialetos. Posteriormente, foi-lhe dada a possibilidade de transferir esses doentes para um serviço do Hospital Principal da Base Portuguesa nº. 1, onde foi diretor entre abril e julho de 1918.
Não devemos esquecer as ações realizadas e o enorme interesse demonstrado por António Flores quando, nos finais de 1919, Portugal foi assolado pela epidemia de encefalite letárgica, cuja doença já tinha experienciado quando esteve em Londres no ano anterior.
António Flores tido como a génese da Neurologia e da Neurocirurgia em Portugal é considerado um notável clínico lisboeta graças, não só ao seu temperamento reto, calmo e ponderado, mas também à sua excecional preparação neurológica. Enquanto professor, a sua docência é apontada como um dos pontos mais altos do ensino da Faculdade de Medicina de Lisboa naquela época, de acordo com testemunhos de Juvenal Esteves.
O seu percurso académico foi orientado pelo cientismo naturalista.
Dedicou-se à neurologia, separou-se da semiologia, dando primazia ao método de observação adotado por Babinski.
Os seus estudos debruçaram-se pelos conhecimentos científicos da anatomia geral, de anatomia comparada do sistema nervoso, de filogenia e de ontologia.
Enquanto investigador, os seus estudos basearam-se ao nível das arquitetónica cerebral. Os seus estudos científicos primaram pelo racionalismo, a metódica sistematização, o pensamento indutivo e a fidelidade às doutrinas dos seus mestres que foram absolutas referências na orientação científica.
Na qualidade de cientista, Prof. António Flores apoiou-se tanto para a investigação do sistema nervoso, como para a análise material das doenças mentais, o primado anatomofisiológico, não desdenhando, porém, nem da Medicina Mental nem da Psicologia. Em termos clínicos aliou o neurológico ao psicológico. Demonstrou-se avesso às interpretações pelo inconsciente ou pelo simbolismo freudiano, cultivando, desde sempre, a patologia mental e cerebral em especial no campo das demências e encefalopatias orgânicas.
Os Principais Trabalhos Publicados pelo Prof. António Flores:
Publicou vários trabalhos científicos que foram publicados em várias revistas da especialidade, como a publicação alemã “Journal für Psychologic und Neurologic”, a revista francesa “Revue Neurologique” ou a revista “Lisboa Médica”, salientam-se:
Em 1911, a tese de licenciatura intitulada “A Mieloarquitectura e a Mielogenia do Cortex Cerebral do Erinaceus Europeus”.
Em 1953, foram publicados os artigos “Cinquenta anos de Neurologia”, publicado na revista de medicina “A Medicina Contemporânea”, e “Orientação do Hospital Júlio de Matos”, publicado no Jornal do Médico.
Ao alcançar o limite da idade, deixou as suas funções como diretor do Hospital Júlio de Matos e como regente de Neurologia na Faculdade de Medicina de Lisboa. Na sua última lição que ocorreu no dia 15 de dezembro de 1953, o Prof. António Flores viu-se acompanhado por colegas, alunos e amigos que admiravam a sua brilhante carreira de mestre consagrado. Depois do Dr. Romão Loff ter discursado, o homenageado iniciou a sua última lição, descrevendo o seu percurso enquanto estudante e enquanto médico enaltecendo “…a cordial união da família neurológica de Santa Marta”, que tinha contribuído a formar. Logo depois, no serviço de Neurologia, foi descerrado um retrato de António Flores onde falaram os Profs. Almeida Lima, Adelino Padesca e Egas Moniz.
Dias mais tarde, o Prof. António Flores foi homenageado no Hospital Júlio de Matos (onde foi seu 1º diretor), discursando de início o Prof. Barahona Fernandes, que enalteceu a obra científica e as excelentes qualidades do Prof. Flores. A sessão encerrou após o Dr. Ribeiro Queirós ter lido um despacho do Ministro do Interior, louvando os grandes serviços prestados pelo Prof. António Flores à Nação ao longo da sua brilhantíssima carreira e o descerramento de um fresco alusivo à ação do homenageado.
Posteriormente, na Faculdade de Medicina de Lisboa o Prof. António Flores foi homenageado pelos seus colegas, tendo iniciado o discurso o Diretor da Faculdade, o Prof. Toscano Rico, que evidenciou os numerosos serviços prestados tanto à Ciência, como à Neurologia e ao País.
Também um jovem grupo de cidadãos de Castelo de Vide (local onde o professor ao longo de muitos anos desfrutou as suas férias e que adotou como sua terra natal), organizou uma homenagem ao Professor António Flores, que aconteceu em 17 de maio de 1953, onde assistiram as mais altas individualidades daquela vila alentejana.
Em 13 de abril de 1958, o semanário “Terra Alta”, editado em Castelo de Vide, organizou no seu nº 60, uma expressiva homenagem ao Professor António Flores. No mesmo ano, foi publicada uma separata do referido Semanário com o título “Uma homenagem de Castelo de Vide ao Prof. António Flores”.
Durante o seu percurso profissional desempenhou numerosos cargos como:
1911 – Assistente da Faculdade de Medicina de Lisboa;
1917/18- Capitão miliciano encarregado dos doentes nervosos e mentais do CEP;
1917/18- Neurologista do Corpo Expedicionário Português em França;
1922 a julho de 1936 - Adjunto do Diretor do Hospital de Santa Marta;
1933 (abril)- Vogal da Comissão das obras do Hospital Júlio de Matos;
1941 - Vogal do Conselho Médico-Legal do Instituto de Medicina Legal;
1941 – Professor extraordinário de Neurologia;
1941-1945 - Presidente da Comissão Instaladora e Administrativa do Hospital e da Direção Médica do Hospital Júlio de Matos;
1941-1945 - Diretor do Manicómio Miguel Bombarda;
1942-1945 – Professor catedrático de Psiquiatria;
1945 – Professor catedrático de Neurologia;
1945 (abril) - Membro do Senado Universitário;
1945 (maio) - 1º Diretor do Hospital Júlio de Matos;
1945-1947 – Diretor da Faculdade de Medicina de Lisboa tendo solicitado a sua exoneração em 1947, na sequência de uma carga policial;
1957 - Presidente da Direção do Centro de Estudos Egas Moniz; Presidente da Direção do Instituto Português de Reumatologia.
Realizou vários estágios em vários países europeus ao longo do seu percurso profissional:
1920 - Missão de estudo em Berlim, Bruxelas, Paris e Madrid;
1926 - Visitas a clínicas neurológicas de Berlim;
1927 - Missões de estudo em Berlim e Copenhaga;
1929 - Missões de estudo em Paris e Estrasburgo e em clínicas neurológicas em Berlim;
1930 - Visita a clínicas neurológicas de França, Suíça e Itália;
1933 - Viagem de estudo aos hospitais de doenças mentais de França, Alemanha, Bélgica e Holanda.
Foi membro de inúmeras sociedades científicas como:
1911- Sociedade das Ciências Médicas;
1923 - Société Neurologique de Paris;
1947 - Sócio efetivo da Academia das Ciências de Lisboa, nomeado académico correspondente a partir desta data, sócio efetivo número 16, desde 1952. Sucedeu, na classe de Ciências Médicas, a Augusto Celestino da Costa em 1956;
1948 - Sociedade Portuguesa de Otoneurooftalmologia;
1950 - Sociedade Portuguesa de Neurologia e Psiquiatria, desde 1950, nomeado primeiro Assistente a partir desta data;
1952 - Deutsche Gesellshaft fur Neurologie.
Ocupou vários cargos em algumas Sociedades Científicas e Profissionais:
1912 - Secretário de Associação dos Médicos Portugueses; 1º Presidente da Sociedade Portuguesa de Neurologia e Psiquiatria;
1948 - Presidente da Sociedade de Reumatologia; Sócio da Academia das Ciências de Lisboa;
1940-1943 - Bastonário da Ordem dos Médicos. Nesta qualidade, em 26-11-1940 iniciou a sua carreira parlamentar ao ser nomeado Procurador à Câmara Corporativa na II Legislatura. Foi posteriormente renomeado na III Legislatura. Integrou a Secção de Interesses Espirituais e Morais.
Foi homenageado com as seguintes condecorações e louvores:
- Medalha da participação na Grande Guerra 1914-1918;
- Louvores pelos serviços prestados no 32nd Stationary Hospital durante a 1ª Guerra Mundial;
- Medalha da Vitória;
- Medalha de Prata de Bons Serviços em Campanha (19-04-1918);
- Grande-Oficial da Instrução Pública – Por ocasião da aposentação;
- Colar da Academia das Ciências.
Após a sua morte e em sua homenagem:
- Foi inaugurado em 2 de abril de 1967, no Hospital Júlio de Matos, o Centro de Alcoologia de Lisboa António Flores.
- Em 2008, a Sociedade Portuguesa de Neurologia (SPN) criou o Prémio António Flores.
- O nome do Prof. António Flores faz parte da toponímica nacional, nos seguintes locais:
- Lisboa (freguesia do Campo Grande)
- Amadora
- Almada (freguesia da Charneca da Caparica)
- Castelo de Vide (estátua em sua memória)
Como curiosidade, transcrevemos um texto, cujo episódio foi relatado pelo Prof. Vítor Oliveira, Professor do Serviço de Neurologia da Faculdade de Medicina da Univ. de Lisboa, numa sua entrevista a Inês Melo sobre o Prof. António Flores, e publicado num artigo com o título “António Flores, o mestre da Neurologia em Lisboa”:
"Do convívio com João Flores Bugalho, neto deste «ilustre desconhecido», o Prof. Vítor Oliveira guarda curiosidades sobre a personalidade extremamente metódica do neurologista, mas também algumas histórias que passaram de geração para geração. Segue-se um desses episódios:
«Em casa, o Prof. António Flores tinha um pequeno laboratório onde gostava de trabalhar e, por isso, era lá que muitas vezes recebia material para analisar. Certa altura, ficou combinado que um colaborador do Hospital Escolar de Lisboa lhe iria levar um cérebro para estudar. Quando chegou a casa, António Flores perguntou à empregada, contratada há pouco tempo, se não lhe tinham deixado uma encomenda. Muito despachada, ela disse que sim, que o senhor do talho ‒ tinha bata branca e tudo ‒ trouxe um cérebro, que já estava pronto... Naquele dia, tinham mioleira para o almoço.» "
Referências bibliográficas:
António José Pereira Flores (1883-1957). Acedido em 12/10/2020
https://fontedavila.org/personalidades.aspx?menu=25&modo=det&ide=30
ANTÓNIO JOSÉ PEREIRA FLORES. Acedido em 12/10/2020 https://app.parlamento.pt/PublicacoesOnLine/OsProcuradoresdaCamaraCorporativa/html/pdf/f/flores_antonio_jose_pereira.pdf
António Flores, o mestre da Neurologia em Lisboa. Acedido em 12/10/2020 https://www.spneurologia.com/files/contentpage/003/antonio-flores-mestre-da-neurologia-em-lisboa_file_3.pdf
Recordamos hoje o Médico e Professor António Flores, no dia em que passa mais um aniversário do seu nascimento. Acedido em 12/10/2020https://ruascomhistoria.wordpress.com/2019/01/03/recordamos-hoje-o-medico-e-professor-antonio-flores-no-dia-em-que-passa-mais-um-aniversario-do-seu-nascimento/
ESTEVES, Juvenal. A esclarecida mensagem de António Flores: neurologia no auge da medicina. Boletim da FML (1989), n. 43, p. 1-3
MELO, Inês. António Flores, o mestre da Neurologia em Lisboa. Acedido em 12/10/2020https://www.spneurologia.com/files/contentpage/003/antonio-flores-mestre-da-neurologia-em-lisboa_file_3.pdf
Ao Prof. António Flores. O Médico (1953), a. IV, supl., p. 129-130
Prof. António Flores. J. do Médico (1958), vol. 35 (781), p. 141-142
SACADURA, Costa. O Professor Doutor António Flores na Academia das Ciências de Lisboa. O Médico (1957), n. 307, p. 80-82
Lurdes Barata
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