Nos últimos dois meses temos dado especial foco à designação do SARS-CoV-02, um vírus cuja família nos foi demoradamente apresentada ao longo de cada dia que passámos isolados uns dos outros e, cada vez mais, com a noção da nossa incapacidade de intervenção e ajuda diante do mundo.
Descrevemos e ouvimos sobre o discreto vírus que viria a ser pandemia mundial, páginas e páginas de notícias de última hora e apelos à contenção e resguardo. Pouco fomos falando daqueles que estavam na sombra, e sem querer protagonismo, a ajudar a troco de nada, quem precisava. Na verdade, em troco da sua própria vontade de fazer apenas bem aos outros, sem esperar ter troca de moeda, ou apreço público. Voluntariado, chamamos comumente, altruísmo também, bondade. Missão.
Fomos atrás de algumas dessas pessoas que sempre com algum espanto perguntam, “mas como é que me descobriu?”. A pergunta troca as voltas à regra e na verdade exige outra pergunta como resposta, “por que razão o fazem, Tomás, Vera e Joana?”.
Então, deixem-me que vos apresente!
Chama-se Tomás d’Elvas Leitão e atualmente é Médico Interno de Formação Específica em Anestesiologia no Centro Hospitalar Lisboa Norte, assim como Assistente de Microbiologia na Faculdade de Medicina, Faculdade esta onde se formou e nunca mais quis largar. Em tempo de quarentena assumiu mais uma missão na sua vida, desta vez proposta pelo Padre Ricardo da Paróquia de Santo António do Estoril, dar a cara e voz sobre a sua própria quarentena e explicar, na sua área, que ajudas seriam necessárias.
Estando na reserva de contingência, Tomás faz parte do grupo que vai alternando para assumir rotatividade e descanso entre equipas médicas. Está por isso muitos dias na linha da frente dos casos clínicos mais graves e cujo estado clínico de quem lá fica é frágil e deteriora-se. E para os que recebem estes doentes todo o cuidado é obrigatório, por isso é preciso material de proteção, mas ele escasseia porque nunca é reutilizável.
A um pedido claro de ajuda por: máscaras cirúrgicas, máscaras FP2 e FP3, toucas, fatos completos, óculos protetores, viseiras e até refeições que deixaram de existir, a comunidade respondeu e mobilizou-se. O pedido de ajuda do Tomás tornou-se num verdadeiro êxito. Refeições prontas e snacks começaram de imediato a chegar ao Serviço de Anestesiologia e ao Bloco Operatório Central, à Unidade de Queimados, ao Bloco de Partos, à Urgência Pediátrica, à UCIPed e às Unidades de Pneumologia e Infecciologia Pediátricas. Chegaram depois as tão necessárias viseiras e fundos para financiar a compra de máscaras, fatos e cogulas.
Tomás d’Elvas Leitão, assim como todas as equipas mantêm-se no terreno e todos os dias precisam das mesmas coisas, por isso o vídeo nunca deixa de ser importante de rever!
Chama-se Vera Chambel e está no 4º ano do Mestrado Integrado em Medicina. Sempre gostou de ajudar os outros, essa foi a grande razão que a fez vir para Medicina. Enquanto estudante da área da Saúde pensa que todos têm uma vontade muito particular de se entregarem aos que mais precisam. Talvez isso explique que sempre tenha estado envolvida em vários voluntariados, uns pontuais, como o “Banco Alimentar”, ou a “Missão País”, outros mais regulares, como a “Missão Aqui” ou voluntariado numa creche.
Joana Sampaio tem 22 anos e frequenta atualmente o 5º ano de Medicina da Fmul. Perante a consciência “que vivemos uma época em que a única coisa que nos é pedido é ficar em casa, para nos protegermos a nós e aos que nos rodeiam”, resolveu que queria proteger alguém sim, mas que não ia ficar em casa. Soube de um lar de idosos no centro do país com falta de funcionários devido ao Covid-19 e decidiu que diante de uma situação bastante grave e sendo saudável, a realidade do outro não lhe “podia passar ao lado”.
Joana tomou conhecimento que 12 dos 18 funcionários do lar, eram COVID positivos e como tal estavam infetados em casa, assumiu um dos papéis de voluntária assim como a responsabilidade e o protagonismo de um trabalho equivalente ao de um funcionário dito normal do lar. Criando o projeto COmVIDas, a partir do trabalho conjunto de amigos e estudantes, o objetivo era, mais do que dar continuidade a um trabalho do lar, conseguir criar uma plataforma de voluntários que chegasse a mais instituições de Portugal e que estivessem a passar pelas mesmas dificuldades.
Joana consegue descrever-me todo o processo do papel que desempenhou para que todos entendam como foram as rotinas?
Joana Sampaio: Estávamos organizados aos pares e por turnos de 8h (manhã, tarde, noite) e as nossas funções passavam por medição de sinais vitais, higiene dos utentes e limpezas, tentando acima de tudo conhecer e cuidar de cada idoso individualmente.
A realidade com que nos deparámos à chegada bastou para perceber que o nosso papel era essencial naquele lar. Mesmo sabendo do risco que correríamos com a nossa própria exposição, a prioridade foi conseguir o bem-estar de cada utente com toda a segurança possível, através do equipamento de proteção individual que nos foi disponibilizado diariamente. Todas as condições de segurança aliadas ao facto de sermos indivíduos jovens e saudáveis permitiram uma maior tranquilidade no trabalho de serviço a esta instituição.
Em que medida esta pandemia veio mudar a vossa vida?
Joana Sampaio: Viver neste período de pandemia fez-me perceber o quão difícil pode ser cumprir o que eu achava que era a simples regra de ficar em casa e o impacto tão grande que isso tem nas nossas rotinas, nas nossas relações, na nossa maneira de viver. Ao mesmo tempo é impressionante a capacidade de adaptação que adquire cada pessoa e mesmo a própria sociedade. A quantidade de atividades, projetos de solidariedade e alternativas que surgem para as várias adversidade que vão surgindo são a prova disso e mostram a nossa união. A organização COmVIDas é uma dessas iniciativas, já com varias missões a decorrer em várias localidades do país. Foi uma experiência de voluntariado que deu significado à minha quarentena e tudo o que vivemos neste mês, os resultados que conseguimos atingir, trazem um grande sentimento de dever cumprido que deve ser igualmente sentido por todas as pessoas que permanecem fielmente em casa.
Vera Chambel: A situação que estamos a viver está a ser devastadora em inúmeros aspetos. As pessoas estão com medo. Eu estou com medo. Medo pelos meus avós, pais, tios e amigos. Estou com medo pela pressão imposta sobre o SNS, por todos os profissionais de saúde e tantos outros que todos os dias se colocam em risco pelo bem dos outros. Estou com medo das consequências disto tudo sobre o nosso país.
Enquanto futura médica, mas ainda tão longe de o ser, a frustração que sinto por ainda não poder ir para o hospital ajudar é enorme. Pensei logo, faltam dois anos para acabar o curso! Dois anos e o meu papel nisto tudo seria tão diferente! Sei que não falo só por mim, mas por muitos de nós, quando o digo. Mas a verdade é esta: não podemos, porque ainda não sabemos como, ainda não chegámos lá. No entanto, há muitas outras ações ao nosso alcance. A solidariedade vê-se nas coisas mais simples. Quando nos mandaram ficar em casa, não pus em questão desobedecer. Comecei a minha quarentena, como tantos outros o fizeram. E mantenho-me em casa, em segurança. É muito importante cumprir com as normas impostas para que tudo corra da melhor maneira possível. No entanto, as dificuldades foram surgindo. Muita gente ficou com a vida do avesso e a necessitar de ajuda. Apesar de saber que tinha de ficar em casa, não consegui ignorar o que se estava a passar, queria fazer alguma coisa de útil.
A minha sorte é que existe tanta gente com o coração do tamanho do mundo, que não ficou indiferente a estas situações e que continuaram, reestruturaram e criaram novas formas de poder ajudar. Mas ninguém o consegue fazer sozinho. É preciso que cada um faça a sua parte. Por isso, para mim, foi óbvio: se eu tenho a possibilidade de ajudar, com as devidas medidas de segurança, então vou fazê-lo da maneira que puder, onde precisarem de mim.
As oportunidades de voluntariado foram surgindo e eu fui-me inscrevendo.
Pode descrever um pouco melhor o processo das suas tentativas de inscrição e a razão de só recentemente ter sido contactada?
Vera Chambel: Esta pandemia trouxe inúmeros desafios e dificuldades, contudo também demonstrou o bom que há nas pessoas. Por todo o lado, começaram a surgir movimentos organizados por pessoas de todas as idades, com o intuito de ajudar aqueles que estão a passar mais dificuldades ou que pertencem a grupos de risco. A onda de solidariedade que se formou, em tão pouco tempo, foi extraordinária.
Com tantos movimentos a aparecerem e tantas formas de ajudar, foi preciso escolher onde me devia envolver. O meu primeiro instinto foi inscrever-me em algo relacionado com medicina e, se calhar por isso, acabei por atrasar o início do voluntariado. Voluntariei-me em 5 ou 6 organizações que me permitissem não faltar às aulas que, entretanto, continuavam a ser lecionadas. Para uns não fui selecionada, para outros ainda estou à espera de resposta.
Até agora, acabei por só ser contactada para um deles, na Junta de Freguesia de Benfica.
Qual o seu papel atualmente no banco alimentar?
Vera Chambel: A Junta de Freguesia de Benfica está a dar apoio alimentar a inúmeras famílias carenciadas. Atualmente ajudam cerca de 80 famílias. Fornecem cabazes para estas mesmas famílias com tudo o que conseguirem arranjar. Recebem muitos alimentos diretamente do Banco Alimentar, mas estes não são suficientes para cobrir todas as necessidades. Eles próprios têm de comprar a maioria da comida que entregam. Por enquanto, o que eu faço é ir, duas vezes por semana e com as devidas precauções, ajudar a descarregar camiões de comida e a fazer os cabazes para depois serem distribuídos.
Continuo à espera de poder ir ajudar também diretamente no Banco Alimentar, ou no voluntariado da ANEM, mas por agora é apenas isto.
Em que medida esta pandemia veio mudar a sua vida?
Vera Chambel: Esta pandemia veio mudar tudo. Não só a minha vida, mas a de todos. Muitos tiveram de colocar tudo em perspetiva.
No meu caso, o que mudou mais foi em relação ao curso. Aquele excitamento de finalmente começar os anos práticos, viu-se rapidamente apagado com isto tudo. A prática voltou a ser teoria. Os estágios foram substituídos por vídeo-aulas no zoom. O contacto com os doentes, passaram a ser casos clínicos por trás de um ecrã.
Quando tudo começou, Santa Maria foi das primeiras Faculdades a reagir. Rapidamente foram geradas alternativas para que não perdêssemos o semestre. Tudo o que fizeram para minimizar os danos desta pandemia na nossa educação foi de louvar. No entanto, não é a mesma coisa, não pode ser. A experiência é muito importante neste curso, por isso vamos sempre sair prejudicados.
Para além disso, a motivação para estudar é mais baixa. Não há aquele incentivo de termos alguém à nossa frente. De termos de saber tudo sobre as doenças para não desiludir o nosso tutor. Em vez disso, encontramo-nos submersos em aulas maioritariamente teóricas, que ocupam grande parte do nosso dia, para depois irmos estudar mais teoria.
Perante a frieza da decisão que muitas vezes precisa de ser rápida para pessoas como o Tomás quando se depara com um doente de situação extrema, ou diante da frustração de querer estar mais à frente do tempo como a Telma e a Joana, para poderem ajudar mais ativamente os outros, o que fazer para que nunca se perca a perspetiva humana?
Cada um da sua maneira demonstrou diversas formas ativas de ajudar o outro, mesmo vestindo fardas, mas alguns sem serem ainda médicos.
Como citou Tomás d’Elvas Leitão sobre uma oração que costuma usar de Santo Inácio de Loyola, todos podemos estar de alguma forma ao serviço do desapego e esse não precisa de ter uniforme.
“Senhor Jesus ensinai-me a ser generoso a servir-vos como Vós mereceis.
A dar-me sem medida.
A combater sem cuidar feridas.
A trabalhar sem procurar descanso.
A gastar-me sem esperar outra recompensa, se não saber que faço a Vossa vontade santa”.
Joana Sousa
Equipa Editorial