Etimologicamente a palavra dor deriva do latim dolōre, que significa sofrimento, sensação penosa ou desagradável, aflição, mal ou padecimento.
Segundo a Associação Internacional para o Estudo da Dor, a dor é caraterizada por uma experiência emocional e sensorial desagradável associada a dano tecidual ou potencial, ou descrita nos termos de tal dano.
Se para alguns autores foi a evolução da história da dor ao longo dos séculos a contribuir para a estruturação da história da medicina, para o psiquiatra francês Fabrice Lorin a história da dor progrediu lado a lado com a história do homem, do conhecimento e da própria medicina.
De facto, desde os tempos mais remotos da humanidade que o homem (de acordo com o espaço temporal, físico e sociocultural onde estava inserido) procurou sempre, através de várias práticas e procedimentos caraterizados por culturas específicas, atenuar os sintomas do sofrimento e da dor de que padecia.
Os primeiros povos que habitaram o planeta não associavam que as dores que sentiam fossem de origem física ou fisiológica ou então identificavam duas espécies de dor: a que era originada por um acidente exterior ao próprio corpo como uma fratura, uma queimadura ou uma ferida e a dor interna do mesmo. Esta, quer fosse uma dor de cabeça ou abdominal, que naquela altura não era entendida como tal e não encontravam explicação para o seu aparecimento.
A dor, durante muitos séculos, foi interpretada como um castigo proveniente dos deuses ou dos anjos maus, como consequência das relações interrompidas pelos homens entre estes e o divino. O doente só ficava restabelecido após a identificação da personagem sobrenatural, efetuada pelos curandeiros e feiticeiros, que com eles estabeleciam pactos através da feitiçaria, mediante oferendas e sacrifícios.
A feitiçaria, o ocultismo ou a magia foram empregues e orientaram as relações sociais e políticas, durante vários séculos, em muitas das antigas civilizações e ainda hoje se mantêm, em algumas das nossas comunidades. Temos, como exemplo, o célebre Oráculo de Delfos, na Grécia, situado no subterrâneo do Templo de Apolo. De acesso restrito a sacerdotes e às Pitonisas, eram aí efetuadas sessões de culto onde inalavam vapores provenientes de plantas, mas também gases de origem de falhas vulcânicas, tendo as suas premunições orientado e influenciado as decisões políticas e sociais ao longo de várias gerações.
Nos países europeus, a dor foi encarada durante muito tempo como um castigo divino proveniente de Deus ou dos demónios, sendo necessário a purificação do espírito e da alma, por intermédio de punição e de rezas. Para cada tipo de sofrimento havia um intercessor entre a pessoa doente e a divindade, isto é, para cada enfermidade havia um santo distinto. Por exemplo, quem sofresse de dor de cabeça rezava-se a Santo António, para a cegueira orava-se a Santa Luzia ou a S. Claro, para a loucura recorria-se a Santa Berta.
Se para o alívio do sofrimento e da dor fossem utilizadas plantas e cataplasmas, assim como a magia, bruxarias e rituais para atenuar as suas agonias, quem utilizasse estas práticas era fortemente perseguido e punido, pois ia contra as normas estabelecidas.
Acreditava-se igualmente no poder dos reis em relação à cura de enfermidades, sobretudo em França, onde Luís XIV terá tocado e curado mais de 2.500 pessoas, de onde surgiu o pensamento “O Rei toca-te e Deus cura-te”.
Para que se chegasse ao alívio ou à cura de muitas doenças, muitas vezes eram utilizados amuletos e relíquias, práticas que muitas delas chegaram até aos nossos dias. Existem vários relatos históricos de desmembramentos de corpos de santos para serem posteriormente reservados como relíquias, como aconteceu com Santa Isabel de Turíngia. Conta ainda a lenda que, “o Infante D. Carlos (1545–1568), Príncipe das Astúrias, filho de Filipe II de Espanha (1527–1598), por ter ficado doente após ter caído das escadas, introduziram na sua cama e a seu lado, a múmia do Frade Diego de Alcala”. O príncipe melhorou o que muito auxiliou para que o processo de canonização fosse abreviado.
Temos conhecimento que desde os tempos mais antigos eram praticadas cirurgias de modo a aliviar a agonia dos doentes, onde eram utilizados vários métodos para que o sofrimento fosse o menor possível, o que na maioria das vezes não era conseguido, como o “Estrangulamento parcial”, obtido por asfixia até à inconsciência, altura em que o cirurgião intervinha, a “Concussão cerebral” obtida golpeando a cabeça do doente com um pedaço de madeira e com a força suficiente para quebrar uma amêndoa, mas sem provocar fratura do crânio; compressão das carótidas e das jugulares, compressão de troncos e raízes nervosas, o frio e congelação de regiões do corpo humano e a utilização de plantas como a Esponja Soporífera (Ópio, Beleno, Atropa e Mandrágora), a Cannabis, a Mandrágora Beladona e o Ópio.
Em vários documentos é ainda referida a utilização destas plantas nas civilizações mais primitivas. A referência mais antiga ao Ópio data de há 5.000 anos, na Suméria. O Ópio que terá sido utilizado desde a Grécia Antiga até ao Império Romano, foi introduzido na Europa por altura das Cruzadas, nos inícios do séc. XI. A partir da papoila desta planta foram retiradas várias substâncias como a Morfina ou a Papaverina utilizadas para tratamentos medicinais. Nos séc. XVIII e XIX verificou-se um desenfreado consumo e dependência desta planta em milhares de pessoas, entre elas, com um nível social e cultural mais elevado como músicos, artistas, médicos e escritores entre eles Allan Poe, Baudelaire e Óscar Wilde.
O médico e alquimista Paracelso (1493–1541), figura de referência na área da Medicina, referia que as plantas tinham na sua forma a indicação terapêutica. Difundiu o consumo do Ópio.
Na cultura egípcia (3000 a.C.), onde na medicina o coração era considerado como o órgão central do organismo, os médicos utilizavam os narcóticos e a Pedra de Mênfis como analgésico nas cirurgias que efetuavam. O Papiro de Ebers, encontrado em Assasif nos finais do século XIX, elaborado cerca de 1500 anos a. C. e o primeiro a ser traduzido, descreve várias fórmulas e misturas vegetais para o tratamento de várias doenças, entre elas o Ópio que era usado como tranquilizante em crianças.
Os antigos herbários encontrados em escavações arqueológicas referem a utilização de plantas medicinais no tratamento de várias doenças, como o herbário que inclui 760 plantas medicinais organizado pelo médico indiano Susruta no ano de 1500 a.C. Em Luxor, no Egito, George Ebers encontrou em 1872 o papiro onde explica a forma terapêutica da utilização de 700 plantas medicinais.
Também na atual América Latina, os nativos utilizavam a magia, a feitiçaria e o misticismo, para além de inúmeras plantas como forma de analgésicos e sedativos empregues inclusivamente na altura do parto. Utilizavam também a Coca que reconheciam que lhes adormecia a língua e os lábios. Praticavam ainda a sangria.
O médico grego Pedanius Dioscórides (c.40-c.90) formado na Alexandria e cirurgião do Imperador Nero, relata um xarope extraído da papoila dormideira. Referiu ainda o poder do vinho de Mandrágora na perda de sensibilidade para que os médicos ficassem possibilitados de realizar cirurgias. Foi o primeiro a utilizar a palavra anestesia.
Também Plinio, o Velho (23-79), considerado o primeiro a descrever a Pedra de Menfis possuidora de propriedades analgésicas, referiu-se à Mandrágora como forma de “analgesia” para cirurgia e outras intervenções.
Na civilização hindu existem referências a bebidas que reagiam como tranquilizantes, como antídotos contra o veneno de serpentes e para uma maior concentração intelectual. Em 1950 foi empregue a Reserpina, substância extraída da Rauwolphia, utilizada mais tarde para o tratamento da Hipertensão Arterial.
Hua Tou (110-207), um dos mais importantes e idolatrados médicos da medicina chinesa, considerado o pai da anestesia antiga, viveu durante a dinastia Han e na era dos Três Reinos. Desenvolveu várias técnicas na área da medicina, da cirurgia, da ginecologia e da acupuntura. A fim de manter os pacientes insensíveis à dor para a realização cirurgias intra-abdominais, administrava-lhes Ma Fei San, que se baseava numa mistura de Cannabis, outras plantas alucinogénias e vinho.
Também a Medicina Árabe, uma das mais desenvolvidas da europa ocidental, de vastos conhecimentos, foram importantes investigadores e impulsionadores de um novo conceito acerca da dor e dos sofrimentos causados pelas doenças. Desenvolveram conceitos e técnicas cirúrgicas inovadoras, investigaram a fitoterapia, a alquimia, a química, o desenvolvimento de medicamentos e o conceito da farmácia. Para além de terem sido fundamentais no ensino da medicina, foram os fundadores dos primeiros hospitais, de universidades e de bibliotecas. Muitas obras de inúmeros médicos árabes foram tão importantes, que foram utilizadas em várias escolas europeias até ao século XVII.
Os árabes utilizaram a Esponja Soporífera como anestesia, que continha igualmente drogas hipnóticas e analgésicas, para a realização de cirurgias.
De modo a aliviar o sofrimento do homem, foi criada e divulgada há seis mil anos por Huang Ti, na China, a prática da acupuntura utilizando agulhas em pedra. Esta prática só ficou conhecida no ocidente em 1255, através dos padres jesuítas, que se encontravam no Japão, que a designavam como “picada de agulhas”. Este novo método só foi mais reconhecido e estudado na cultura do ocidente, numa perspetiva biológica e fisiológica, após a visita em 1972 do presidente norte americano Richard Nixon à China. Em 1979, a Organização Mundial de Saúde considerou a acupuntura como um método terapêutico complementar de outros atos clínicos, incluindo anestesia para cirurgia e analgesia na dor aguda.
Durante vários séculos em épocas e sociedades distintas foram executadas inúmeras experiências na procura das melhores respostas para aperfeiçoar os procedimentos das cirurgias que eram realizadas sobretudo para minorar a dor.
Franz Anton Mesmer (1734–1815), médico vienense, foi considerado como o pai do Hipnotismo Psicoterapêutico. Este método, designado por “Mesmerismo”, foi utilizado pelo seu criador em toda a Europa, principalmente em França. Publicou em 1779 a obra “Memoire sur la Decouverte du Magnetisme Animal”, onde explicou a cura através de magnetos e hipnose.
Também Gardner Quincy Colto, em 1844, utilizou o Protóxido de Azoto para analgesia em estomatologia, contra a dor e extração dentárias.
Na Geórgia, em 1872, Crawford Williamson Long utilizou o Éter Etílico em várias cirurgias, inclusivamente aquando do nascimento do seu segundo filho. Foi o primeiro médico a utilizar a anestesia quando efetuava pequenas cirurgias e na obstetrícia. Apesar de ter aplicado a anestesia em várias cirurgias, estas só foram divulgadas após as intervenções realizadas por William Morton, levando a crer que este tivesse sido introdutor da anestesia. Apesar da anestesia já ser conhecida em todo o mundo, a Associação Médica da Geórgia, em 1852 considerou Crawford Williamson Long, como o primeiro médico a utilizar o éter em cirurgias e o iniciador da cirurgia sem dor.
Em 1846, William Morton, convenceu o cirurgião John C. Warren a utilizar éter numa operação que este ia realizar no Massachusetts General Hospital, em Boston. A operação foi um êxito e o doente não sentiu qualquer dor.
De modo a divulgar esta nova técnica, ainda no mesmo ano, Henry Jacob Bigelow, escreveu o artigo “Insensibility During Surgical Operations Produced by Inhalation”, que foi publicado no Boston Medical and Surgical Journal.
Com a utilização do éter, para além de se continuar a efetuar intervenções com menor risco como as amputações, começaram-se a realizar cirurgias que até à data eram impossíveis de fazer como ao cérebro, ao tórax ou ao abdómen.
Em meados do século XIX foram realizados vários estudos baseados em cirurgias, onde foram utilizados o Éter ou o Clorofórmio. Depois de terem ocorrido várias mortes após a utilização do Clorofórmio em algumas intervenções, este tipo de anestesia foi abandonado durante algum tempo.
Embora de início tivesse havido uma enorme relutância na utilização do Clorofórmio, também a utilização do Éter foi severamente criticada. No entanto, tanto um como o outro continuaram a ser divulgados em todo o mundo e considerados como sendo os mais eficazes, tanto na sua utilização nas cirurgias, como no combate ao sofrimento e ao alívio da dor. Enquanto o Éter tornou-se muito popular na América, o Clorofórmio foi mais vulgarizado na Europa.
Portugal teve conhecimento desta descoberta através das publicações “Illustrated London News” e de uma tradução do “Le Siècle”, ambas publicadas no início de 1847.
Em 1946, o docente da FML Augusto da Silva Carvalho, declarava que o primeiro português a fazer referência à utilização do Éter tinha sido Jacinto da Costa. Este, em 1813, explicava na sua obra “Elementos Gerais de Cirurgia Médica, Clínica e Legal” o ato de amputação da coxa e os efeitos causados sobre o sistema respiratório após a inalação dos vapores do éter.
Em 1847, Bernardino António Gomes (1806–1877), professor na Escola de Medicina e Cirurgia de Lisboa e Diretor do Hospital da Marinha, juntamente com o seu colega A. P. Barral foram os percursores da Anestesia com Éter em Portugal, ao realizarem uma experiência onde dois estudantes que se tinham voluntariado, experimentaram a inalação de Éter. Um deles, António Maria Barbosa que posteriormente seria professor de Cirurgia, explicou de forma rigorosa as sensações recebidas após aquela vivência.
As primeiras anestesias com o Éter foram realizadas no Hospital de S. José pelos cirurgiões Joaquim Teotónio da Silva, António Maria Barbosa e Lourenço António Correia, que são também designados como os primeiros “Eterizadores” em Portugal, enquanto que outros médicos como Sousa Soares, Casado Giraldes e J. M. Arnaut, se dedicaram ao estudo do mesmo.
Este novo método manifestou enorme interesse e curiosidade na comunidade médica portuguesa. Em 1946, a fim de aprofundarem os conhecimentos relativamente à anestesiologia, Vítor Hugo Magalhães, que anos mais tarde seria o primeiro Diretor de Serviço de Anestesia do Hospital de Santa Maria, em conjunto com Mário Santos, realizaram um estágio de Anestesiologia em Inglaterra. Nos anos seguintes vários médicos iniciariam outros estágios no mesmo país, como Pedro Ruela Torres e Tamagnini Barbosa.
Surgiu então um grupo constituído por estes médicos que mostraram como era de grande importância que a Anestesia em Portugal obtivesse um estatuto próprio. Depois de um Curso de Anestesia realizado pelo anestesista argentino Italo Nunciata, no Hospital Escolar de Santa Marta em 1948, patrocinado pelo Instituto de Alta Cultura. Foi ainda manifestado o interesse em manter contatos com organizações internacionais congéneres. Em meados dos anos 50 do seculo XX, a Ordem dos Médicos lançou os primeiros alicerces para a fundação da Sociedade Portuguesa de Anestesiologia. Em 1955, foi fundada a A Sociedade Portuguesa de Anestesiologia como fazendo parte da Sociedade das Ciências Médicas de Lisboa, altura em que o Prof. Xavier Mourato era seu Presidente.
Verificamos que ao longo de milénios, o ser humano tem procurado a resolução dos inúmeros problemas relacionados com a sua saúde, o alívio e a cura do seu sofrimento e da dor. Com os avanços cada vez maiores da medicina em geral e da anestesiologia em particular, têm permitido que sejam realizadas intervenções cada vez mais complexas e solucionar questões que eram impensáveis há alguns séculos atrás. Apesar da medicina já ter atingido um nível elevadíssimo no combate à doença, continua a insistir numa continua e incessante procura para se encontre alternativas e novas respostas, para que o homem tenha cada vez mais uma melhor qualidade de vida.
Referências:
LIMA, Joaquim J. Figueiredo. Memórias sobre a dor e o sofrimento: uma perspetiva histórica da humanidade. Lisboa: Chiado Editora, 2017. 2 vol.
https://www.aped-dor.org/images/diversos/documentos/a_luta_contra_a_dor_e_o_sofrimento.pdf
http://ordemdosmedicos.pt/wp-content/uploads/2017/10/agosto-setembro_1988.pdf
Lurdes Barata
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