Os relógios, o tempo interno e a saúde cardiometabólica no contexto da mudança da hora
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Imagem de um despertador e uma mulher a dormir

E de novo, com a entrada na “hora de verão”, se insistiu em mudar os contornos da vida.

Vida, entenda-se bem, que tão antiga quanto a biologia nos possa afiançar, vingou, graças a traços de sucesso ante a transposição de barreiras de tempo e de circunstância. Em cada reino, a virtude da medição do tempo foi reconhecida pela máquina da evolução. Em cada um dos seus troncos, os relógios foram aperfeiçoados, de acordo com particularidades individuais e coletivas, face à interação desejável num planeta “social”. Esta socialização, integra valores temporais dinâmicos, como a luz, a temperatura, a humidade, e outros, que mais ou menos voláteis obedecem a uma assertividade ditada por imposições físicas e químicas que o movimento do universo não deixa fugir ao seu controlo. Da rotação da terra sobre si mesma, resulta um ciclo de luz-escuridão, que se completa a cada 24h. Da sua translação e da inclinação com o eixo central, nascem os anos e as estações. Por inerência, varia o tempo da chuva e da seca, do frio e do calor. Foi assim ao longo de toda a evolução. Foi esta capacidade de antecipar o tempo e as ocorrências que dele dependem, que nos permitiram construir, edificar, planear e sobreviver... dormindo, por exemplo.

E apesar de ser no sono que se projetam os olhos mais atentos à influência das disritmias circadianas no organismo, uma das mais importantes resultantes do mau funcionamento dos relógios, é a proliferação celular anárquica que caracteriza o desenvolvimento de muitos tumores malignos. A morte celular programada, um dos pressupostos biológicos protetores desta ocorrência é “silenciada” por alterações no sistema temporal interno.

De facto, algumas destas alterações foram confirmadas num processo experimental simulando a mudança da hora legal. Mas se as reservas dos estudos in vitro, moleculares e bioquímicos, podem suscitar dúvidas de validação, quanto à aplicabilidade na vida real, outros estudos de natureza clínica ou epidemiológica, pragmática e mais facilmente extrapolável, têm rejeitado a hipótese nula sobre a inexistência de diferenças nos períodos após as mudanças da hora quando comparados com outros períodos nas distintas épocas do ano.

Um dos aspetos que maior impacto causou foi a existência de um número acrescido de eventos cardiovasculares após a mudança da hora de verão. Trabalhos do nosso grupo, mostraram que isto se replicava em Portugal, onde, em 2019, confirmámos um maior número de eventos cardiovasculares e metabólicos na semana após a mudança da hora e que se distinguiu, do ponto de vista estatístico, das restantes semanas do ano. Na literatura científica, existe uma dezena de estudos que, embora com diferenças metodológicas, corroboram estes resultados evidenciando, por exemplo, que o aumento do risco de enfarte após a mudança da hora varia entre 4% e 29%. Estas cifras, englobam, evidentemente, a influência da privação crónica de sono e o “efeito da segunda feira”, ambos fatores potenciadores do desalinhamento circadiano. No sentido inverso, é certo que o desarranjo dos relógios celulares reguladores do ciclo sono-vigília, conduz a dificuldades com o sono. Para além disto, direta ou indiretamente, o cronotipo, uma representação da identidade temporal individual, que frequentemente traduz o ponto de médio do sono (e que caracteriza as pessoas em matutinas, vespertinas ou intermédias), também se encontra associado a riscos diferentes no que respeita à função cardiovascular e metabólica. Os vespertinos, segundo nos indicam os estudos, têm maior associação com fatores de risco relacionados à doença cardiovascular, assim como uma maior propensão para alterações no controlo glicémico, e para desenvolverem síndrome metabólica e diabetes.

É realmente fácil, imaginar o conforto que uma sincronização horária social permite ao movimento dos mercados financeiros, à concertação económica e político-administrativa e até aos fenómenos físicos explicados pelos diferentes ângulos com que o sol, na sua trajetória, se atreve a iluminar as múltiplas marcas dos fusos horários. São cómodas, mas incoerentes, as alegações sobre a vantagem e o propósito da mudança de hora no acesso à exposição solar de inverno e na forma como esta pode influenciar o rendimento escolar. Este argumento, é confirmado pela política interventiva francesa, que há uns anos atrás, reposicionou os horários escolares com benefícios inequívocos nas dimensões cognitivas. Esta política pode, certamente, atingir outros espectros do trabalho e da vida social. As dificuldades surgirão, pois, a vários níveis da hierarquia comunitária. Ainda assim, respeitando as horas que conservamos no registo da história genética, os corações, continuarão a bater, provavelmente no ritmo certo, ditado por relógios intactos que a natureza organizou e aprimorou ao longo do tempo, e que, enquanto funcionarem, nos poderão garantir que o tempo e o espaço, se confundem com elementos tão fundamentais à vida, como o bem-estar e a saúde.

Miguel Meira e Cruz
Diretor da Unidade de Sono do Centro Cardiovascular da Universidade de Lisboa, Faculdade de Medicina