Numa entrevista em que a pandemia foi tema incontornável, e com o mote do Mês Mundial da Doença de Alzheimer, que se assinala em setembro, lançamos o debate sobre as doenças neurodegenerativas, em particular a doença de Alzheimer, e o compromisso da investigação científica em dar uma resposta eficaz no controle da progressão de uma doença que afeta cada vez mais pessoas em todo o mundo, conforme explicou o Professor Joaquim Ferreira. “Todos os dados epidemiológicos sugerem que o número de doentes com doença de Alzheimer e outras doenças neurodegenerativas está a aumentar, quanto mais não seja pela mudança da estrutura demográfica populacional em todo o mundo, porque há cada vez mais pessoas com idades mais avançadas. Mas pensa-se, também, que possa haver outros fatores, digamos epidemiológicos, que levam a um aumento do numero de doentes com doença de Alzheimer.”
Falamos de doenças “particularmente frágeis” e, em contexto pandémico, importa comentar que “muitos dos doentes com este tipo de patologia sofreram, e houve um agravamento dos quadros clínicos durante o período de confinamento, por razões que estão relacionadas com a alteração das rotinas e suspensão de algumas atividades terapêuticas que decorriam com alguma regularidade”. Para além disso, afirmou o Professor, vivem-se momentos de grande expectativa e angústia do ponto de vista científico, “porque muitos dos medicamentos que estavam a ser desenvolvidos para o tratamento da doença de Alzheimer, tiveram resultados negativos, o que é frustrante, nomeadamente quando resultam de projetos de investigação de grande duração e, portanto, corremos o risco de que a investigação que decorre há 10, 20 anos possa não trazer os resultados que todos esperaríamos”.
Em contrapartida, “há um medicamento que neste momento está numa fase avançada de avaliação por parte da FDA, agência norte americana do medicamento, e se for confirmada uma avaliação positiva poderemos, pela primeira vez, ter um medicamento aprovado especificamente para tentar atrasar a progressão da doença”. Uma boa notícia com implicações positivas sobre a investigação entre as doenças neurodegenerativas, “porque a doença de Alzheimer, de facto, é a doença mais prevalente entre as doenças neurodegenerativas e, portanto, tem uma implicação que vai para além daquilo que é esta doença por si só, e aquilo que aprendermos, ou ganharmos em termos de conhecimento nesta área, seguramente tem implicações para os programas de desenvolvimento de medicamentos em muitas outras”, comentou, salientando também que a doença de Alzheimer afeta a generalidade da população. “Eu diria que não há família em que, ou pela doença de Alzheimer por si só, ou pelas demências, porque o termo demência, no fundo, é uma perda de faculdades cognitivas, engloba a doença de Alzheimer, mas também engloba muitas outras situações clínicas e, portanto, não há nenhuma família hoje em dia que não tenha membros afetados com quadros demenciais, pelo que é extremamente importante falarmos da doença, porque ela afeta o doente e afeta quem está ao lado, sejam familiares, sejam cuidadores”.
Quando questionado sobre a gestão das visitas aos lares, restringidas em tempo de pandemia, privando muitos idosos com doença mental do contacto com os seus familiares, Joaquim Ferreira entende que “é justo discutirmos essas questões, mas é muito difícil tomar decisões”, fundamentando a sua posição na incerteza que imperou durante os últimos meses. “Acho que hoje temos menos incerteza do que tínhamos há quatro ou cinco meses, mas de facto a incerteza imperou e reconhecer a incerteza é digno. Eu diria que ao longo destes meses ouvi muitos comentários muito seguros, mas de grande ignorância, porque não incorporam a incerteza em relação a muitos dos temas que estamos a discutir, e isto aplica-se a tudo, também à forma como devemos proceder em relação a este grupo da nossa população”.
O trabalho de investigação desenvolvido ao longo dos últimos anos permitiu concluir que “há uma grande ligação entre o nosso estado cognitivo, intelectual e físico, portanto, quando os doentes se começam a deteriorar, quando começa a haver um declínio cognitivo, há também um declínio de algumas funções motoras”, explica o Professor, revelando que a ligação entre a cognição e a parte motora é uma realidade “quer do ponto de vista da evolução da doença, quer do ponto de vista do tratamento”. “Nós hoje sabemos que, se fizermos atividade física melhoramos a parte física, mas também melhoramos a parte cognitiva, e se fizermos treino cognitivo, melhoramos a cognição mas também melhoramos a parte física, portanto, claramente há uma enorme ligação entre cognição e estado de saúde digamos global e motor, obviamente transpondo isto para tempos de pandemia temos aqui um paradoxo que é, os doentes deixaram de ser estimulados do ponto de vista físico e cognitivo, deixaram de sair, deixaram de fazer fisioterapia, deixaram de andar, portanto, do ponto de visto do estímulo motor ficaram pior, e nós sabemos que isso agrava a parte motora e agrava a parte cognitiva”.
Perante uma pandemia, as recomendações médicas para estes doentes vêem-se forçosamente interrompidas, colocando todos diante de um dilema, considerado por muitos maior que a própria pandemia. “Do ponto de vista cognitivo, aquilo que nós recomendamos é que haja um estímulo, que haja uma variação de situações em que as pessoas são expostas, portanto, se as pessoas deixaram de conviver com os outros doentes, deixaram de conviver com os profissionais de saúde, deixaram de conviver com os familiares, deixaram de ir aos centros de dia, deixaram de fazer jogos, há aqui uma confluência de fatores que, seguramente, é negativa em todos os aspetos, quer físico quer intelectual”, atenta, realçando “que a pandemia é um teste extremo àquilo que a Ciência nos tem dito nos últimos anos, que é esta confluência entre estado de saúde cognitivo e físico, que as duas coisas estão interligadas, e portanto, nós de alguma forma já antecipávamos este potencial agravamento”.
Na qualidade de médico neurologista que acompanha muitos doentes nessas circunstâncias, Joaquim Ferreira testemunha o agravamento do quadro clínico de um número substancial de doentes. “É um desafio que agora temos pela frente é o de saber se conseguimos, no fundo, fazer coisas para que eles voltem, pelo menos, ao estadio anterior”.
Quanto às visitas nos lares, “não há soluções mágicas, nem há certezas, nós nem sequer sabemos muito bem ainda como é que este vírus se propaga e, portanto, eu consigo saber exatamente o que aconteceu em muitos dos cenários em que houve propagação da doença em contexto de lares ou de outro tipo de instituições? Não! Sabemos que o vírus tem uma elevada contagiosidade e, portanto, é difícil tomar decisões de facilitação quando ainda não se sabe muito bem quais é que são as consequências, e reconhecer essa dificuldade eu acho que é um ato de nobreza”, defende Joaquim Ferreira, admitindo o desconforto que suscitam as “críticas gratuitas a quem gere muitas destas instituições”. “Porque eu até assumo que, em muitas dessas situações, aparentemente tudo foi feito de acordo com as regras recomendadas e mesmo assim foi impossível evitar a ocorrência de mortes. Porque estamos a falar de mortes, não estamos a falar das pessoas terem um problema clínico que têm que fazer um antibiótico e ficam bem, portanto, é muito difícil, não há decisões ideais e reconhecer essa incerteza eu acho que é uma boa prática.” Não obstante as restrições impostas pela pandemia, e reconhecendo que “nada substitui o toque físico”, o Professor considera a possibilidade de engendrarmos “soluções mais ou menos imaginativas que minimizem as consequências”, nomeadamente a ocorrência de visitas “com barreiras físicas e um contacto facilitado, usando as tecnologias que temos ao nosso dispor”.
Todavia, “o elemento de maior crueldade é o fator tempo”, elucida-nos Joaquim Ferreira. “Como é que nós podemos pedir a alguém para, durante um período de tempo que nós não sabemos muito bem qual é, não tenha um conjunto de atividades de relacionamento com a família, quando o período que estamos a pedir para isso não acontecer é quase equivalente ao período de sobrevida dessas pessoas?!”. Quando estamos diante de uma pessoa com mais de 80 anos, que sofre de uma doença neurodegenerativa, a verdade é que “não há tempo para adiar muita coisa”, conforme alertou o Professor. “Nós estamos a pedir para que se adie um conjunto de atividades de contacto físico e de relacionamento familiar quando, na prática, aquelas pessoas não têm muito tempo para se dar a esse luxo, não é?!”. Situações para as quais não existem soluções fáceis e que Joaquim Ferreira acompanha de perto, não só do ponto de vista académico, mas também clínico. “Eu sigo doentes com essas patologias e tenho responsabilidade sobre o cuidado desses doentes e, portanto, posso partilhar que não é fácil tomar decisões que incorporem todas essas variáveis que são mais do que legítimas, e muitas delas cruéis”.
Que a atual pandemia “vai mudar a vida de todos durante um período, ninguém tem dúvidas”, mas será que a mudança será tão profunda e disruptiva ao ponto de se tornar um marco na nossa História? Joaquim Ferreira entende que também essa é uma questão, cuja resposta é discutível, uma vez que “a memória humana aos comportamentos é muito curta”. “Que neste momento mudou brutalmente as nossas rotinas, sim; que vai mudar a nossa forma de nos relacionarmos, de viajarmos, de fazermos reuniões, de interagirmos, sim. Durante quanto tempo é que essa mudança vai durar?! Não sei… E acho que ninguém de boa fé consegue responder a isso com toda a certeza. O que nós temos visto noutros eventos marcantes da nossa História é que a memória para o impacto desses eventos é, tendencialmente, curta.”
A reflexão levou à conclusão de que a mudança com a qual fomos todos confrontados prende-se, nas palavras do Professor, com “as crises económicas que vivemos recentemente, ou seja, há uma crise económica e isso tem um enorme impacto sobre cada um, individualmente, e sobre as famílias e as instituições, mas pouco tempo depois estão-se a cometer exatamente os mesmos atos e os mesmos procedimentos e, eventualmente, os mesmos erros que levaram a essas situações, portanto, eu diria que mesmo em situações de grande impacto sociológico, ao fim de algum tempo, há um retomar de procedimentos, de atos e comportamentos que acharíamos que não voltariam tão cedo”, conclui.
Sofia Tavares
Equipa Editorial