O som harmonioso do antigo relógio alto da sala de reuniões marca o balanço do pouco tempo que temos e que sempre voa quando ouvimos pessoas assim diante de nós. O relógio marca a rapidez com que tudo passa, sem que consigamos agarrar todos os momentos. Marca o tempo que parece arrastar-se de lento nos grandes momentos de ansiedade, como acontecem tantas vezes que tem de tomar decisões de vida perante um doente que lhe entra pela Urgência e outros tantos já esperam pelo minuto em que podem ser chamados. Nunca há o tempo certo para interromper o que faz, porque há sempre demasiada pressão.
Chega vestida de fato verde, de croques e o casaco polar azul escuro com a imagem de Santa Maria, nome do vasto Hospital.
Olhos raiados de vermelho, afinal passou uma noite em claro, das muitas habituais, mas está, no entanto, sempre imaculada, de cabelo liso e penteado, um lápis nos olhos já quase sumido e um colar original que poderia dizer ser a sua imagem de marca.
Olhar doce, voz calma e tom baixo, na primeira vez que a ouvi percebi a mistura de cansaço aliado à persistência para lutar pelo outro e convencer que o esforço vale a pena. Pessoa de causas, talvez esperasse que a Humanidade mostrasse o seu melhor lado diante da pandemia, mas se ilusões iniciais teve, sabe agora que foram apenas ilusões, porque à superfície surgiu o que mais dói e está recalcado em cada um que atravessou os últimos tempos.
Em pleno mês de janeiro, mês tão crítico, deu-me parte do seu tempo. Vem entre diversas situações de pressão que se aguçam à medida que as horas se arrastam para a noite.
O seu posto de trabalho está quase diariamente nos títulos dos jornais, referindo as longas esperas nas Urgências de Santa Maria e os protestos de quem chega ao Hospital e quer ver o seu caso resolvido.
O problema não é pouco importante, pela Urgência do Centro Hospitalar Universitário de Lisboa, muitos são aqueles que conseguem furar o esquema do Serviço Nacional de Saúde e ter uma consulta a muito baixo custo e sem precisar de marcar para dali a muito tempo. Outros tantos, porque têm pressa de resolver de imediato aquilo que para eles é urgente e não colocam em perspetiva que as queixas primárias não deveriam todas confluir num só espaço. O espaço que resolve as doenças mais agudas do país. Neste cruzamento de medos, doenças e corrida contra o tempo, como se lidera um Serviço de Urgência e se mantém um lado brando e afável?
Anabela Oliveira é a Diretora do Serviço de Urgência do CHULN, mas pertence à Direção desse Serviço há 20 anos.
Conheci-a melhor na última sessão das Job Talks, onde falou da realidade das Urgências num momento em que se vive a 5ª vaga da pandemia. Presença discreta e amável, não esconde o peso da responsabilidade de ter a coordenação das Urgências de tão gigante Hospital.
É emotiva e diz de forma pragmática e sem drama que “é como é”. Talvez devesse afastar-se mais das histórias de vida dos outros, talvez a sua entrega ao outro devesse ser mais comedida, talvez fosse bom para si ser menos voluntariosa. Mas não seria a Anabela Oliveira. Razão que explica ter ainda aceite, no passado ano, o convite do Professor João Eurico para lecionar a cadeira optativa de Medicina de Urgência, na Faculdade de Medicina da Universidade de Lisboa.
Licenciou-se na casa onde hoje me dá uma entrevista, enquanto visita comigo uma área onde nunca antes entrara.
Fez em Santa Maria o Internato geral, na Medicina IV, entretanto extinta. Foi lá que diz ter aprendido a ser médica, mas a alma de querer esta profissão vinha desde os tempos em que se sentava nos antigos bancos de madeira das aulas da Faculdade. Foi no estágio em Medicina Interna que percebeu as suas verdadeiras vocações e propósitos de vida.
De palavras comedidas sobre si própria, percebe-se, no entanto, que a prova final de acesso à especialidade, na altura mais conhecida pela prova do Harrison, foi mais que executada. Tinha criado o objetivo de tirar uma nota bastante elevada, pois decidira que, mesmo sabendo que queria a Medicina Interna, queria sentir que tinha a margem de manobra suficiente para escolher qualquer opção que quisesse. O exame correu-lhe muito bem, não o nega. Não só podia escolher a sua especialidade, como qualquer outra. A verdade é que, fiel que estava aos seus pensamentos desde o 5º ano da Faculdade, manteve a escolha de sempre e seguiu a sua Medicina que lhe era já interna ao coração.
Percorreu diversos hospitais para se decidir pela casa a optar como a final. Passou pelo Hospital de Santa Marta, hospital que nessa época era sobejamente conhecido pela qualidade da especialidade em Medicina Interna. Mas os seus mentores permaneciam em Santa Maria, desde os tempos em que os encontrara já enquanto seus professores. Regressou à sua casa mãe, Santa Maria, onde acabava a formação em Medicina I, com o médico Paulo Cantiga Duarte, orientador de formação.
Terminada a especialidade e com elevado mérito final, 18 eram os meses que lhe anunciavam que tinha de procurar em seguida estabilidade contratual. Época diferente e ainda mais instável que hoje, e ainda sem tanto mercado a explorar, a maior parte dos médicos ficavam sem perspetiva segura sobre o lugar onde se podiam candidatar a um emprego. Encadear de momentos que talvez nunca surjam ao acaso, um novo projeto assumia protagonismo e parecia trazer novas aprendizagens e esperança. O Hospital Fernando da Fonseca equipava-se de fortes equipas médicas que traziam consigo outros médicos de confiança. Anabela pertencia a uma destas equipas e recebeu o convite para integrar a nova equipa médica. O projeto era aliciante, prometia ser um desafio inovador. Ainda sem Serviço de Urgência aberto, nem internos, as equipas começavam a chegar e a constituir-se, dando início a novos grupos de trabalho que traziam know-how diferente de outras escolas médicas. Anabela fazia parte da equipa que começava o Serviço de Urgência. Olhando para esse tempo de começo, recorda como achava pacífico iniciar uma urgência num espaço novo que parecia meio perdido no IC19 e onde parecia que poucos chegariam pelo deserto em volta. Inevitáveis gargalhadas quando imaginamos que alguém possa ter pensado que uma urgência de um Hospital público não venha a encher subitamente. Uma semana depois o Serviço ficava sobrelotado de doentes. Na segunda-feira seguinte já tinha 100 doentes no SO. Assim ficou dois anos, a viver uma experiência que a prepararia para a vida. Sem peso ou cansaço que a demovam, continua convicta a afirmar que foram estes alguns dos melhores momentos da sua carreira profissional. A carreira começava para Anabela há pouco tempo e que a movia de tamanha vontade, onde aprendia com os seus pares, mas também com o que vivia com os próprios doentes. Montra real para o mundo, via pela primeira vez patologias que nunca conhecera ao longo dos anos da sua formação enquanto internista.
Abria finalmente um concurso para Medicina Interna I em Santa Maria. João Saavedra era mais um dos seus mentores, deu a Anabela a responsabilidade de uma Secção, de ter internos; uma "tira", ou seja, ficar responsável por uma secção com doentes e gerir internos. Tremendo crescimento de carreira, entendo depressa, o médico Saavedra entregava nas suas mãos o ónus de mais um novo passo de responsabilidade e expectável dedicação.
Assim começou mais um dos seus tão apaixonados papéis, a formação de internos. Sempre gostou de ser desafiada também pelos mais novos, que a procuraram tantas vezes para ser a sua tutora. Fala dos seus internos como pássaros em aprendizagem e cujo voo assistiu e zelou à distância. Muitos deles mantém-se ainda e para sua alegria em Santa Maria e na Medicina Intensiva. "Cresci muito com eles, porque eles puxaram muito por mim, o que lhes dei de técnica, a parte humana de falar com o doente e com as famílias foram eles também que me deram".
Era Carlos França que lhe lançava o repto de integrar a Direção do Serviço de Urgência, há cerca de 20 anos atrás. Não era qualquer pessoa que teria perfil para assumir tal papel. Dedicada e com forte foco na carreira, sabe que muitas vezes foram estas escolhas que colocou à frente de todo o resto na sua vida, à exceção do filho de 22 anos que não só a compreende profissionalmente, como se prontifica a ajudar e ir colocar as mãos no terreno, caso a mãe precise de apoio moral. Não se estranhe a oferta que não chega a passar da manifestação de intenção, mas que dá o conforto suficiente à mãe para saber que agora o filho também já assume o papel de cuidador.
Nos 20 anos em que viveu na Direção de Urgência, fez parte dos projetos de informatização, da implementação do protocolo da Triagem de Manchester (implementado em 1994 em Manchester, é um protocolo que tem como objetivo definir níveis de prioridade dos doentes que entram na urgência, identificar critérios de gravidade de uma forma objetiva e sistematizada, indicando a prioridade clínica com que o doente deve ser atendido até à primeira observação médica). Nessa mesma fase fez formação e aprendeu a dar formação, integrando novos conceitos ao Serviço de Urgência. Redefiniram-se depois disso as equipas e funções.
Na mesma medida em que acabou por aceitar dirigir o Serviço de Urgência, manteve a Consulta de Doenças Hereditárias do Metabolismo do adulto de que é coordenadora desde há quase duas décadas. A todos os pedidos de ajuda, assumiu a responsabilidade de tomar conta das causas e de lhes dizer que sim sem ter medo. Hoje e apesar de ter a mãe viva e com saúde, lamenta talvez não ter dito mais vezes sim à sua atenção à mãe que lhe pede só um pouco de tempo.
Foi nomeada para o Serviço de Urgência em março de 2016, ainda tinha um interno aos seus cuidados, Nuno Gaibino. Atualmente médico intensivista e internista em Santa Maria, e antigo aluno da FMUL. Fala dele como o último dos meninos crescidos que se deixa voar sozinho, mas a algum custo e com os afetos ao alto. Facto é que uma Diretora de Serviço não pode ser orientadora de formação, ainda assim não abandonou o seu último interno e seguiu com ele até que fizesse o exame final.
Sabe muitas vezes da incapacidade de angariar pessoas para dar seguimento a todas as áreas que abraça. Sabe como é difícil mobilizar profissionais para que tomem conta dos casos de pessoas com doenças raras, muitas vezes herdadas a gerações anteriores. Casos que precisam de cuidadores continuados que acompanhem os processos e a sua evolução, assumindo que é preciso dar muito de si para colmatar necessidades especiais, cujos reflexos são doenças graves e com dependências elevadas de terceiros.
A pandemia volta a invadir a nossa conversa, pois abalou igualmente esta Unidade. Havia que recolocar os doentes em novas alas, pois os espaços Covid eram por todo o lado predominantes. O cenário piorava na medida em que os próprios médicos que, até aí conseguiam acompanhar os doentes, estavam também eles alocados às áreas Covid e por isso eram "médicos de risco". Foi também neste cenário que nas fases iniciais da crise pandémica, novos laços sobressaíram e diferentes áreas médicas estendiam a mão para se ajudar entre si.
Dos casos urgentes que precisou de socorrer, um resolveu-se na ajuda conjunta dessas áreas. Outra vida perdeu-se, porque o corpo frágil cedeu à força da pandemia.
Tem dois pequenos telefones pretos antigos que tocam ininterruptamente. São telefones que funcionam como SOS no Hospital. Anabela olha para o ecrã e vai silenciando os contactos, não sem antes garantir que não precisa de sair a correr. "Tenho muito boas pessoas na equipa, somos é poucos, mas os que ficaram são muito bons".
Apreciadora de coisas simples, destaca como um grande momento o simples prazer de se sentar em frente ao Tejo, numa esplanada e poder ler o jornal, ou ouvir música e não ter o sobressalto de outro som adicional. Na semana anterior à nossa conversa, em pleno mês de caos nas Urgências, conseguiu ver uma das suas séries, conta-me feliz. Admito que não tive coragem de lhe perguntar se não terá sido apenas um episódio que conseguiu ver. Para lá da leitura lúdica que encara como privilégio, há também aquela que é fundamental na sua área, o estudo sobre guidelines atuais.
Poucas são as folgas que tem tido, essa é a verdade. Dos muitos bancos que faz de 24 horas seguidas, as folgas que se seguiriam, acabam por sair furadas, por motivos diversos. Sai muitas vezes de casa, lugar ao qual o seu filho diz com bom humor ser apenas um hotel, e corre para a sua casa principal, o Hospital onde vai muitas vezes ajudar a equipa.
Já o sabia da experiência do ano passado, mas janeiro é a prova de fogo. Não há descanso, não há equipas que cheguem para dar saída a tudo o que lhes é pedido.
Não é qualquer um que aguenta o terreno de um Serviço de Urgência, é campo de guerra com ameaça de estar minado a cada passo dado. Recorda bem um interno que tinha na sua equipa quando a pandemia se instalou em Portugal; em momentos mais relativos de calmia, dizia-lhe esse interno que "um dia iria para o seu lugar" e Anabela sorria na perspetiva de poder sim um dia delegar a responsabilidade a alguém. Pouco tempo depois, esse mesmo interno dir-lhe-ia que afinal já não queria a liderança, nem dada.
Conta-me que as equipas fizeram verdadeiros truques de magia, como a de encaixar 15 doentes em apenas 6 boxes para internados, única solução possível, ou então deixar-se-iam doentes à porta. À porta ficaram igualmente muitas ambulâncias, com bombeiros e doentes, alguns desesperados porque não cabia mais ninguém. Anabela e com tantos outros profissionais do SUC, médicos e enfermeiros, decidiu sair para a chuva e foi a cada ambulância fazer a triagem da triagem. Este movimento permitiu-lhe salvar algumas vidas.
Nestas tantas manobras de magia e capacidade humana, há agora para além da pandemia, várias áreas médicas a funcionar e muitos doentes graves, de patologia oncológica em particular e que não têm tempo para esperar por uma fase mais branda.
A poucos dias do Natal pensei na Anabela Diretora da Urgência que nos mostrou o estado de uma sala, após terem entubado um doente com Covid e o estado em que a sala ficou. Lembrei-me dos olhares de cansaço e de uma certa paixão solitária no olhar. Enviei-lhe um mail a dizer que se precisasse de mão de obra, teria uma equipa inteira a querer ir para o terreno ajudar, nem que fosse para limpar o chão da sala de um qualquer doente que, graças a uma rápida intervenção, conseguira escapar da morte.
O que é que guarda nas memórias mais fortes da pandemia?
Anabela: Ainda falamos entre colegas desse tema e o grande embate foi o primeiro de todos. Atualmente já não estamos a viver uma situação igual, mas tem ainda uma grande pressão. Mas março de 2020 foi para mim o pior momento, pois não sabíamos com o que contávamos. Perguntava-me como íamos nós alterar a Urgência toda e reconfigurá-la, que novos circuitos criaríamos. Este Hospital não está estruturalmente preparado para receber uma pandemia, como iríamos então reinventar a organização? Não sabíamos como lidar com os casos suspeitos. A própria DGS não sabia ainda que medidas se deveriam adotar e nós íamos aguardando e encontrando soluções à medida de cada situação. Lembro-me de estar num dos meus bancos de 24 horas e andar com o enfermeiro Carlos Neto e com o Dr. Álvaro Pereira a escolher lugares para as ventilações não invasivas que já não tinham um lugar concreto para serem feitas.
Há momentos no caos em que se pensa em fugir?
Anabela: Sim. Cheguei muitas vezes a casa e só tinha vontade de chorar. Pensava que não ia conseguir. O meu filho assistiu a isso tudo e ouvia-me. A fase em que não sabia como alterar as regras e os circuitos tirou-me o sono e deixou-me mal. Mas depois tive grande apoio da equipa da Urgência, mas também da Task Force que foi criada na altura da pandemia e que reuniu incríveis pessoas como o Professor Melo Cristino, o Dr. Álvaro Pereira, o grande acompanhamento da Administração e do Dr. Luís Pinheiro. Foi muito difícil, porque mudámos muitas vezes de lugares, mas fomos sempre conseguindo. E para isso os enfermeiros foram fundamentais nos processos de montagem das áreas de trabalho. Janeiro do ano passado foi o mês que nenhum de nós vai esquecer.
Não havia espaço para mais doentes, pois não?
Anabela: Não tínhamos um mínimo espacinho. Quando o Hospital Fernando Fonseca teve um problema com o fornecimento de oxigénio, as ambulâncias começaram a chegar e a parar à porta, com filas e filas. Nas ambulâncias havia doentes à espera de dar entrada. Nessa altura aconteceu o que eu já previra. Falei com o Enfermeiro Carlos Neto e disse-lhe que íamos fazer triagem para a rua, fomos a cada ambulância ver cada caso e fazer a triagem. Não sabíamos que doentes ali estavam estagnados, não sabíamos a gravidade de cada caso e não tínhamos onde os receber ou colocar.
Diante deste cenário em que nos recordamos bem das filas de espera à porta de Santa Maria, com tantas ambulâncias, pergunto como fica um médico cuja missão é querer salvar quem lhe chega às mãos?
Anabela: Não se fica bem. Vamos para casa e não vamos confortáveis. Passados todos estes meses ainda tenho as pessoas da equipa esgotadas e a dizer que não aguentam de cansaço. Muitas vezes chorámos ao chegar a casa. Sabe porquê? Não conseguimos fazer tudo bem feito. Damos o nosso melhor, mas não conseguimos fazer tudo, porque os doentes são muitos e nós somos poucos. O nosso dia não acaba quando saímos daqui. Mas muitas vezes nem foi preciso sair daqui. Recordo-me de uma noite em que uma médica minha colega chorava copiosamente porque era o terceiro óbito que fazia de seguida, porque ela simplesmente não conseguia fazer mais. Penso que ainda não conseguimos assimilar tudo o que nos tem acontecido, sabe? Ainda estamos a passar pelo meio da tempestade.
Estes momentos também nos têm colocado novos dilemas éticos e ainda estamos a decidir com eles.
Que dilemas?
Anabela: Agora temos doença menos grave da Covid, graças à vacinação. Dos 40 mil casos em média diários, se não fosse a taxa de vacinação e a dose de reforço, certamente que teríamos doentes à entrada do Hospital e não teria capacidade de atender sequer os que necessitassem de oxigénio. Mas ainda assim esta variante é tão transmissível que temos doentes positivos em tudo quanto é lado, nas pulseiras amarelas, nas laranja. Temos doentes com enfarte que são positivos, temos um outro com AVC, mas que também tem Covid, temos a doente jovem que tem uma patologia urológica, mas tem que vir para cá porque é aqui que existe Urologia, no entanto é mais um caso positivo. Depois não tenho espaço para todos no covidário e, no entanto, as doenças principais já não são a urológica, neurológica ou cardiovascular. É a doença por SARS-CoV2. A angústia é que diante do SARS-CoV, o foco principal é este, e só depois as outras doenças. Ora isso significa que com estas duas doenças em simultâneo já não serão tratados com a mesma eficácia. Todos estes casos foram só nesta semana. Na passada semana tivemos um politraumatizado muito grave e que precisava de intervenção cirúrgica urgente e estava também positivo. Nestes casos há que fazer uma intervenção neurocirúrgica de urgência e logo se vê como reagimos a seguir. Mas são tudo decisões que pesam.
Para alguém das vagas da pandemia, assistimos novamente a outra grande vaga, a do medo. Ela adiou a vinda de muitos doentes que quando chegam vêm já mais doentes?
Anabela: Assistimos muito a esse cenário, principalmente o Oncológico. Muitas das equipas médicas têm aliás reivindicado que precisam de voltar a ver os seus doentes, a fazer rastreios e a dar o habitual seguimento, precisamente porque senão as pessoas pioram muito e depois pode ser tarde demais para os doentes.
E a esta grande parcela de contas de falta de equipas para tantos casos clínicos, tudo piora quando veem parte dessas equipas a saírem para o privado e de forma mais recorrente nos últimos meses.
Anabela: A área da Medicina Interna é a que mais está lesada e por vários motivos. Uns vão de facto para o privado, outros estão só com casos Covid, outros pediram uma pausa, porque já não conseguem dar mais de si. Este grupo de pessoas tem sido particularmente fustigado na pandemia.
E como é que se leva um grande navio quando dele começa a saltar a própria tripulação?
Anabela: É muito difícil, porque neste momento as pessoas sentem-se muito zangadas. Os profissionais estão zangados uns com os outros. Há um misto de frustração e reivindicação. Uns sentem que já estão a dar há muito tempo e que agora devem ser priorizados e apoiados. Mas os outros também se queixam de falta de condições. Se em janeiro do passado ano tivemos muitas especialidades a ajudar-nos muito, em espacial a Pediatria que nos enviou os seus internos que são muito bons, desta vez não tivemos mais ajudas. Se alguma coisa boa houve na pandemia foi a entreajuda e o apoio das especialidades. Agora como houve uma retoma de toda a atividade médica, eles já não podem ajudar. E as pessoas estão muito desmoralizadas e não podem dar mais do que estão a dar.
Como é que se motivam pessoas que estão com um cansaço moral e físico tão estremecido?
Anabela: Tem que se motivar de várias formas. Agora na Medicina Interna é muito difícil porque estamos na fase em que temos de apanhar os cacos, é quase “histórico” na nossa instituição ficarem vagas por preencher de Medicina Interna. Há pessoas novas que estão nos Serviços e têm a responsabilidade de motivar e chamar os outros. É preciso fazê-los passar a mensagem que deve ser positiva. Também os diretores de cada Serviço têm essa responsabilidade, mas o que sinto é que nos falta uma camada geracional do meio e que seria o ponto de equilíbrio entre a motivação e a experiência. Na minha equipa de banco, entre mim e o meu segundo elemento, existe uma diferença de 25 anos.
Precisamos de continuar a seduzir e a aliciar novos internos. Mas há outro ponto, os que ficaram e não saíram do barco têm que ser muito estimados e acarinhados, precisam de se sentir satisfeitos para só assim motivar os mais novos. Veja o seguinte, quantos mais saem, os que ficam trabalham cada vez mais. E mais cansados ficam, porque os doentes não diminuíram. Aqueles que ficaram são muito bons, mas precisam que apostem neles. Temos de motivar logo nos anos clínicos os nossos futuros médicos, ou seja, os nossos estudantes. Outro elemento importante, e que foi visto muito tempo como um fator de menor aprendizagem, é enviar estudantes para as Urgências, para começarem a sentir o pulso. Nos últimos tempos essa ideia já mudou, aliás o Professor Joaquim Ferreira lançou-me o repto no ano passado de dar uma componente mais clínica e prática aos nossos estudantes e eu acho que resultou bem.
Foram os estágios de verão para tentar colmatar algumas falhas de aprendizagem da clínica nestes dois anos letivos de pandemia.
Anabela: Foi isso mesmo e os alunos pareciam gostar imenso. Andavam atrás de mim e faziam perguntas. Fizeram-me lembrar como eu era enquanto estudante, sempre de caderninho a andar para trás e para a frente a perguntar e a escrever tudo.
E vê esse empenho nas gerações mais novas?
Anabela: Vejo! Eles acompanham tudo e são muito ativos, "sim, Dra. Anabela, vou já fazer" e lá vão eles. Mas tenho noção que há pessoas com menos compliance que se assustam quando entram na Urgência. É um lugar onde se percebe bem a responsabilidade de ser médico, porque acarreta grande autonomia de ação, envolve a técnica, a questão humana, a relação com a família. É uma escola no seu todo. Eu desde aluna sempre acompanhei os meus Assistentes e aprendi imenso na Urgência. Depois tenho internos e noto que alguns quando entram vêm com caras muito assustadas. A todos os que chegam tento sempre transmitir-lhes que podem contar comigo se tiverem alguma aflição.
Há uma frase René Leriche que nunca mais esqueci desde que a ouvi pela primeira vez, “todos os cirurgiões trazem dentro de si um pequeno cemitério onde vão rezar, de tempos a tempos.” Também carrega alguns nomes que perdeu?
Anabela: Alguns nomes guardo bem. (Sorri) Vejo bem alguns rostos.
O bom médico é aquele que sabe recordar as perdas para saber os seus limites?
Anabela: É necessário não esquecer essas perdas.
O que é mais preciso comunicar para se inverter esta afluência às Urgências de tantos casos que nunca passam da pulseira verde ou azul?
Anabela: Este problema vem desde sempre. Somos um dos países da OCDE que mais episódios de urgência tem. Somos dos que mais consomem o serviço, sem precisar de referenciação. A pessoa acha que tem uma situação aguda e vai. Porque vem o doente agudo não urgente ao nosso Serviço? Não devia vir! Mas devia ser visto noutro nível de cuidados e esses são os cuidados primários. Nós, com a pandemia, conseguimos aproveitar uma janela de oportunidade, aumentamos a nossa ligação aos cuidados primários. Definimos um protocolo dos doentes verdes e azuis para as unidades familiares. Mas nem sempre funciona, porque os doentes protestam, mas alguns vão. O que se passa é que não temos equipa para todos os doentes que aqui nos aparecem. Temos dois espaços de intervenção, a urgência Covid e a comum. Uma Urgência Polivalente como a nossa e um Centro de Trauma como o que temos, tinha à época pré-pandemia, 50% dos doentes verdes ou azuis (nas prioridades das pulseiras), imagine o que isso quer dizer. Não podia ser! O que é curioso é que os doentes verdes são os que mais protestam. Devíamos ter uma pré-triagem, para tentar dissuadir os verdes. E eu tenho pessoas da equipa médica que até querem fazer isso, dissuadir esses verdes, mas imagine que isso os coloca em risco físico? Eu tenho receio pela integridade dos meus profissionais. Já escrevemos muito, demos muitas palestras, mas a comunicação ainda não está a ser eficaz. Mas é também importante perguntar por que razão não vão estas urgências aos cuidados primários, como os médicos de família. Primeiro, muitos deles nem se lembram que há esses centros, outros porque quando têm disponibilidade já é em horário tardio e os centros já fecharam. Depois porque imaginam que precisam de exames e que nos cuidados primários nem exames se fazem. Alargar os horários dos cuidados primários e dotá-los de meios complementares básicos, como o hemograma e raio-X, já poderia trazer novas soluções. Por fim podemos ter médicos mais velhos e diferenciados e que já têm a experiência para não pedir exames, assim retirariam muita afluência fazer um fast-track, ou seja, retirar os doentes com gravidade menor.
Dizia em off que não ficará eternamente na Direção da Urgência. Alguma notícia que nos queira dar?
Anabela: Em março deste ano faço 6 anos de Direção de Serviço. Foi um lugar onde acumulei muitas horas. Desde os meus 30 anos dediquei-me muito a este Serviço. Abdiquei da minha família e do meu próprio filho, para estar aqui. Agora confesso-me cansada, mas tenho feito tudo para ir planeando as coisas devagar. Agora, não faz parte do meu património deixar as coisas nos momentos críticos, mas já está na altura de vir alguém melhor que eu. Contudo, este será o meu Serviço sempre, por paixão. Mas sabe, olhando para trás, não mudaria nada.
Joana Sousa
Equipa Editorial