Fernando de Almeida Leite de Sampaio tem 60 anos, é natural de Felgueiras e é capelão no Hospital de Santa Maria, desde dezembro de 1995. Aos 7 anos descobriu que queria ser padre. A mãe, que sempre lhe falou de Deus com muito amor e um padre recente na capela da aldeia onde vivia, contribuíram para este desfecho. Do pai guarda a memória de um homem trabalhador e honesto, “fazia acordos com um aperto de mão, e isso bastava para manter a sua palavra,” recorda. Da casa de família em Felgueiras, lembra-se dos irmãos, 5, todos rapazes. “A minha mãe dizia com orgulho que a única saia lá de casa era ela.” Alguns já morreram, mas a memória permanece.
Sonhava ser padre de paróquia, trabalhar com jovens e até fazer missões em África, mas Deus, ou o destino, trocaram-lhe as voltas e incumbiram-no de outra missão: a de acompanhar pessoas doentes, hospitalizadas e os seus familiares. É aqui neste momento de fragilidade que encontra “tesouros”, porque “o sofrimento é um lugar de encontro com a intimidade.”
Desdobra-se em mil tarefas e por isso não tem tempo para os hobbies, mas se tivesse, gostava de ter um pedaço de terra para se entreter e umas galinhas para porem ovos, “talvez na reforma”, avança como quem já sonha com isso.
Vai ficar por Lisboa, “já estou cá há muitos anos”. Também já sente Lisboa como sendo a sua terra, mas há outra razão; “o clima encanta-me”.
Felgueiras é lugar de visita e de reencontro com as raízes e a família que, entretanto, se multiplicou várias vezes. É lá, que se encontra no meio dos seus e recorda a criança que foi, embora sinta que ainda hoje há um menino dentro de si que teima em tornar os dias mais leves, com aquela simplicidade que só as crianças sentem.
Ser padre na área da saúde foi um destino pensado?
Pe. Fernando Sampaio: Não, foi por acaso. Nunca tinha sequer pensado na área da saúde. A minha ideia era trabalhar numa paróquia, lidar com jovens e se calhar fazer missões em África. Pertenço à Ordem de S. Vicente de Paulo que desenvolve vários trabalhos nesta área. A minha orientação era outra, mas quando em 1985 fui ordenado Padre acabei por ir para o IPO.
Como é que isso aconteceu, conte lá essa história…
Pe. Fernando Sampaio: Um colega estava para ir para capelão do IPO, mas a resposta demorou muito a chegar e ele aceitou, entretanto, um trabalho nos EUA. Quando a resposta veio já ele não podia e perguntaram-me a mim se queria ir. Tudo começou aí, por acaso.
Como foi trabalhar num sítio onde as pessoas estão tão frágeis?
Pe. Fernando Sampaio: Foi uma espécie de doutoramento em humanidade e uma descoberta da pessoa humana. Na fragilidade eu acabei por descobrir tesouros no interior de cada pessoa. Muitas vezes temos receio de lidar com o sofrimento, mas este é um lugar de encontro com a intimidade das pessoas. Aprende-se a desvalorizar muitas coisas que o nosso mundo valoriza.
Mas, acaba por vir parar à capela do Santa Maria…
Pe. Fernando Sampaio: Sim. O capelão que estava aqui há 25 anos tinha completado os 70 anos e estava adoentado. Pediram-me para vir para cá e aceitei.
Gostava de estar no IPO?
Pe. Fernando Sampaio: Sim, gostava. É mais pequeno e bastante familiar. Tinha grande estima pelas pessoas e sentia nelas estima por mim. Na altura que me vim embora a administradora até me disse, “então você vai lá para aquela coisa que é santa Maria?”.
Podia não ter aceitado…
Pe. Fernando Sampaio: Podia, mas aceitei o desafio que a igreja me lançou.
E o que encontrou?
Pe. Fernando Sampaio: Uma casa dividida entre várias realidades; um hospital de referência com vários serviços; pediatria, cuidados intensivos, internamento, a faculdade, a rotatividade das pessoas que é enorme e exige que estejamos sempre a reconfirmarmo-nos. Já estou cá há tanto tempo e às vezes ainda me perguntam, “quem é você?”
Foi um caminho difícil?
Pe. Fernando Sampaio: Sim. Quando se chega a um hospital é necessário criar relações e criar confiança nas pessoas e isso demora muito tempo. No IPO tive um colega que me apresentou às pessoas, aqui não tive ninguém. Foi mais solitário, mais custoso.
Onde é que o chamam mais?
Pe. Fernando Sampaio: Nós tanto somos chamados como tomamos a iniciativa de visitar os doentes.
A espiritualidade é um assunto sério e nós, tendo em conta o conceito holístico de saúde, se podemos falar em saúde física e mental também podemos falar em saúde espiritual e todas concorrem para o bem-estar da pessoa. A espiritualidade surge ainda de forma mais vincada quando o sofrimento é maior ou quando se está em final de vida. Nesse momento, surge como uma urgência. As pessoas chamam e vamos, mas tentamos passar pelos serviços para aproveitarem a nossa presença e para saberem que têm direito à espiritualidade quando quiserem. O objetivo é acompanhar as pessoas no seu processo para os ajudar na recuperação.
E é possível dar respostas a todos os que precisam e querem?
Pe. Fernando Sampaio: Somos só três e para o Centro Hospitalar é pouco. Se quiséssemos fazer o trabalho de assistência espiritual como um processo individual e personalizado, não era viável.
E como é lidar com o sofrimento dos outros?
Pe. Fernando Sampaio: Todos nós somos terapeutas feridos; feridos nos afetos, no corpo e na alma e, naturalmente, que a ferida dos outros nos fere a nós também. Não é por acaso que as pessoas fogem dos hospitais e de visitar doentes, mas eu encontro nisso não um fardo, mas uma oportunidade para entrar em comunhão com a pessoa. O bem que lhe faz à saúde a mim dá-me uma esperança e um sentimento de amor tremendo.
Alguma história que queira partilhar?
Pe. Fernando Sampaio: Uma vez encontrei um colega que estava muito doente. Estava a fazer tratamentos, mas já não havia possibilidade de cura e ele encarou a fase terminal. Tivemos uma conversa onde ele me disse que vivia numa relação de dia a dia. Apenas fazia planos para o dia seguinte ou, no máximo, com o prazo de uma semana. Disse-me que tinha encontrado nisso uma liberdade, uma paz interior muito grande e eu perguntei-lhe o que sentia nessa liberdade interior. Respondeu-me que era uma esperança e uma alegria fantástica.
Ele estava a escrever o último capítulo da sua vida de uma forma tão bonita e poética que fiquei encantado.
Lidar com a morte não é fácil…
Pe. Fernando Sampaio: Vivemos num tempo que enclausura a morte. Tiramos a morte do nosso quotidiano e as pessoas morrem sozinhas. Mas estas coisas fazem-me pensar que a morte faz parte da minha vida. Está presente no meu corpo, na minha vulnerabilidade e fragilidade e um dia virá visitar-me. Pela minha fé eu sei que ela me dará uma oportunidade que é a de passar deste mundo para o de Deus.
Mas, e a saudade que temos de quem morre? Como se lida com ela?
Pe. Fernando Sampaio: Depende do que você considera. Se vê aquela pessoa como um acrescento a si, é natural que sofra, mas se for antes um dom que lhe foi dado então graças a Deus porque mo deste um pouquinho e agora toma conta dele.
Essa capacidade de ver as coisas dessa maneira foi uma coisa que aprendeu enquanto padre ou já era assim?
Pe. Fernando Sampaio: Vamos aprendendo com a vida. Naturalmente que a dimensão da minha fé me leva a isso. A minha fé é fundada numa coisa muito bonita que é a visão de que Deus é amor. Onde há Deus, há amor como diz no evangelho de São João. Deus não julga, somos nós é que o fazemos. Eu agradeço muito à minha mãe que me transmitiu a fé com esta ternura e calor humano.
Perdi três irmãos, um ainda bebé, outro aos 18 anos e o último aos 49 anos. Estas situações da minha vida também me ajudaram a ver as coisas assim.
E o sofrimento?
Pe. Fernando Sampaio: O IPO pôs-me uma interrogação fundamental que eu tive de resolver por mim; Porque é que sofremos?
E a que conclusão chegou?
Pe. Fernando Sampaio: Como é que eu concebo deus e amor e como integro aí o sofrimento? Foi um caminho que eu tive de fazer. Esta questão interpelou-me fortemente porque as pessoas questionavam, onde está Deus? Que mal fiz eu a Deus para estar aqui? Porque sofro tanto se Deus é amor?
E chegou a uma resposta?
Pe. Fernando Sampaio: Tinha as minhas respostas inicialmente. Não pode ser Deus a causa do meu sofrimento. Um pai que ama não quer mal ao seu filho, antes pelo contrário. Então fiz um curso pastoral da saúde em Madrid e ajudou-me muito a clarificar a minha resposta. Sofremos porque o nosso corpo é frágil. Não é porque Deus nos castiga, isso é um pensamento maléfico e está a atribuir a Deus sentimentos que Ele não tem. As crianças e os animais não fizeram mal a ninguém e sofrem, porque somos feitos do mesmo barro e este tem fragilidades. Como é que eu meto a fé nisto tudo? Ela não está do lado do sofrimento, mas sim no lado que luta contra o sofrimento. Como uma âncora que me agarra a um propósito de vida.
Como é que se deu essa vontade de se tornar Padre?
Pe. Fernando Sampaio: Teve a ver com o modo como a minha mãe me transmitiu a fé. O gosto com que falava de Deus e de alguns padres amigos. Ela e o meu avô estiveram na ação católica e, apesar de não saber ler, ela era espantosa no sentido da transmissão desses valores e o bichinho foi crescendo dentro de mim.
Consegue identificar um momento em que a escolha se deu?
Pe. Fernando Sampaio: Sim. Foi quando o meu irmão mais velho morreu. Tinha chegado um padre novo à minha aldeia e no final da missa passei pela sacristia. Ele perguntou-me como é que eu me chamava e se eu queria ser padre. E pronto, foi daí que nasceu esta vontade de ser Padre.
Teve de abdicar de umas quantas coisas. Essa escolha foi pacífica?
Pe. Fernando Sampaio: Não foi! Quando cheguei aos 50 anos questionei-me; “o que é feito da minha vida? Não tenho filhos, não vou ter descendência, tudo vai morrer comigo”. A gente tem de fazer esse luto e saber viver em solidão. Aos 50 anos arrumei esse assunto.
Como foi o seu percurso?
Pe. Fernando Sampaio: Entrei para o seminário, na Congregação dos Padres Vicentinos, para fazer o 5º ano, em Felgueiras. Estávamos em 1974. Fiz o curso complementar em Braga e segui para a Faculdade no Porto onde estive durante 2 anos. De seguida, vim estudar teologia para a Católica e fiz uma espécie de pós-graduação em Catequética. Fui ordenado padre em fevereiro de 1985. Mais tarde decidi estudar psicologia clínica. Sou psicólogo clínico não praticante.
A psicologia clínica e a fé complementam-se?
Pe. Fernando Sampaio: Ajudou-me muito a mim para poder ajudar os outros. As vezes as pessoas trazem problemas que julgam ser de natureza espiritual, mas que não o são. Às vezes são problemas de perturbação de personalidade.
Algum caso particular?
Pe. Fernando Sampaio: Recorda-me de uma pessoa que andava mal e que até pensava que já nem salvação tinha. Acontecia-lhe nos momentos mais sagrados, missa e nos momentos de congregação, virem-lhe à cabeça ideias obsessivas e perversas com figuras divinas. Dizia que tinha o demónio com ela e até já lhe tinham falado em fazer um exorcismo. Na realidade o que ela tinha era princípio de demência de natureza obsessiva. Identificado o problema encaminhei-a para um psiquiatra. Ela ficou muito aliviada.
E o que faz o padre nos seus tempos livres?
Pe. Fernando Sampaio: Se eu tivesse tempo livres…a minha vida é extraordinariamente ocupada. A gente acaba por se meter em muita coisa. Dava aulas na Católica, psicologia da religião, mas vou deixar de dar. Criámos um gabinete de escuta na Diocese de Lisboa onde sou o responsável. Este atendimento funciona por marcação e temos três gabinetes; em S. Mamede, Oeiras e no Colombo.
Quem procura este atendimento?
Pe. Fernando Sampaio: Pessoas que precisam de desabafar. Que passam por situações de luto leve outras que trazem problemas de natureza espiritual.
Somos um grupo variado com psiquiatra, psicólogos e padres. Ajudamos no que podemos. Sou ainda responsável pela Pastoral da Saúde da Diocese e responsável pelos capelões a nível nacional.
Hipoteticamente falando; se tivesse tempo livre, o que gostava de fazer?
Pe. Fernando Sampaio: Gostava de ter um jardim para plantar umas couves e ter umas galinhas e uns ovos. Mas isto é mais uma fantasia que outra coisa. A minha vida é bastante ocupada espero que quando me reforme seja mais calma.
Sei que tem uma mota…
Pe. Fernando Sampaio: Uso moto como transporte alternativo ao carro e, na cidade, ajuda a ultrapassar as filas de trânsito. Para além disso, é elétrica e faz face ao aumento dos combustíveis e, ao mesmo tempo ajudo na manutenção do ambiente. Cuido da nossa casa comum.
E por falar em casa, vai voltar para Felgueiras?
Pe. Fernando Sampaio: Fico em Lisboa. Estou aqui desde 1979, Lisboa é a minha terra. O que me encantou em Lisboa foi o clima. Sofria muito com frieiras nas mãos e aqui nunca mais tive. Tenho aqui a minha vida.
Costuma visitar a sua terra?
Pe. Fernando Sampaio: Sim. Todos os anos organizamos um almoço em família. Ora na casa de um, ora na casa de outro. É um momento de festa e de celebração.
Dora Estevens Guerreiro
Equipa Editorial