Numa altura em que se lança o debate sobre a forma como o Homem ameaça a própria sobrevivência ao desrespeitar a Natureza, e numa estreita ligação ao aparecimento de infeções virais de que é exemplo a atual pandemia, como consequência da crescente desflorestação, quisemos aprofundar esta problemática que coloca Portugal entre os países da União Europeia com "desflorestação abrupta" desde 2015.
Afinal de contas, qual o impacto desta realidade na Saúde do Homem e do Ambiente? Ricardo R. Santos, Biólogo e investigador no Laboratório de Comportamentos de Saúde Ambiental do Instituto de Saúde Ambiental e no Centro de Bioética, ambos pertencentes à Faculdade de Medicina da Universidade de Lisboa, apresenta-nos um ensaio pertinente e essencial para a compreensão da realidade em que nos imiscuíamos, convidando ao conhecimento e à reflexão sobre o lugar do Homem e o lugar dos vírus na Natureza, essa “casa” que é de todos e para todos.
À espera de Godot (1952), de Samuel Beckett, é uma tragicomédia em dois actos. Quem a conhece, lembrar-se-á bem da didascália do primeiro acto, que é, ao fim e ao cabo, também a do segundo: «Uma estrada no campo. Uma árvore. Anoitecer.» Eis, pois, o cenário onde toda a peça se irá desenrolar. O espaço («uma estrada no campo») e o tempo(«anoitecer») são elementos visualmente percebidos pela via cénica. Quanto ao porquê («à espera de Godot»), serão as personagens a esclarecê-lo pela via dialógica. Mas, o que faz ali uma árvore? Vladimir informa. Godot advertiu-os que tinham de esperar «ao pé da árvore». A árvore surge-nos, então, como um ponto de referência, quer dizer, como um segundo elemento espaciotemporal que, subtilmente,confere à peça a sua dimensão trágico-cómica. É que, no segundo acto, a estrada é a mesma, o anoitecer é o mesmo, mas a árvore, apesar de ser a mesma, já não é bem a mesma. Outrora de ramos nus, surge neste acto coberta de folhas. Ainda que condenada à imobilidade, devido ao seu necessário enraizamento, e à sua magnânima verticalidade, tem como pano de fundo uma estrada que simboliza a mobilidade e a horizontalidade. O sentido, aqui, é claramente metafísico, e refere-se, de certo modo, à condição humana, arrostando movimento e inércia. O tempo trágico torna-se, assim, evidente pelo poder simbólico da árvore: um tempo imóvel marcado pelo nascimento de folhas. «E numa só noite!», dirá Vladimir, um tanto intrigado.
A árvore sempre teve esta capacidade de nos fascinar e de induzir o florescimento de mitos, símbolos, ideias, teorias, modelos, governos. As árvores da vida e do conhecimento. As árvores como memória natural e suporte de memória cultural. As árvores como modelo de classificação dos seres de Aristóteles a Porfírio. As árvores filológicas, genealógicas e filogenéticas. A espantosa árvore botânica de Augustin Augier. A árvore da origem das espécies de Charles Darwin. Embora quase ausentes da filosofia, com excepção de Hegel, elas marcam presença na poesia, na pintura e na fotografia (o que dizer da magnífica obra fotográfica de Ansel Adams?!). Parece, pois, que a árvore nos surge como uma imagem arquetípica. Com a primeira República, veio o culto da árvore. Aliás, um pouco antes, ainda reinava D. Carlos, as Festas da Árvore ganhavam já uma certa pujança (a primeira aconteceu em 1907, no Seixal, bem pertinho do lugar onde este texto foi escrito). A protecção das árvores atingiu então uma dimensão cívica, mas também pedagógica, que se estendeu até aos dias de hoje, a qual se manifesta espontaneamente perante anunciados abates de árvores, em particular daquelas que fazem parte do nosso quotidiano ou que têm um significado secreto (o primeiro beijo?) ou cujo crescimento nos acompanha (os piqueniques de família aos Domingos?) ou simplesmente porque, inexplicavelmente, nos sentimos bem ao pé de uma árvore, talvez porque ela, à semelhança do que se passa em À espera de Godot, serve de ponto de referência à nossa própria vida. Também na medicina encontramos apelos analógicos à arborescência típica da árvore, seja para se referir à vascularização cerebral seja à árvore pulmonar. E o que dizer do tratado ortopédico de Nicolas Andry, publicado em 1741, que tinha como subtítulo «a arte de prevenir e corrigir, nas crianças, as deformidades dos corpos», estabelecendo, a páginas tantas, uma analogia entre a correcção de uma perna torta de uma criança e a correcção do tronco torto de uma jovem árvore. Sim. Paul Valéry tinha razão. «A árvore – que belo tema!»
Uma árvore não é apenas uma árvore
Uma árvore não é apenas uma árvore. Uma floresta não é apenas um aglomerado de árvores. Numa floresta não há desordem; quando muito, uma ordem estranha à nossa lógica. Uma árvore, dada a sua frondosidade, pode dominar a paisagem, mas ela constitui, em si mesma, viva ou morta, um ambiente de suporte, um micro-habitat para outras vidas essenciais ao equilíbrio dos ecossistemas, em particular ao nível do dossel florestal, um dos estratos que mais fervilha de vida. Fungos, musgos, plantas, rotíferos, nematodes, microcrustáceos, insectos, aracnídeos, aves, répteis, mamíferos, de mil cores e de mil feitios, encontram nas árvores abrigo, alimento, água, poiso, protecção, lugar de dominação, socialização ou reprodução, ou uma casa para a vida da qual a sua sobrevivência passa a depender em exclusivo. Não é apenas a ocupação de uma grande extensão de terreno que importa, mas também a proximidade entre árvores, pois amplia fisicamente o tal ambiente de suporte, permitindo que as espécies arborícolas possam deslocar-se através da floresta sem necessidade de pisar o chão, sempre tão perigoso.
Ao mesmo tempo que tudo isto acontece, a árvore cumpre a sua natureza. Exposta aos elementos, responde-lhes, adapta-se. Apesar de enraizada, agita-se, mexe-se. As flores e os frutos, para aquelas que os têm, exibem-se exuberantemente de forma a que a espécie prolifere, com recurso a estratégias diversas, algumas delas inimagináveis na sua sofisticação. Ademais, as árvores comunicam entre si, não apenas através de sinais químicos que se propagam pelo ar, mas também através das suas raízes que, em cooperação com as micorrizas, formam uma ampla rede de comunicação subterrânea, permitindo assim que haja a partilha de compostos e elementos químicos (glucose, azoto, potássio, fósforo) entre árvores, da mesma espécie e de espécies diferentes, bem como de sinais químicos de stress, denunciando perigos que se aproximam. A árvore respira. Transpira. Sorve do solo água e sais minerais. Capta do ar, abundantemente, moléculas de dióxido de carbono. Deixa-se impregnar pelos raios solares. Faz a fotossíntese. Produz a sua seiva, necessária à sua sobrevivência. No final, liberta moléculas de oxigénio, como quem sopra incessantemente um aro de bolas de sabão. O fenómeno surge-nos como a visão (antropocêntrica, é claro) de uma dança perfeita entre opostos ou, para os menos românticos, uma máquina perfeita de reciclagem de moléculas. Nós, os humanos, expirando dióxido de carbono. Elas, as árvores, devolvendo-nos o oxigénio para o voltarmos a inspirar. Mas. Nem nós somos os únicos a ter um metabolismo dependente de oxigénio, nem as árvores são as únicas a converter o dióxido de carbono em oxigénio. De facto, em termos aproximados, por cada duas moléculas de oxigénio, uma provém das «florestas terrestres» e outra das «florestas marinhas», estas últimas compostas essencialmente por fitoplâncton.
A natureza dos vírus e os vírus na natureza
Os vírus têm má fama. E há boas razões para isso. Afinal, ao longo da história, foram responsáveis, directa ou indirectamente, pela morte de milhões de pessoas. Quando surgem nas notícias, são apresentados como uma espécie de assassinos em série, suscitando logo de imediato toda uma linguagem bélica e um sentimento colectivo de «luta» contra um «inimigo» invisível, com recurso a um arsenal de «armas» (leia-se, medicamentos). A este propósito, basta lembrar o filme Outbreak (1995), de Wolfgang Petersen, no qual um vírus semelhante ao Ébola, com o nome fictício de Motaba, e que tinha como hospedeiro um macaco proveniente do Zaire, dá início a um surto numa pequena cidade fictícia, Cedar Creek, localizada na Califórnia. Todavia, o que é interessante aqui notar é, por um lado, o cenário de guerra que se instala em torno daquela cidade e, por outro, o tipo de soluções que se colocam em cima da mesa: a descoberta rápida de um antídoto pelos cientistas ou a eliminação total daquela cidade, lançando sobre ela uma bomba não-nuclear que elimina o oxigénio e incinera tudo, incluindo o estupor do vírus, num raio de cerca de 1,6 km. É claro que este filme reproduz, de certo modo, o estereótipo do «modo americano» de resolver os problemas, mas estas visões estereotipadas têm uma forte aderência à realidade, ou melhor, às crenças de muitos povos que não apenas o norte-americano, ainda que, por vezes, estas não tenham o militar como foco, mas antes a ciência. Aliás, a este propósito, nunca é demais lembrar o aviso à navegação feito pelo prémio Nobel da Medicina, o biólogo francês François Jacob: «A frieza e a objectividade que se reprovam tantas vezes nos cientistas, talvez sejam mais úteis que a febre e a subjectividade para discutir certos assuntos humanos. Porque não são as ideias da ciência que provocam paixões. São as paixões que utilizam a ciência para sustentar a sua causa.»
«Morte ao vírus», ouve-se uma voz rouca a gritar nas ruas vazias. E o grito vai ecoando à medida que os corpos vão tombando, ou as vidas confinadas se vão tornando menos suportáveis. Afinal, somos animais que dependem de redes sociais, sejam elas reais ou virtuais. Apesar de uma vida vivida cada vez mais na distância, a imposição de um distanciamento social causa reacção. Não é uma aproximação social que se reclama, mas sim a salvação de uma certa ideia de liberdade. Porém, o vírus não morre. Nunca morrerá. E a razão, essa, é simples. Ele nunca esteve vivo. É que eles são assim uma espécie de «objectos» que transportam, no seu interior, material genético. Ademais, uma das suas principais características é o facto de não serem capazes de se auto-replicarem, isto é, precisam de infectar células vivas para o fazerem. Daí serem também referidos como «parasitas genéticos». Usam, abusivamente, as células vivas para se replicarem, sem dar nada em troca. «Está-lhe nos genes», diria alguém sentado na mesa de um café. E diria com toda a razão. Está-lhe mesmo nos genes. Infectar o máximo de células vivas possível para se replicar o máximo possível para, depois, infectar o máximo de células possível, e por aí fora. Infectar para se replicar. Eis a lógica daquilo que os vírus fazem, que sempre fizeram. Infectar para se replicarem e não infectar para matarem o hospedeiro. A morte do hospedeiro é sempre um contratempo para os vírus, pois significa perderem a sua «máquina» de replicação. Do ponto de vista evolutivo, tal não faz sentido. Daí que haja muitas espécies, em particular de mamíferos, que acabem por funcionar como reservatórios de toda uma diversidade de vírus (alguns deles com potencial zoonótico), isto é, estão infectados, mas não adoecem. Não adoecem porque estão, de certo modo, adaptados aos vírus que hospedam. Enquanto aqui permanecerem, reservados, não há problema. O problema surgirá quando, em condições naturais, o vírus saltar a barreira da espécie e infectar os humanos.
«O sangue... ainda é o melhorzinho que a gente tem a correr nas veias», escreveu Woddy Allen. Em 2017, Mark Kowarsky et al. decidiram analisar o DNA que circulava livremente nas veias de humanos e, para espanto de todos, encontraram centenas de bactérias e de vírus que, fazendo parte do microbioma humano, eram até então desconhecidos. Dito de outro modo, a diversidade de bactérias e de vírus que colonizam o nosso corpo é muito, mas mesmo muito maior daquilo que suspeitávamos. De facto, a ubiquidade dos vírus é uma outra característica interessante. Para além dos nossos corpos, eles estão abundantemente presentes em todos os ecossistemas, sejam eles marinhos ou terrestres. Ann Gregory e uma vasta equipa procuraram determinar a diversidade de DNA viral marinhoentre o oceano Ártico e a Antártida. Os resultados impressionaram, pois descobriram mais de 195 mil populações virais, distribuídas em cinco zonas ecológicas – Ártico (em todas as profundidades), zonas epipelágica, mesopelágia e batipelágica dos mares temperados e tropicais, e a Antártida (em todas as profundidades) –, tendo revelado o Ártico como um importante hotspot de diversidade viral.
Numa única gota de água do mar podemos contar (haja paciência!) cerca de 10 milhões de vírus. Poucos são capazes de infectar grandes animais marinhos (peixes, baleias, golfinho) ou humanos, uma vez que a maioria são fagos, isto é, vírus que infectam apenas bactérias. No entanto, começa-se agora a compreender melhor o papel crucial que todos estes vírus desempenham nos ecossistemas marinhos e nas cadeias alimentares, mas também no modo como o oceano responde às alterações climáticas. Por exemplo, sabe-se hoje que os vírus são fundamentais na chamada «bomba biológica» (processo pelo qual o dióxido de carbono é transformado em carbono orgânico via fotossíntese, até ser finalmente sequestrado no oceano profundo, evitando que este se escape para a atmosfera), sabe-se que os vírus eliminam, todos os dias, 20% da biomassa microbiana oceânica, libertando carbono e nutrientes que entram depois na cadeia trófica, e sabe-se que partículas virais podem ter um impacto importante, não apenas nas trajectórias evolutivas das comunidades microbianas, através da transferência horizontal de genes, mas também no aumento da sua resiliência através de uma reprogramação metabólica.
Tal como nos ecossistemas marinhos, os vírus são também abundantes nos ecossistemas terrestres. Ao nível dos solos, por exemplo, a sua abundância varia entre 2,2 x 103 vírus por grama de areia colhida no deserto da Arábia Saudita e 5,8 x 109 vírus por grama de solo colhido no leste da Virgínia, nos Estados Unidos da América. À semelhança do que se passa nos mares e nos oceanos, estes vírus desempenham um papel muito importante nos ciclos biogeoquímicos, influenciando a capacidade da comunidade microbiana em decompor a matéria orgânica ou em converter o fósforo orgânico em formas que possam ser usadas pelas plantas.
Ora, se é verdade que os vírus infectam todo o tipo de células vivas, desde bactérias a animais, passando pelas plantas, se é verdade que estão presentes em todos os ecossistemas, se é verdade que, durante o processo de infecção, alguns vírus capturam genes dos seus hospedeiros, de modo a adquirirem uma vantagem em posteriores infecções, também é verdade que as células infectadas retêm material genético destes vírus que lhes confere uma qualquer vantagem evolutiva. Quando a sequenciação do genoma humano ficou concluída, a comunidade científica ficou um tanto espantada com a quantidade de DNA que, aparentemente, não codificava nada e não tinha qualquer função. Até lhe arranjaram um nome: «Junk DNA.» Mas nem tudo o que parece é. Hoje, com recurso a novas técnicas e tecnologias de sequenciação e à genómica comparativa, sabemos que é justamente esse «lixo» que, não apenas distingue o DNA humano do DNA do chimpanzé, mas que distingue todos os genomas de todas as formas de vida «superiores». De facto, quando comparamos os genomas de vários mamíferos, observamos que as sequências não-codificantes são justamente aquelas que mais variam, mas são também aquelas que, paradoxalmente, são mais conservadas do que as sequências codificantes. Por exemplo, quando se comparou o genoma do chimpanzé com o genoma do humano, verificou-se uma similaridade de 98,5%. No entanto, o que se estava a comparar eram as regiões codificantes. Todavia, ao comparar-se o cromossoma Y das duas espécies, verificou-se que eles são muito diferentes. Apesar deste cromossoma ter poucos genes, a diferença situa-se maioritariamente nos fragmentos de DNA repetitivo, que colonizaram o cromossoma por acção da transcriptase reversa, um enzima de replicação retroviral. Dito de outro modo, o que verdadeiramente permitiu distinguir, nas suas trajectórias evolutivas, as várias espécies de mamíferos foi, afinal, o «lixo» que foram acumulando no seu genoma. O caso mais bem estudado é, sem dúvida, o dos mamíferos placentários.
A placenta surgiu, estima-se, há cerca de 130 milhões de anos. Em termos de desenvolvimento, é o primeiro órgão a ser formado, pois é ele que irá sustentar o feto ao longo de todo o período de gestação. No entanto, a sua formação, considerada um ponto crítico, implica a implantação do embrião, a qual resulta da acção de um conjunto de proteínas retrovirais que derivam de retrovírus que acabaram por ser integrados, através de um processo de endogenização, no genoma dos mamíferos. O gene sincitina-1 deriva de um gene retroviral (o gene env) que promove a fusão célula-célula e, em primatas, tem como função o desenvolvimento de uma camada de células multinucleadas, designada por sinciciotrofoblasto, permitindo a implantação do embrião no endométrio. Entretanto, várias proteínas semelhantes à sincitina foram sendo descobertas em quase todos os mamíferos placentários. Estudos funcionais têm vindo a mostrar que o papel destas proteínas derivadas de retrovírus endógenos não se fica apenas pela mediação da fusão célula-célula, mas parecem ter, também, um papel na supressão da imunidade materna, na protecção do feto perante vírus exógenos e parecem até servir como elementos regulatórios. Sim, os vírus têm má fama. Mas terão sido eles, esses «parasitas genéticos», que possivelmente nos tornaram humanos.
Desflorestação
Como vimos anteriormente, a floresta tem uma importância fundamental, não apenas enquanto «máquina recicladora» do dióxido de carbono, mas também como suporte de uma inimaginável diversidade de vida ou como reservatório de uma insuspeitável diversidade genética, entre outras funções igualmente fundamentais, como a prevenção da erosão do solo ou a regulação da água. Talvez porque estas importâncias e estas fundamentalidades não nos sejam próximas ou visíveis, ou sequer ensinadas ou comunicadas, é frequente o desinteresse público por tudo aquilo que, lá longe, se passa na floresta. Afinal, queremos continuar a ter papel, queremos continuar a comprar mobília de design feita da madeira mais cara, queremos continuar a comer os nossos bifes e a nossa soja, queremos continuar a usar óleo de palma para a produção de energia, etc. Entretanto, distraídos com a nossa lufa-lufa quotidiana, na Europa, a área de desflorestação e perda de biomassa florestal tem vindo a crescer a um ritmo preocupante. Comparando o período 2004-15 e o período 2016-18, a variação na área desflorestada concentra-se sobretudo no sul da Europa e os valores são significativos. Só em Portugal a perda foi de 56%. As causas são várias: expansão das áreas urbanas, agropecuária intensiva, exploração mineira, incêndios, etc. O crescimento populacional é, aqui, um ponto interessante. No início do século XX, por exemplo, as pessoas que viviam no Rossio tinham hortas e casas de campo a dois ou três quilómetros. Ali, digamos, para os lados da rua do Salitre. A margem sul do rio Tejo era constituída, maioritariamente, por quintas senhoriais (conhecidas como as quintas da «outra banda»), dominada por uma paisagem rural. Hoje, a população aumentou e a cidade expandiu-se, assumindo a categoria de metrópole, passando a integrar aquilo que, no passado, era campo. Quer dizer, o campo passou a fazer parte da cidade e a cidade passou a fazer parte do campo. O fenómeno das práticas alimentares biológicas de consumidores que vivem na cidade é, a este título, relevante, e mostra como, na cidade, se procuram agora modos de produção e consumo sustentáveis, seja através de mercados biológicos, seja através de hortas sociais. Regressemos, porém, à floresta e aos perigos que ela guarda em si.
Nos humanos, cerca de 75% das doenças infecciosas emergentes têm origem zoonótica, isto é, o agente infeccioso é transmitido de um animal para o humano. É o caso da raiva, por exemplo. Aliás, razão pela qual os nossos cães e gatos são obrigatoriamente vacinados com uma vacina antirrábica. Porém, a maioria (71,8%) destas doenças tem origem em espécies selvagens. E se assim é, então, nada melhor do que ir ao encontro delas para tentar conhecer e compreender a diversidade e a ecologia dos potenciais vírus zoonóticos, os quais se encontram reservados em animais selvagens que vivem maioritariamente em florestas, bem como os «drivers» para a sua emergência como doença. Tudo isto permitirá melhorar os processos de mitigação em futuras epidemias. Foi justamente com esse objectivo que surgiu o Projecto do Viroma Global. Conhecer mais e melhor, para estarmos mais e melhor preparados. A verdade é que se estima que existam cerca de 1,67 milhões de espécies virais ainda não descritas, das quais se calcula que entre 631 mil e 827 mil tenham um potencial zoonótico. A escala é, sem dúvida, avassaladora, mas o caminho tem de ser percorrido.
O contacto com estes reservatórios de potenciais vírus zoonóticos tem vindo a ser amplamente estudado. No passado, a exposição a primatas não-humanos deu origem à emergência de doenças como a febre hemorrágica Ébola, a SIDA ou a leucemia das células T do adulto. Em zonas rurais, como nos Camarões, cujas populações, pobres, dependem daquilo que caçam na floresta (bushmeat), o contacto com sangue e fluídos corporais de animais selvagens não se limita apenas aos caçadores, mas também a toda a comunidade, aumentando assim o risco de infecção. De acordo com um estudo liderado pelo virologista Nathan Wolfe et al., a população da África Central está infectada com o Simian Foamy Virus, um retrovírus endémico presente na maior parte dos primatas do Velho Mundo, justamente pelo contacto com esses primatas através da caça e do seu consumo.
Assim, quer a desflorestação, quer os hábitos de caça e consumo de animais selvagens que são reservatórios de potenciais doenças zoonóticas, quer o aumento da densidade populacional, quer o tráfico de animais selvagens para serem mantidos como animais de estimação, constituem riscos que podem fazer emergir, algures, uma nova doença infecciosa capaz de saltar a barreira da espécie. Neste sentido, o que sucedeu com o novo coronavírus (SARS-CoV-2) não devia espantar ninguém. Em 2007, Vincent Cheng et al., num artigo publicado na revista Clinical Microbiology Reviews, eram claríssimos na sua conclusão, que se reproduz aqui na sua língua original para não se perder o seu sentido: «The presence of a large reservoir of SARS-CoV-like viruses in horseshoe bats [morcegos-de-ferradura], together with the culture of eating exotic mammals in southern China, is a time bomb. The possibility of their emergence of SARS and other novel viruses from animals or laboratories and therefore the need for preparedness should not be ignored.»
Ademais, de acordo com as actuais projecções das Nações Unidas para o crescimento da população mundial até 2100, África vai aumentar a sua população em mais 3 mil milhões, passando a ser de 4 mil milhões, e a Ásia vai aumentar mais mil milhões, passando a ser de 5 mil milhões. África e Ásia, em conjunto, irão representar cerca de 80% da população mundial! A pressão antropogénica sobre a floresta, o território, enfim, os diversos ambientes, irá ser brutal. As desigualdades sociais e económicas irão tornar-se ainda mais evidentes. E se, por um lado, o aumento da densidade populacional e a expansão dos centros urbanos irá proporcionar mais contacto com a vida selvagem, com todos os riscos que daí advêm, por outro, a identificação desses riscos e a compreensão da biodiversidade e da ecologia dos agentes patogénicos que habitam estas paisagens «inumanas» irá permitir-nos implementar programas de vigilância, de prevenção, de adaptação e de mitigação face a futuras eventuais epidemias.
Termine-se, porém, este ensaio atenuando um certo tom que talvez possa ser entendido como fatalista. Sejamos claros. O que temos pela frente é, pois, um exigente caderno de encargos acrescido de uma interpelação ética intergeracional. E o futuro, ou melhor, o futuro que está por vir, irá depender muito daquilo que formos capazes de fazer, mas irá depender ainda mais do quanto formos capazes de mudar. Atitudes, comportamentos, hábitos. A todos os níveis. Individual, comunitário, cultural e, sobretudo, civilizacional. Sim. Os desafios são imensos, mas o futuro está aberto. Oxalá ele tenha uma árvore como ponto de referência.
Ricardo R. Santos.
Biólogo e investigador.
Laboratório de Comportamentos de Saúde Ambiental do Instituto de Saúde Ambiental da Faculdade de Medicina da Universidade de Lisboa.
Centro de Bioética da Faculdade de Medicina da Universidade de Lisboa.
ricardoreis@medicina.ulisboa.pt
