- Diogo Belo, o perfil sem máscara
"Todos nós ao crescermos temos os nossos heróis, aqueles das bandas desenhadas, aqueles dos collants e roupa mirabolante, aqueles com super-poderes incríveis que só nos sonhos conseguimos alcançar e que nos fazem ficar de boca aberta do quão fantásticos são.
Eu fui um desses, desde o super-homem, ao homem-aranha e ao Batman todos me fascinaram, mas um a um foram perdendo o interesse até restar só um: Tu.
Tu sim és o meu herói, tu que vestes a tua “capa” branca todos os dias de manhã e escondes as horas de sono que perdes, as horas de diversão e lazer que podias ter, mas que pões de lado para poderes ajudar uma velhota em desespero por não saber o que vai acontecer ao marido na operação, ou uma jovem com tumor gigante e que tem medo de ser operada, mas que tu com a tua paciência e carinho fazes perceber que vai correr tudo bem, mesmo que dentro de ti estejas com receio que possas cometer algum erro.
Tu para além de meu irmão, és o meu herói.
Sei que não está fácil e que os seres humanos não te facilitam o trabalho, mas não precisas de carregar tudo sozinho, nós estamos aqui para ti, quando sentires que o peso está a ser demasiado passa-o para nós que o carregamos por ti, por 1 segundo, 1 minuto, 1 hora ou o tempo que for preciso para que possas voltar a lutar por nós!
Sei que não tens super-velocidade, super-força ou visão raio-x (que tanto jeito dava agora), mas tens mais que isso, tens força de vontade, inteligência e um super coração.
Tu já sabes como eu sou e que não te digo estas coisas por telefone porque senão não passava da primeira frase sem me desfazer em lágrimas, mas mesmo assim precisava de te dizer isto.
Pronto, agora que tiveste este momento de pausa volta a calçar as luvas e volta para a luta que nós estamos no teu “canto” à tua espera para te preparar para mais um round nesta dura luta que é a vida."
![dois rapazes abraçados](/sites/default/files/inline-images/diogo%20e%20jo%C3%A3o.jpg)
A mensagem foi escrita pelo João para o irmão Diogo que é neurocirurgião no Hospital de Santa Maria e que em breve completa o seu sexto ano de internato. Do Diogo, sem olhar para o médico, descubro que foi ativo aluno da Faculdade de Medicina, que escreve muito bem e que é movido a afetos, apesar da bravura intrínseca que o distingue. Não é em vão que vive, como tantos, praticamente o dia todo num hospital como o de Santa Maria e isso dá-lhe vida. Do médico Diogo passo a perceber que assume o risco de se colocar na linha da frente para cumprir a sua missão que, já no secundário, lhe fora soprada ao ouvido por uma “entidade” que pode ter sido o seu instinto, ou quem sabe o destino. Diz a sorrir que talvez tenha sido a mesma campainha que tocava no ouvido de João Lobo Antunes quando este sabia que tinha de ir a correr socorrer um doente.
Curioso, como é precisamente na biblioteca das neurociências, e onde o pai Lobo Antunes se reunia com todo o conselho médico, que nos sentamos a uma distância pouco usual para o que aquela sala da Faculdade já assistiu.
Chama-se Diogo Belo, tem 33 anos e é natural de Faro. O irmão João formou-se primeiro em jornalismo e só agora percebeu que queria seguir os passos do pai fisioterapeuta. A humanidade e espírito de união foram inspiração familiar, mistura de uma mãe orgulhosa, educadora de infância, e de um pai que aspirava ter um filho que lhe seguisse as pisadas do projeto de fisioterapia; se ao início achou que essa pessoa seria o filho mais velho Diogo, o tempo mostrou-lhe que não se planeia o destino a ninguém e que cada um o traça no seu tempo certo.
Apesar de receosa acho que tenho de regressar ao Hospital de Santa Maria para encontrar alguém que quero ouvir pessoalmente, depois de ter recebido tantas referências que me dizem ser “alguém maior” e que “não será bom perdê-lo do Hospital”.
Encontro-o à porta do Edifício da Neurologia e Neurocirurgia. Gentil, tenta ceder-me a passagem para que vá indo à frente, mas a verdade é que não tenho coragem de carregar ou segurar em nada, mas também não o digo por profundo constrangimento. Ele percebe rapidamente e assume fazê-lo com um sorriso, “não se preocupe, eu vou carregando nos botões, não tem mal”.
Enquanto se cumpre o formalismo de manter a máscara e escolher uma cadeira na diagonal, explica-me que o olhar atento ao outro não se pode perder só porque há uma obrigatoriedade de distância e que essa mesma distância física não pode destruir o zelo que um médico tem de ter pelo seu doente. No decorrer da nossa entrevista dir-me-á quase no fim que a distância social é tentadora para que se percam os laços do trato mínimo entre as pessoas e que dizer “bom dia ainda não contagia ninguém”.
Começamos, na verdade, pelo fim. Pergunto-lhe se vai ficar pelo campus. Sorri e explica o que implica o treino para se ser neurocirurgião, mas não me responde. Não para já.
Foi num simpósio anual que ouviu o testemunho de um então interno de neurocirurgia, o que ouviu ditou-lhe claramente a meta para a sua primeira grande corrida, Santa Maria. Homem de objetivos vincados, traça sempre metas seja qual for a dificuldade, mas nem sempre tudo lhe correu bem à primeira. No primeiro ano em que se candidatou à Faculdade, a média só lhe permitiu frequentar Medicina Dentária. Já vizinho da sua Faculdade de Medicina, olhava para ela e sabia que um dia passaria a estudar na morada certa, não por sorte do acaso, mas porque assim o decidira.
![grupo de vários jovens alunos de medicina](/sites/default/files/inline-images/vida%20acad%C3%A9mica.jpg)
Sempre a traçar metas mais ambiciosas, entendeu que percorrer o mundo seria matéria fértil para crescer e se aperfeiçoar. No segundo ano de internato foi um período para Berlim fazer uma formação, lá conhece um diretor de neurocirurgia brasileiro cuja área de ação era sobre a cirurgia da base do crânio. Esperou pelo intervalo da palestra e dirigiu-se ao médico que opera em Ribeirão Preto (Estado de São Paulo). Percebeu que o volume de trabalho era tal e os meios tão escassos que pouca ajuda tinha dos seus internos, acabando por operar a maior parte das vezes sozinho. Foi então que Diogo se ofereceu para ir ajudar alguém desconhecido, ao outro lado do mundo e com um custo maioritariamente assumido por ele. Durante três meses percebeu que o Homem tem uma capacidade de se adaptar às maiores agruras, reinventando-se mediante o cenário que lhe é colocado e criando as soluções necessárias para cada realidade.
Como o mundo nunca lhe basta, recentemente esteve em Phoenix nos EUA, num dos maiores centros de neurocirurgia vascular, com Michael Lawton. Aí aprendeu a relativizar ainda mais o tempo. Inspirou-se num homem de 56 anos que atingiu um patamar pioneiro na neurocirurgia vascular mundial e cujos horários são geridos minuciosamente entre cirurgias, viagens ao Oriente, para dar palestras, e a gestão enquanto CEO do Barrow (Neurological Institute). Descansar é para Diogo Belo perder tempo, adiar momentos cruciais de um pensamento integrado, o “bottom-up”, pensamento cada vez mais elevado para a melhoria enquanto médico.
Homem espartano de ações e pensamento, não defende a glória individual, mas tão somente “obter valor, e tornar-se mais valor para alguém” e isso explica-se na forma como se desmultiplica em ações e horas de trabalho, ou interação com outros.
Como se fosse rotina comum de qualquer ser humano, e para ele é mesmo, hoje apresenta-se depois de uma noite de trabalho nas urgências, parou uma hora para me receber e daqui a outra hora irá para o bloco para uma cirurgia. Em média este grupo de neurocirurgiões pode trabalhar 100 horas semanais.
Falar com este neurocirurgião era o momento caído do céu, aquele em que procurávamos respostas para as perguntas que nos davam o mote para escrever este mês.
“Onde estão as pessoas que estão doentes e que desapareceram das ruas e dos hospitais?”. “O que aconteceu aos corredores dos hospitais que persistem vazios e silenciosos?”.
Estas eram as questões que queríamos tentar explicar, mas pelo meio ficou claro que era muito mais do que isso que iríamos perceber.
Há pouco usou uma expressão a descrever o primeiro ano em que não entrou para Medicina, dizia: “um dia eu estou ali”. É assim naturalmente em tudo o que faz?
Diogo Belo: Sempre. Eu tinha um daily reminder em que fazia a visualização do local para onde queria realmente ir e foi sempre nisso que pensei. (Sorri)
Dessa perseverança também faz parte não descansar?
Diogo Belo: O nosso treino é um bootcamp, muitas vezes comparado pelas revistas americanas como um treino semelhante aos Navy Seals, ou seja, somos habituados a horários extremos. Durante todo o internato trabalham-se 24 horas seguidas e a seguir vamos operar e repare que há cirurgias que duram 7 ou 8 horas, mas podem chegar a ser 12 a 14 horas. Parece um absurdo, quase desumano, não é? Mas a verdade é que aquilo que parecem ser horas sem fim, hoje em dia é quase natural dormir apenas meia hora, uma hora, tomar um banho e ir para uma cirurgia de outras muitas horas. A pergunta normal que vem a seguir é se faz diferença uma pessoa dormir bem e estar descansada, ou só dormir uma hora.
Então dormir 6 horas é muito.
Diogo Belo: É. Eu nunca fui muito de dormir. (Sorri) E não é que não goste, mas sempre procurei fazer tudo, exceto dormir. Mesmo estando cansado, e se não tivesse atividade médica no dia seguinte, eu saía daqui e ia treinar, por exemplo. É preciso. E é importante manter alguma normalidade na nossa vida.
![rapaz de fato em pé a dar uma explicação](/sites/default/files/inline-images/AIMS%20Meeting.jpg)
E o cérebro não colapsa de cansaço? Isso também se aprende a controlar?
Diogo Belo: O treino faz com que controlemos de alguma forma o nosso cérebro. A diferença entre descansar 6 horas, ou apenas uma, numa cirurgia linear não é grande . Isto porque se baseia muito no pensamento bottom-up. Se a cirurgia segue procedimentos repetitivos e não sai fora desses passos lineares, é quase automática. Já em cirurgias mais complexas entra em ação um pensamento top-down, ou seja, o córtex tem que pensar “muito bem, estamos perante uma situação diferente e vamos ter que agir de forma ponderada e adequada”. E aqui o nosso cérebro tem que funcionar de outra forma. Claro que se estiver descansado consigo equacionar 10 caminhos diferentes para chegar à mesma solução, se estiver privado de sono, se calhar, tenho menos opções diante de mim. É como se o pensamento ficasse “danificado”.
Esse exercício de grande disciplina mental é o que faz deste Hospital a grande Escola de internato?
Diogo Belo: O Professor Lobo Antunes deixou este pensamento americano muito patente, com uma hierarquia muito bem marcada. Cada interno do seu ano reporta ao interno do ano seguinte, sempre que haja dúvida, reporta-se acima. Atualmente estou no 6º ano como finalista (ou Chief Resident) e tenho a meu cargo todos internos mais novos. Acabo por lhes dar muita formação “não escrita”. Sempre que eles têm uma dúvida, comunicam comigo e por outro lado, e como ainda não sou especialista, eu próprio comunico com os especialistas mais velhos para esclarecer dúvidas. Este espírito de falar com o superior hierárquico não quebra, no entanto, o facto de, antes de termos essa hierarquia, sermos todos amigos aqui dentro. O que pode não ser nada fácil por ser algo tão competitivo. Aqui há sempre espaço para todos fazermos e operarmos. Quando o Prof. trouxe para cá este método de treino bastante exigente, deixou também este orgulho de nos revermos todos nesta formação americana. As horas sem fim têm um propósito, o bem-estar do doente e o nosso próprio treino, o teste permanente para avaliarmos que estamos ao nível máximo. Adoro este serviço. O treino é imenso, mas o sentido de missão também.
![grupo de médicos do hospital](/sites/default/files/inline-images/grupo%20hospital.jpg)
Escreveu alguns textos onde revela uma sensibilidade quase rara sobre o possível estado dos doentes, numa fase em que todos os esforços se focaram nos doentes com covid. A questão que se coloca é se não ficaram todos os restantes esquecidos?
Diogo Belo: Estes textos e escritas têm sempre um episódio por detrás. Algo que se tornaria insuportável se não o fizesse, advindo da necessidade de falar daquilo que se passa na esfera profissional, neste caso. E eu sou pouco de me manifestar a quente em relação a estes assuntos. Foi muito difícil, sabendo como estão sempre ocupadas as nossas urgências, ver que tudo deixou subitamente de existir. Nem o telefone tocava. Tinham desaparecido os doentes.
O que é que aconteceu a essas pessoas?
Diogo Belo: (Dá um suspiro fundo) Isso foi o que custou mais, foi assustador ver os corredores vazios. Essa incerteza magoava-nos mais do que uma má notícia. Depois, quando começámos a ver os efeitos do desaparecimento dos doentes dos corredores e dos próprios médicos que muitos ficaram doentes, ou foram deslocados para apoiar outras áreas, percebemos a gravidade desses efeitos.
Depois de o país “fechar” e depois de todos ouvirem vezes sem fim “não saiam de casa, evitem hospitais”, medida claramente necessária para controlar a pandemia, esta devia ter vindo acompanhada de uma nota de rodapé. Devia ter sido dito, “se estiver mal não adie”. Duas semanas e meia depois e no mesmo dia, estava eu de urgência, numa noite, e entraram de seguida duas doentes, uma com 36 e outra com 39 anos. Entraram duas mulheres com uma cefaleia súbita, ou seja, dores de cabeça muito intensas e vómitos, com 5 dias de evolução. Numa mulher jovem é mais do que sinal de alarme para a possibilidade de um aneurisma roto. Diante destas queixas faz-se de imediato uma TAC de crânio. Mas não foi o que aconteceu aqui. Como tinham dores de cabeça e apesar dos vómitos, (uma até ligou para a linha Saúde 24), mas como estava acordada e pelo medo de ir para urgência, ficou em casa. Cada vez com mais dores, teve uma alteração súbita da consciência e ficou em coma. Foi assim que ela nos chegou cá, altura em que fizemos de imediato a TAC que mostrou que tinha um aneurisma roto e uma lesão extensa do tronco cerebral. Neurologicamente estava já em morte cerebral. Não bastando esta história, entrava 45 minutos depois outra com uma história muito semelhante, em que se manteve em casa por 15 dias com medo de sair e na esperança de ficar melhor. Também entrou morta. (fala com pesar e muitas vezes a expressão é de tristeza)
Se essas duas mulheres tivessem vindo mais cedo, teriam sido salvas?
Diogo Belo: Provavelmente. Não consigo ter 100% de certeza. Sabe que 50% dos doentes quem têm uma rotura de aneurisma morrem imediatamente; da outra metade, apenas 30% saem do hospital sem defeito neurológico. Por isso nestes casos como não houve morte imediata das doentes, se calhar podíamos ter evitado segunda rotura e a morte. Mas a somar-se a estes casos muitos outros apareceram: tumores que foram sendo adiados por falta de equipas completas, que eram colocadas em áreas mais urgentes. Repare que quando algo falha, falhamos todos, não há aqui culpas individuais. Não se atribuem culpas a ninguém em particular. No pico da pandemia nós tínhamos apenas um bloco operatório por semana, agora imagine.
Por semana? Num Hospital destes? E os doentes? O que faziam ao vosso tempo?
Diogo Belo: (ouve-se um silêncio pesado e arrastado) Como não podíamos ter consultas presenciais, ligávamos aos nossos doentes e na altura ainda sem estar formalmente firmada a teleconsulta. Mas não fazia sentido não acompanhar os doentes acabados de operar e que tinham tido alta, apenas poucas semanas antes. Era preciso reavaliá-los, pois é muito fácil que sem acompanhamento algo corra menos bem.
Neste período de silêncio a vossa equipa foi ajudar a equipa covid?
Diogo Belo: Sim e não. Nós disponibilizámo-nos para tal, mas a própria administração requereu a todos os serviços uma lista de competências em urgência, internamento e cuidados intensivos, para perceber quais os médicos disponíveis para ajudar no covidário, nas unidades de CI. E nós, internos e especialistas, preparámo-nos para tal, criámos um grupo de whatsapp onde trocávamos artigos científicos recentes para estudar as várias terapêuticas em estudo. Até estudámos as maneiras de nos vestirmos e proteger contra este vírus, estes ensinamentos foram muito importantes. Sabe que para nós faz-nos mais confusão ficar parados do que fazer alguma coisa. Nós íamos ao piso onde recebiam os doentes e custava-nos muito ver o ambiente que estava, a dificuldade em gerir os doentes, mais doentes a somar que chegavam e não havia apoio suficiente… Nós, internos mais velhos, que já tinham feito o estágio de cuidados intensivos, fomos rever e estudar aquilo que era de CI. Assim, o tempo que não tínhamos ocupado passou a ser, não para rever Neurocirurgia, mas a ler e estudar ventilação invasiva e tudo o que já tínhamos aprendido no passado.
E como foi essa ativação na urgência?
Diogo Belo: O nosso Diretor quis obviamente proteger, de alguma forma, os profissionais do serviço, para o caso de serem necessários para a nossa atividade cirúrgica altamente especializada. Ficámos mais “na linha de trás”, operando todos os doentes urgentes ou emergentes que eram, ou covid positivos ou cujos resultados ainda não estavam disponíveis e logo assumidos como positivos. Tudo isto tem um acréscimo de dificuldade já de si elevada, porque imagine o que é operar na nossa área, que tem reconhecidamente das curvas de aprendizagem mais íngremes, em condições sub-ótimas: com um bloco que não tem todo o material necessário imediatamente disponível, com pessoas que dão o seu melhor, mas que têm de se reinventar consoante o tipo de doente e o tipo de operação, e falamos das mais variadas especialidades, eles têm que se adaptar e ajudar o cirurgião. Agora acrescente a isto tudo fazer a cirurgia de máscara, cógula, touca, dois ou três pares de luvas, com um calor imenso e tudo embaciado.
É-vos retirado o tato praticamente…
Diogo Belo: Prejudicamos basicamente dois nos nossos cinco sentidos, tato e visão. E aí faz-nos avaliar o benefício versus o risco para o próprio doente. Ou seja, avaliamos se vale a pena operar de imediato e com todos os procedimentos de segurança covid, porque a pessoa não aguenta mais tempo, ou adiamos umas horas e sabemos se é negativo e não precisamos de tanto aparato de luvas e viseiras e aí temos os sentidos mais apurados.
O Diogo nunca tem medo?
Diogo Belo: Não. Esta resposta assim dita parece mal, não é? É verdade que esta questão nos afetou muito, afetou animicamente ver que estava tudo a piorar no hospital e pensámos que íamos ficar todos infetados. Depois pensávamos que percentagem de nós ia parar aos Cuidados Intensivos e aí fiquei preocupado como é que ia ajudar os doentes. Mas houve um dia que, mesmo tendo sempre esta postura da Neurocirurgia de “dar o peito às balas”, me emocionei…
Com o quê?
Diogo Belo: Quando li a declaração Urbi et Orbi do Papa Francisco. E atenção, sou católico e crente, mas não praticante. Mas ao lê-lo senti que abalava as estruturas de um período que ia ser difícil, que estava a ser difícil. Nesse momento também pensei, “espera, as fundações estão cá, podemos ficar abalados, mas as fundações estão cá, não vão abaixo”. E no dia a seguir regressei com a mesma força de sempre, porque esse é sempre o caminho. E o caminho significa que para mim não há qualquer dúvida do sítio onde tenho que estar.
E não pode nem deve haver receio de estender a mão ao outro, como nunca houve até aqui. O covid não me faz retrair a mão, nunca o fiz, não é agora que o vou fazer. Por isso de certa forma foi bom este abalar das fundações e perceber a situação de estarmos todos no mesmo barco e de dar valor áquilo que fazemos. Mas o valor vem da realização pessoal de ajudar as pessoas que precisam e não pela exteriorização das nossas ações. Daí achar que o obstáculo só nos fortalece, obriga a crescer.
Não vai ficar igual depois de tudo isto passar, pois não?
Diogo Belo: Acho que não. E nem sabemos como vai ser, como vai acontecer. Assim como nem sei se já há algo a mudar. Mas isso faz-me lembrar uma frase que o Prof. Vaz Carneiro dizia muitos nos nossos primeiros anos, “neste hospital como em qualquer outro não há nem pode haver ninguém acima de ninguém”. Somos todos seres humanos. Digo “bom dia” a todos aqueles por quem passo. E agora faz-me confusão este gesto de nos falarmos com os cotovelos. A proximidade não se pode perder, tem que existir. Se as pessoas estão a viver tempos difíceis e se não se veem motivadas e que não lhes dão atenção, elas desistem, se as pessoas não são valorizadas vão embora. Nestas situações difíceis é importante empenharmo-nos e sermos um todo pelo bem do doente. Bolhas isoladas não fazem bem a ninguém e temos de contrariar esta fase.
Em maio de 2021 Diogo Belo fará o exame de saída do internato. A seguir à saída da especialidade prometeu a si próprio ir um tempo para o Japão. No último minuto da nossa conversa lá me respondeu, que quando regressar voltará ao seu lugar, àquele lugar que lhe faz sentido, pelo menos para já, o Hospital de Santa Maria.
Ao longo de um curto fragmento de tempo ficou claro que o Diogo é regido a uma força interior demolidora, posta ainda mais à prova diante da adversidade, mas o próprio sabe que só podia estar aqui agora, afinal prometeu-o a si próprio nos tempos de dentária.
O telefone toca, tem de ir de imediato para o bloco, seguem-se as cirurgias agora. Calmo, e sem alguém poder adivinhar da sua privação de sono, acompanha-me aos elevadores, ainda vai mudar de roupa e desinfetar-se, parece que tudo tem tempo de ter tempo, sinal de experiência já assente.
Se dessemos um título para o descrever talvez usássemos uma frase que o próprio citou entre pensamentos vários…
“Sempre que pensares desistir, continua. A vitória adora os tenazes”.
E há um sopro que a mim me diz que ainda vamos ouvir falar muito do neurocirurgião vindo do sul que tem o espírito estoico e que quanto mais densa for a montanha, mais se desafia a vontade de alcançar o seu cume.
Joana Sousa
Equipa Editorial
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