Os dois lados desta batalha: Médica e Paciente
Uma paciente oncológica. Uma médica de oncologia. Aqui espelhamos as versões de dois papéis distintos, de duas perspetivas únicas em relação a uma mesma situação: a doença oncológica. E, que nos últimos meses estão a viver e a presenciar uma realidade ainda mais dura, ainda mais desgastante, no Departamento de Oncologia do CHULN – Hospital de Santa Maria.
Com o surgimento desta pandemia sabemos que muitas consultas foram adiadas, muitas cirurgias desmarcadas, muitos tratamentos preteridos. E nesta área, onde o tempo tem um papel vital, onde a espera de um resultado pode fazer a diferença, sente-se uma ansiedade mais palpável e dolorosa.
E é pungente que, proferido pelos que lá estão todos os dias, um dos aspetos de que sentem mais falta, seja o conforto do toque, a proximidade física, o abraço, ou dito de outra forma, tudo aquilo que nos torna únicos e humanos: a nossa capacidade de, com o contacto físico, tornar nossas, as dores e as esperanças dos outros.
Paciente do Departamento de Oncologia do CHULN – Santa Maria
(por respeito à vontade pessoal da paciente, que quis manter o anonimato, a identidade da mesma não será revelada)
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Conte-nos um pouco sobre si, a sua situação, e em que momento começou a realizar tratamentos no Hospital de Santa Maria.
Fui diagnosticada com um carcinoma de mama em novembro e comecei os tratamentos no dia 26 de dezembro.
O que sentiu quando surgiu a pandemia? Que receios teve?
Tive medo, claro. Além de ser velha, tenho uma doença grave e sou imunodeprimida. Ou seja: se o bicho me apanha... já fui!
3. Como passou a ser a sua rotina e que diferenças sentiu aquando das suas visitas ao hospital nos primeiros tempos de pandemia?
Foi difícil porque deixei de poder ir acompanhada aos tratamentos e porque senti, por vezes, um clima de quase terror quando passava um doente Covid numa maca e os seguranças nos mandavam encostar às paredes ou avançar depressa, e os maqueiros passavam a alta velocidade, dando um ar de risco de infeção que assustava. O pior foi quando fui internada, com uma pneumonite (reação à quimioterapia) e fiquei 11 dias sem visitas. Foi muito duro.
Como sentiu os vários profissionais de saúde na forma como atuaram?
Só tenho coisas boas a dizer dos profissionais de saúde. Muito competentes, muito trabalhadores e cheios de cuidados de segurança. Por vezes, lá um ou outro não tão simpático, mas é normal. Há de tudo, em todas as profissões.
Sente que houve mudanças na relação médico-paciente? De que género?
Não creio. Além das óbvias e necessárias para que a segurança de todos não esteja em risco, creio que tudo se manteve.
Sente que pode ter existido alguma mudança, agravamento, na saúde das pessoas devido à pandemia?
Acho que pode ter havido muita gente que evitou ir ao hospital com medo de apanhar Covid-19, agravando a sua condição. Talvez antes fossem a correr e agora só vão mesmo em último caso (o pior é quando vão já tarde demais).
Nestes meses que temos vivido guarda algumas boas recordações ou exemplos de coragem?
Há sempre coisas boas nas coisas más: vizinhos que traziam bolos, telefonemas para saber como estava, uma união que ajuda a fazer a força.
E no momento presente como lhe parece a situação?
Acho que existem muitas dúvidas. Parece que ninguém sabe muito bem com o que está a lidar e há informações contraditórias. Há medo, por algum lado, há quem já o tenha perdido, por outro, e ninguém sabe muito bem como agir. Mesmo da DGS e da OMS sinto que não há uma linha, há uns solavancos meio desconexos, de quem está às apalpadelas. No hospital, mantêm-se todos os cuidados e acabo por me sentir segura.
Gostaríamos, caso queira, que deixasse um último comentário sobre como têm sido estes tempos e desafios que tem sentido, especialmente no momento tão delicado que vive.
Acho que me calhou a fava numa altura particularmente difícil. Em que o risco é duplicado. Ter cancro já era mau que chegasse, ter cancro em plena pandemia é azar redobrado. Mas é preciso manter a sanidade e acreditar que vai correr bem. E viver. Não creio que barricar-me em casa durante anos (sim, porque isto pode durar anos) seja uma vida. Por isso, e com todos os cuidados, tento regressar à vida.
Dra. Rita Paiva
(Médica no Departamento de Oncologia do CHULN – Hospital de Santa Maria)
Conte-nos um pouco sobre si, o seu percurso académico e profissional e como tem sido o seu trabalho aqui no Hospital de Santa Maria.
Rita Paiva: Entrei na Faculdade de Medicina de Lisboa em 2007 e terminei o Mestrado Integrado em Medicina em 2013. Trabalhei o primeiro ano como interna do ano comum no Hospital de Vila Franca de Xira e entrei depois na especialidade de Oncologia Médica, no Hospital de Santa Maria, em janeiro de 2015. Estou neste momento a terminar a especialidade.
Sei que na fase em que se declara que estamos diante de uma pandemia, se encontrava no Reino Unido. Como viveu esses momentos?
Rita Paiva: Quando foi declarado que estávamos perante uma pandemia, estava em Manchester a fazer um estágio de Cancro do Pulmão. Foi uma situação complicada, já se sentia algum estado de alerta no Reino Unido, mas, no geral, as pessoas estavam muito relaxadas, nem no hospital era aconselhado usar máscara, o que, com o passar dos dias, me foi deixando cada vez mais desconfortável e receosa. Ia acompanhando as notícias do que se estava a passar em Portugal e comecei a ponderar regressar quando se falou na probabilidade de declaração do estado de emergência, o que foi uma decisão difícil porque significava que ia perder o estágio, prejudicando o meu percurso profissional. No entanto, optei por voltar, não só porque havia a possibilidade de fecharem as fronteiras e não conseguir regressar, mas também porque seria mais útil como médica no meu país. Foram momentos de grande ansiedade e incerteza e viajar nessa altura foi, sem dúvida, um dos momentos mais desconfortáveis que vivi na pandemia.
Que diferenças notou no seu serviço em Santa Maria e no comportamento das pessoas?
Rita Paiva: No meu serviço foram implementadas várias medidas para minimizar o contacto entre as pessoas e foi estabelecido um plano de contingência. A atividade assistencial nunca parou para os doentes em tratamento. As consultas de vigilância foram feitas por via telefónica. Apesar de todas as mudanças e adaptação a uma nova forma de estar (como o uso obrigatório de máscara, farda do hospital e a desinfeção das mãos ainda mais frequente do que o habitual) que geraram bastante ansiedade, quero destacar um ponto positivo que foi o espírito de equipa. Sinto que a pandemia serviu para reforçar os laços entre as pessoas do serviço e melhorar a cooperação entre todos para que tudo corresse o melhor possível, e passámos a funcionar mais como uma equipa do que anteriormente.
Sente que houve mudanças na relação médico-paciente? De que género?
Rita Paiva: Não sinto que tenha havido grandes mudanças. A única grande alteração foi o toque. Deixámos de cumprimentar os doentes, o que ao início foi um hábito difícil de deixar, mas acima de tudo a falta do toque do conforto foi o que mais custou. Não poder confortar os doentes quando não estão bem, com um simples toque na mão ou até um abraço, acho que faz muita diferença na nossa relação como seres humanos e torna tudo mais impessoal. Especialmente na especialidade de Oncologia, acho que faz ainda mais diferença.
E em que medida a pandemia poderá ter agravado algumas questões de saúde na área da Oncologia?
Rita Paiva: No nosso serviço não houve qualquer alteração em termos de resposta aos doentes que nos eram referenciados, nem foram adiados tratamentos pela pandemia. No entanto, pode ter havido uma diminuição no número de diagnósticos, que penso terem ocorrido por dois motivos, primeiro porque havia algum receio dos doentes em recorrerem aos serviços de saúde, atrasando a investigação de sintomas sugestivos de neoplasias, e também pela suspensão da maioria das atividades dos cuidados de saúde primários, responsáveis por grande parte dos diagnósticos e também da diminuição na execução de exames de diagnóstico.
Onde sente que teve de se adaptar a nível do seu trabalho? E a nível pessoal?
Rita Paiva: A nível do trabalho, a maioria das adaptações foram as já referidas anteriormente, alteração dos circuitos de pessoas, especialmente em relação ao restante hospital, a utilização de máscara e o aumento de medidas burocráticas nos pedidos de teste de rastreio à COVID-19, análises e outros exames, que nos fazem perder muito tempo útil de consulta. A nível pessoal foi uma adaptação difícil durante o estado de emergência porque acabei por ficar isolada da minha família, namorado e amigos, com os quais não tive contacto presencial durante dois meses.
Que ensinamentos sente que teve? Que aprendizagens positivas e negativas?
Rita Paiva: Sinto que aprendi a dar mais valor às coisas que tomamos por garantidas, como o toque de que já falei, e os abraços às pessoas de quem gostamos e principalmente a liberdade de podermos movimentar-nos sem restrições, de podermos simplesmente estar numa esplanada com amigos, sem termos receio. Acho que passei a dar mais valor às pequenas coisas da vida que nunca damos por elas, porque achamos que são adquiridas. Não acho que tenha tido aprendizagens negativas, mesmo as coisas mais negativas que foram acontecendo foram importantes para o meu crescimento como médica e pessoa.
E agora, depois de alguns meses de pandemia, que balanço faz?
Rita Paiva: A nível pessoal acho que apesar de tudo o balanço é positivo, porque todas estas mudanças contribuíram para um crescimento. No entanto, preocupa-me um bocadinho a situação do país, o que acaba por me gerar alguma ansiedade. Sinto que há uma grande desinformação e que as pessoas estão demasiado relaxadas, e que a maioria não aprendeu muito com o confinamento. Isso entristece-me e preocupa-me. A nível global, o balanço não é positivo, estamos a atravessar o pior período da pandemia em Portugal e penso que não estão a ser tomadas as medidas adequadas.
Sónia Teixeira
Equipa Editorial
