No dia em que começa a ser redigido o texto sobre a nossa conversa, percebo que faz anos. Válter Fonseca nasceu a 19 de setembro, em Setúbal, no ano de 1986. Nesse mesmo instante envio breve nota de parabéns pelo Linkedin, lugar nas redes que mais ênfase dá à carreira profissional de cada um e que mantém sempre algum formalismo entre contactos. No mesmo minuto vem a resposta de agradecimento, empática, disponível. O trabalho é, por certo, a área que mais tempo lhe retira, aquela onde agora está com o foco máximo, porque integrar os quadros Dirigentes da DGS, principalmente em período de pandemia, não é papel leve que permita desligar só porque chegou o fim-de-semana, ou porque entrámos noite dentro.
Ser médico era uma convicção desde cedo, motivado pela vontade de ajudar os outros, a paixão pela matemática e pelas ciências mostrou que não lhe faria sentido seguir caminho alternativo. Mais tarde viria a ser fiel espectador da série americana Serviço de Urgência - ER - percebendo que o que queria era a ação que a série mostrava, a linha da frente onde se tratam os casos mais graves era o seu lugar.
Entrou em 2004, como estudante, na Faculdade de Medicina da Universidade de Lisboa e assim foi cumprindo todas as metas expectáveis e outras tantas por pura vocação. Foi Monitor de Anatomia, Monitor de Bioquímica Fisiológica e de Mecanismos da Doença. Atualmente Professor Auxiliar de Fisiopatologia e Medicina II, desde cedo percebeu que era a Medicina Interna que o fascinava. Vítor Augusto, médico “… internista no Hospital de São Bernardo, em Setúbal, daria a final inspiração para que Válter Fonseca seguisse pela mesma área, “o Dr. Vítor era enciclopédico e sistematizado”.
Olhando em retrospetiva sabe que aí viveu os melhores anos da sua vida e diz, seguro, e com uma maturidade que não lhe revela os 34 anos, que aquilo que hoje é, deve-o ao curso de Medicina da FMUL. Queria estar na linha da frente, não para remediar pequenas soluções, mas para mudar destinos, ou pelo menos tocá-los, explica-me. "Gostava de arranjar tudo desde pequeno”, aquilo que era complexo transformava-se em algo que tinha de ficar exatamente à sua maneira. Depois de desconstruir, construía tudo de novo. O “Castanhinho” poderia ser relato vivo desses tempos, o peluche a quem abriu a barriga e voltou a coser, e que mantém vivo até hoje. Ainda hoje a resistir a tamanha investida médica, o “Castanhinho” tem nova cuidadora, a Carolina de 3 anos, uma das quatro grandes mulheres da vida de Válter.
A avó materna é outra dessas grandes inspirações. Refere-a quando em flashback tenta perceber de onde lhe veio a personalidade. A mãe e a sua mulher, a Catarina, seriam também tema de confidência, uma porque fez tudo para que o adolescente Válter tivesse as melhores condições para estudar e ser aquilo que mais quisesse na vida, a outra por lhe dar o espaço todo para investir na carreira, num momento tão primordial como este.
A Medicina nunca foi herança dentro da família, assume que sempre gostou muito de aprender e estudar. Avesso era-o mais às letras e ao treino físico, mas acabou por ser nadador de competição, pelo Clube Naval Setubalense, vontade imposta pelo pai que em criança quase morrera afogado. As 3 horas e meia de treinos diários, que se repetiam 3 vezes por semana, faziam prever que para se alcançar as metas ambiciosas de fim de liceu, era preciso obrigar a escolhas. Nos tempos de miúdo foi ainda escoteiro, posto que lhe mostraria especial vantagem agora que ocupa um lugar de liderança. É que saber levar ao destino um grupo perdido, dentro de uma floresta, e sem diretrizes de rumo, é carisma que se alcança pela persuasão, raciocínio lógico, mas acima de tudo pelo mérito de se saber assumir que também se falha. Mas ainda que com tantas vantagens, Válter Fonseca entendeu que, como um caminho que se escolhe em detrimento de outro, fez uma escolha, a de premiar o futuro académico.
Talvez porque hoje também é docente, há nele uma melancolia revestida de gratidão pela professora de matemática do secundário, "a professora explicava o referencial cartesiano e desenhava, com uma tampa vermelha de tupperware, uma circunferência no quadro com um detalhe...!
É engraçado observar as pessoas ao vivo, no tempo real em que relatam ou pensam em algo, os olhos falam à frente das palavras, ou expõem as lembranças de um modo que o consciente não pretende evidenciar. No momento em que nos conhecemos pessoalmente e me levantei, enquanto o esperava na longa sala de reuniões, vi apenas o Diretor do Departamento de Qualidade da DGS, porte alto, olhos azuis acinzentados e cabelo claro, de fato azul oceânico e botões de punho de pele da mesma cor, a contrastar com a camisa branca que podia estar a ser usada pela primeira vez. Prudente e protocolar, os gestos geométricos dos braços e disciplina das mãos mostravam uma barreira de proximidade e tempo que acabaram por se quebrar, logo, quase logo a seguir.
Retomemos o tempo lá mais atrás. A Faculdade de Medicina mantinha-se sempre na raiz de todos os seus grandes passos. Depois do Mestrado Integrado, surgia o Doutoramento em Imunologia, com tese defendida em 2018, e cujo orientador foi o Professor e Investigador Luís Graça. Válter Fonseca rapidamente passou a ser revisor científico e consultor científico da DGS. A somar a todas estas ambivalências, havia ainda tempo e espaço para fazer investigação no Laboratório de Luís Graça. Este currículo científico faria com que vários papers saíssem com a sua assinatura, levando-o a recolher louvores e prémios.
Sem nunca perder o elo à Saúde, a verdade é que acumulou nova função, desta vez na Direção Geral. A 2 de novembro de 2018 assumia o papel de Diretor do Departamento de Qualidade na Saúde, inicialmente em regime de substituição de um lugar de um elemento que se reformou. Só depois passa por concurso público, no final de 2019, tomando posse formal em janeiro de 2020. À dúvida como foi tão cedo parar à DGS explica-me que tudo começou em 2012, quando fazia o internato. Depois de completo o curso de Medicina, um dos seus Professores, Henrique Luz Rodrigues, desafiava Válter Fonseca a trabalhar num dos Departamentos da Direção Geral de Saúde.
Por o considerar rigoroso, do ponto de vista da evidência científica, para além de aplicar metodologias sistemáticas da evidência científica, o desafio era que integrasse numa equipa que trabalhasse um conjunto de normas clínicas, para garantir a qualidade e uniformidade da prestação de cuidados de saúde em Portugal, mas que se baseasse na evidência científica mais recente. É por isso que 2012 marca a presença na DGS como consultor científico, depois de afirmar que essa decisão não a fez de ânimo leve, já que refletiu nela um bom tempo. Passava a fazer, assim, a última validação científica das várias normas emitidas, assumindo o papel de última baliza antes de saírem as publicações. Com menos de 30 anos não era fácil avaliar quem já o ensinara.
Mais do que as expectativas dos outros, diz que o mais difícil de gerir são as suas próprias expectativas e exigências pessoais.
Depois de várias tentativas de entrevista e das agendas que foram sempre adiando uma conversa formal, devido à pandemia e ao confinamento, eis que surge a oportunidade de finalmente podermos voltar a encontrar as pessoas pessoalmente. Em tempos de pandemia, não ir conhecer um dos nossos Professores à DGS, seria desperdiçar uma tentadora oportunidade.
Disse-me há pouco que antes de aceitar assumir o seu primeiro papel na DGS, precisou de refletir muito. Porquê, para entender se já estava pronto para esse desafio?
Válter Fonseca: O desafio parecia-me ter uma magnitude muito grande. Eu estava a começar o internato e sabia que teria de vir fazer avaliações e validações científicas de documentos elaborados por pessoas por quem tinha o maior respeito profissional e muitos deles professores meus na Faculdade. Estas pessoas tinham uma experiência invariavelmente superior à minha. Questionei-me como é que eu me sentiria no confronto, positivo, com pessoas que estavam noutro patamar de experiência e conhecimento. Depois houve outro grande pilar de reflexão, o fator tempo. Sempre tive dificuldade em aceitar desafios em que saiba que, à partida, não conseguia cumprir aquilo que é pedido. A começar o meu internato, era preciso saber se iria conseguir cumprir as exigências que já se apresentavam em três desígnios: internato, docência e consultoria científica.
A grande tentação é perguntar-lhe já de seguida sobre a decisão de se candidatar formalmente ao cargo que tem agora, Diretor do Gabinete de Qualidade...
Válter Fonseca: Imagine a reflexão que não foi. (ri pela primeira vez descontraído).
Mas deixe-me voltar atrás no seu tempo, talvez para percebermos melhor quem é, para perceber o peso da responsabilidade que assume hoje. Quer explicar-me por que razão diz que foram os 6 anos de Faculdade que lhe toldaram o espírito e o tornaram quem é hoje?
Válter Fonseca: A maturidade está sempre subjacente. Eu já era uma pessoa convicta, mas tornei-me ainda mais. Se na adolescência nos preocupa aquilo que podem pensar de nós, já o oposto é conseguido ao longo da Faculdade. Por ser muito focado, era talvez mais solitário durante o liceu, mas na Faculdade consegui ganhar alguma vida social e colmatar alguns destes aspetos. Foi também nesta altura que conheci a Catarina, a minha mulher. Lembro-me do Dr. Vítor Augusto que me inspirou a querer ser um dia como ele. Estava no 3º ano. Nas aulas perguntava-nos pelas possíveis causas de coma de um doente. Nós sabíamos dizer, às claras, 2 ou 3. Mas ele a seguir apresentava mais 20 alternativas. Eu ficava a ouvi-lo e pensava, “um dia quero ser assim”. Sabe que falo desta situação, porque ela explica a minha forma de ser, eu não gosto de saber algo sem questionar o porquê de tudo. Na Faculdade consegui colocar essas perguntas de muitas formas, “mas é assim porquê?”, “por que razão não podemos seguir um caminho?”. Esta é a vantagem da Medicina Interna, lidamos muito com o raciocínio, porque não há nenhuma resposta clara, por vezes nem descrição de sintomas. Somos um pouco os detetives do doente.
Também no 3º ano conheço o Prof. Afonso Fernandes que nos dava Anatomia Patológica e Mecanismos da Doença, foi o último ano que deu aulas. Esta última disciplina (Mecanismos da Doença) marcou-me muito, porque mostrava o porquê de vermos algo a acontecer. Uns tempos depois uma colega minha de curso dizia-me que parecia que os doentes que eu mais gostava de acompanhar eram os que estavam a morrer.
Queria ser o médico de primeira linha para tentar reverter o quadro dos doentes da última linha?
Válter Fonseca: Certo. Tinha um especial apreço pelos doentes do Serviço de Urgência, Cuidados Intensivos, ou Medicina Interna, pois eram aqueles que estavam pior. Era com estas pessoas que eu sentia que podia ter um papel mais significativo.
E como se lida com a frustração quando não se consegue ajudar alguém?
Válter Fonseca: Foi uma aprendizagem, levou algum tempo. O confronto com a frustração aumenta ao longo da vida.
Aumenta?
Válter Fonseca: Eu acho. Penso que em boa parte diz respeito ao percurso profissional. A frustração aumenta por percebermos que somos cada vez mais pequeninos e o mundo cada vez maior. Tornamo-nos maiores fisicamente, mas menores em termos de força perante o mundo. Percebemos quão inalcançável pode ser um sistema e se pensarmos na forma como o mundo funciona, nós somos de facto muito pouco. O mundo tem milhares de anos de construção. Isso lembra-me alguns livros de Kafka sobre o absurdo de enfrentar algo que não se consegue controlar. Quer da pessoa que é apanhada pelo sistema, quer como acontece no livro “O Castelo”, quando a pessoa quer alcançar o sistema e não consegue. Talvez as minhas funções atuais também me mostrem que estamos a viver cada vez mais num mundo assim.
Estes momentos de pandemia podem remeter-nos para um mundo descrito por Kafka?
Válter Fonseca: (Fica em silêncio muito tempo) Não sei, não sei na verdade… Penso que a “originalidade” deste momento não estava na mente de Kafka. O sistema é como é, e talvez se note mais agora como ele funciona porque não está a funcionar na sua rotina. Mas o facto é que nada é previsível. O sistema, tal como o vivemos, aguenta e tem coisas muito boas, porque é resiliente, mas também tem coisas más, porque para sermos resilientes, temos de ser muito inertes. E tudo isto que aqui falamos, é muito complexo per si, mas também muito complexo de se explicar… (suspira). E agora pergunto-lho, mesmo que Kafka tivesse conseguido explicar esta complexidade, quantas pessoas o teriam lido?
Acho que poucas…
Válter Fonseca: Poucas sim, e por isso temos de comunicar em massa. Lembro-me da Gripe Pandémica em 2009 e da turbulência no SNS e de algum medo, mas não assistimos ao mesmo impacto dos tempos de hoje. Tenho aprendido com algumas pessoas que ”uma pandemia, ou uma emergência de saúde pública, de âmbito internacional, é uma crise sanitária, mas é muito mais uma crise social”. Mas eu acrescentaria que, no século XXI, é ainda mais uma crise comunicacional. Esta nova dimensão da comunicação pode ser muito prejudicial. Passar as mensagens certas, fazermo-nos entender é difícil, sobretudo quando a velocidade da informação é estonteante.
A comunicação pode ser então a arma perigosa.
Válter Fonseca: Pode ser perigosa sim.
E porquê? Porque se fala demasiado do mesmo tema, a pandemia? Ou é como se fala dele?
Válter Fonseca: O problema não é o número de vezes que o assunto é falado, depende mais como é que o assunto é falado e como é que se dirigem os espaços comunicacionais. Importa perceber quem são as pessoas chamadas a falar. Penso que todas as pessoas devem dar opiniões e ter oportunidade de falar, mas este modelo participativo parte da esfera em que a nossa opinião, e sobretudo a nossa esfera de expertise, seja respeitada. Esta mistura excessiva de espaços e de esferas de influência em áreas que não são as nossas, pode não ser benéfica.
Mas não é essa relação entre a sabedoria e a curiosidade feroz que traz magia para quem ensina? Porque também assume esse papel, o de Professor.
Válter Fonseca: Uma das condições que coloquei antes de aceitar este cargo, foi a possibilidade de continuar a lecionar, e se houvesse algum constrangimento legal, eu talvez não tivesse aceite. Porque a ligação à Academia é a ligação ao mundo de liberdade intelectual, a um mundo livre e de conhecimento e crescimento constante. Poder contribuir para aquilo que são os nossos estudantes e o futuro deles, acho que é de uma riqueza… Esta questão de aprender ou ensinar e de ser confrontado é uma prova de humildade. Há uns tempos estive num congresso e deparei-me com alguns daqueles nomes que admiro profundamente, pessoas de uma inteligência e eloquência, imensas. E estas pessoas não só não se importam de ser questionadas pelas outras que os ouvem, como gostam de ouvir e dizem que dessas perguntas nascem grandes oportunidades de solução.
Vamos dar novo salto no tempo e avançamos até ao momento em que é formalmente nomeado, após concurso público, para Diretor do Departamento da Qualidade na Saúde da DGS. Num dos momentos em que a Saúde sofre um dos seus grandes abalos na História, é quando vem, precisamente, ocupar um cargo logo no Departamento da Qualidade … Como é que tem sido gerir este papel?
Válter Fonseca: (Fica em silêncio) A verdade é que tem sido difícil, eu assumi a Direção num momento particularmente difícil para a Saúde. E ser difícil não significa que não se possa fazer, mas significa que é difícil. Deve fazer-se, porque as pessoas que estão aqui são pessoas e fazem um esforço enorme para tomar decisões, não para si, mas para os outros. Mas será que para o caminho correr bem, então não pode ser difícil? Tenho no meu gabinete um pequeno quadro que diz “difficult roads often leads to beautiful destinations”. E é mesmo assim, há de facto um caminho porque o que estamos a viver é inédito, o mundo inteiro está confrontado com uma situação que não controla. Há um organismo com uma dinâmica própria e uma fisiopatologia clara e com uma história natural da doença que está a acontecer em direto. Do ponto de vista médico é um enorme desafio. Para os epidemiologistas é o maior estudo que há memória e estão a fazê-lo em direto. Tudo isto tem um enorme impacto de incerteza. Depois uma emergência de saúde pública começa por ser uma crise sanitária, onde os profissionais de saúde têm um enorme papel na sua gestão. A questão é que estes profissionais de saúde baseiam-se no seguinte: há um problema, e a resposta imediata é a pesquisa da literatura para dar resposta à situação. Ora neste caso, a pesquisa da literatura, quando tudo começou, era zero. Então este passo fundamental para o suporte da evidência nem sequer existe., agora existe mais um pouco, mas as evidências são muito poucas. Por isso veja, estamos com instrumentos de decisão que não se socorrem dos habituais alicerces na decisão clínica.
Como é que decide com base no incerto?
Válter Fonseca: É essa a questão. Decide-se com base no risco. Temos de arriscar nas decisões que não são sempre as mais certas. A decisão faz-se na assunção do risco da decisão. Tenta-se, ainda assim, adaptar a decisão com rapidez e muita flexibilidade e depois temos que ser muito transparentes. Temos que assumir que, de facto, há incerteza.
A questão é que a transparência apresenta sempre alguma vulnerabilidade inevitável. Mas a opinião pública é severa para confiar na incerteza. Nunca se perdoa a vulnerabilidade para a entidade máxima que gere a Saúde. Como se equilibram estas forças?
Válter Fonseca: É um equilíbrio delicado. Tenho ouvido expressões muito interessantes nestes meses e que ilustram bem estes tempos. Uma delas diz que “o que estamos a viver é uma enorme experiência sociológica”. Sabe que esta ideia remete-me aos tempos de escoteiro e àquelas situações em que tínhamos de seguir mapas e planos, cujo desfecho não se previa. Em algumas situações, destas atividades de orientação, era eu quem guiava o grupo. Havendo dois caminhos, havia que tomar uma decisão, mas a incerteza era enorme. Então como se pode ter a equipa connosco se temos apenas a incerteza? Primeiro, aquela equipa tem que reconhecer que o líder é intrinsecamente capaz, mesmo que decida mal, tem que tomar nova decisão rápida. Depois, há que ter presente que “uma não decisão é sempre pior que uma má decisão”. Nas decisões de incerteza há que transmitir confiança e isso passa-se a explicar os passos do caminho da decisão. Podemos acertar e aí estamos bem, mas se falharmos temos de nos monitorizar e, ao mínimo sinal, atuar.
Errou na escolha do caminho nesses mapas indefinidos?
Válter Fonseca: Enquanto escoteiro, uma vez. O líder tem sempre que reconhecer quando falha. Mas depois tem de apresentar alternativas e, muitas vezes, para convencer os outros tem de ceder, saber “negociar”. A negociação é um aspeto curioso, sempre a achei estranha, como se fosse uma “compra”. Mas não é só, tem muito de diplomacia. No passado ano fiz uma formação em gestão da Saúde e tive aulas de negociação e aí a minha ideia mudou. Motivar é negociar, nós é que não lhe atribuímos esse nome.
(Entra na sala a secretária de Válter Fonseca que lhe entrega um post it pequeno onde está escrito um recado longo. Lê-o subtilmente sem deixar de falar e sem perder o raciocínio e segue o seu discurso).
O que é que vamos poder contar de si daqui a sensivelmente 2 anos? (altura em que termina o mandato atual)
Válter Fonseca: Sabe que quando entrei fiz uma reunião com o Departamento, para ouvir toda a equipa e que tem toda mais anos de vida do que eu. Este grupo tem-me ensinado imenso sobre a Administração e a gestão de pessoas. Mas veja, eu sou médico, nunca deixo de o ser e nós temos uma experiência profissional muito dura e que nos acontece cedo na vida, com confrontação do stress, o contacto precoce a muito informação, assim como a ligação ao outro que vive, por vezes, o drama, a morte, ou a dor. Mas ao mesmo tempo vive-se relativamente controlado, do ponto de vista profissional, porque estamos ou no hospital, no centro de saúde, onde o contacto com as realidades e as pessoas está um pouco mais controlado. Quando saímos deste ambiente faltam-nos elementos. Ainda assim continuo a achar que é uma mais-valia enquanto pessoa e continuo a achar que enquanto eu e todos os outros me considerarem útil, enquanto a minha opinião puder ser considerada e as minhas ideias discutidas, eu estou confortável. Quando acabar, acabou. Daqui a dois anos não lhe sei dizer o que vai ser de mim. Sabe porquê? Porque todo o meu planeamento quando entrei aqui, caiu. Porque entrei em janeiro e em março chegava a pandemia. Tudo o que tinha planeado caiu. Simplesmente caiu. Mas vou, certamente, ser uma pessoa que terá passado por aqui com uma experiência forte e que viveu uma realidade muito pouco habitual. Isso traz-me um enriquecimento pessoal e profissional enorme e que noutras circunstâncias de rotina demoraria muito mais a adquirir. Note que a Direção Geral de Saúde, também ela própria de repente teve de se adaptar a realidades que não eram o seu core business, o desporto, a educação, são exemplos disso. Isso exigiu uma grande capacidade de flexibilidade e de aprendizagem constante.
Tem saudades do Laboratório e da Clínica?
Válter Fonseca: Tenho saudades dos desafios de diagnósticos, saudades de alguns momentos de humanidade e de grande contacto com as pessoas. Tenho saudades de ver o doente no dia seguinte e perguntar se se sente melhor e ouvir que “sim, obrigado”, que se traduz no feedback imediato mais no âmbito emocional. Já dos bancos e das saídas dos bancos não sinto tanta falta. (ri). Do Laboratório sinto, sobretudo, falta de podermos dizer, pensar e ter completa liberdade intelectual.
Na DGS tem mais condicionantes a essa liberdade?
Válter Fonseca: Temos de medir bem o alcance que as nossas palavras podem ter. Aqui, aquilo que dizemos pode ganhar uma proporção tão distante que nós nem temos a capacidade de medir o seu alcance. Esta questão obriga-nos a sermos mais reflexivos. Agora, este cuidado com o que é dito não nos pode tornar frios, ou causar a perda de emissão de opinião, senão também não exercemos bem o cargo. Para mobilizarmos as pessoas precisamos de colocar emoção nas coisas que fazemos e de dizer a verdade. Atenção que esta pandemia pode ser um alerta para a humanidade, é importante dar espaço à Ciência e não a ofuscar, à espera que ela dê resposta a tudo. A Ciência é, sem dúvida, o caminho basilar, mas precisa de espaço, não pode ofuscar todas as outras áreas.
Neste grupo vasto de escoteiros que somos nós todos, que mensagem nos quer dar sobre o melhor caminho a seguir num mapa não mapeado?
Válter Fonseca: (pensa algum tempo com cuidado) Vamos seguir sempre um caminho pautado pela evidência científica e aquilo que ela nos traz; mas equilibrado entre todos os setores da sociedade. Mesmo para mim, que tenho formação científica, este é um momento de grande prova de humildade para a Ciência. A Ciência não é o último reduto da Humanidade. Ela dá muitas respostas e ajudou na evolução da Humanidade, nos séculos passados, mas não dá todas as respostas. Isso pode tornar-nos novamente um pouco mais humanos.
Falou-me bastante das 4 mulheres da sua família e das referências dos mais velhos para si. Uma das suas mulheres é ainda muito pequenina, a Carolina, a sua filha de 3 anos. Daqui por muitos anos, quando a Carolina falar do pai, o que gostaria que ela retirasse como referência?
Válter Fonseca: (Emociona-se. Tenta começar a responder, mas precisa de ganhar tempo para se recompor) Aquilo que eu mais quero é que a Carolina seja uma grande mulher, de grandes convicções. Que perceba o Mundo na sua grande complexidade e que entenda que nestes tempos houve um chamamento e uma missão que o pai teve que seguir, isso teve e tem algumas consequências no tempo que lhe consigo dedicar. A coisa que menos quero é que, por isso, haja qualquer prejuízo na sua educação destes tempos tão adversos. Mas sei que conto com uma grande mulher, a minha mulher e mãe da minha filha, a Catarina, que me tem permitido que eu faça o que estou a fazer na DGS.
Com natural franqueza diz-me que, para se aproximar do leque dos mais experientes que o rodeiam, lê muito, cada vez mais. Assim tenta acompanhar-lhes a maturidade que só a idade traz. Não quer falhar nos recetores que tem diante de si, porque sabe que só se ler e estudar intensamente, consegue rever os tempos que nunca viveu. Apaixonado pela História do Mundo é igualmente apaixonado pela literatura. Os romances que eram a sua primeira grande escolha intercalam-se agora em leituras muito mais variadas. No muito que leu, refere com instintiva admiração João Lobo Antunes, mas adverte que só sabe passar a sua ideia, jamais ter a eloquência que este tinha.
No limbo entre a missão de acrescentar algo maior ao seu país, e a temporária ausência física da Carolina, Válter Fonseca é uma promessa do seu próprio tempo. Jovem, atualizado e de responsabilidade pública e institucional, encara a pandemia não como castigo, mas aprendizagem. Homem da Medicina e da Ciência espera, contudo, que elas não esqueçam o que de melhor a Humanidade tem, que é ter-se a ela própria.
"Não sei o que nos espera, mas sei o que me preocupa: é que a medicina, empolgada pela ciência, seduzida pela tecnologia e atordoada pela burocracia, apague a sua face humana e ignore a individualidade única de cada pessoa que sofre, pois embora se inventem cada vez mais modos de tratar, não se descobriu ainda a forma de aliviar o sofrimento sem empatia ou compaixão.”
João Lobo Antunes - Obra Ouvir com outros olhos (Gradiva) – 2015
Joana Sousa
Equipa Editorial