O Beyond MEd é o Congresso de Educação Médica da Faculdade de Medicina da Universidade de Lisboa (FMUL), organizado em parceria pelo Conselho Pedagógico da FMUL, Departamento de Educação Médica (DEM) da FMUL e a Associação de Estudantes da Faculdade de Medicina de Lisboa (AEFML).
A 9ª Edição Deste congresso arrancou no dia 2 de novembro e durante três dias a FMUL recebeu vários participantes que se sentaram a discutir temas pertinentes da saúde.
Os grandes desafios vividos nos últimos tempos requerem um ensino médico cada vez melhor e mais adaptado à atualidade, pelo que o tema da Educação Médica é fulcral no dia a dia de um estudante de medicina.
Com foco na partilha de experiências e numa participação mais ativa da comunidade académica, esta edição do Beyond MEd pretendeu ser inovadora e mais próxima das necessidades dos estudantes.
O evento aconteceu à volta de Mesas Redondas e Keynote Lecture, Workshops, Debate e Competição de Simulação, contando com um leque vasto de profissionais médicos e especialistas em Pedagogia do panorama nacional.
Primeiro dia
A primeira mesa redonda deste congresso sentou os Professores Carlos Lopes, Henrique Cyrne Carvalho e o Bastonário da Ordem dos Médicos, Miguel Guimarães. A introdução coube ao Reitor da ULisboa Luís Ferreira e a moderação ficou a cargo do ex-aluno e atual médico José Rodrigues que ia ainda lançando algumas perguntas que vinham da plateia e gerindo o tempo da conversa.
Discutiu-se aqui o atual acesso ao ensino superior, baseado unicamente nas notas e se seria pertinente uma entrevista aos candidatos para auferir outras competências que importantes para os futuros médicos. Miguel Guimarães salientou que, na Alemanha, existe uma entrevista que é feita aos alunos que se candidatam e que tem peso no acesso ao curso de medicina. A ideia de que há mais competências que deviam ser avaliadas, ficou no ar, sobretudo depois da reflexão feita pelo bastonário da OM, “estas características mais humanas mais de relação de pessoas se isto não devia fazer parte do portfólio,” deixou a pergunta e adiantou, “se o acesso deve ter uma avaliação complementar para que as pessoas que vão para lá possam perceber se querem prosseguir, parece-me importante que assim seja.” No seguimento deste pensamento, Luís Ferreira acrescentou “é preciso ter vocação para ser médico. Não basta ter boas notas.”
Da plateia vinha a pergunta se será o número de estudantes de medicina suficiente para a capacidade demográfica do nosso país, seguindo-se respostas baseadas em números e em dados estatísticos. Sabemos que atualmente Portugal tem 5 médicos para cada 1000 habitantes, um rácio perfeitamente normal quando comparado com outros países, nomeadamente da OCDE, onde constam 38 países, e onde Portugal ocupa o 4º lugar como país com mais médicos por habitantes. “Mas o problema é que metade dos médicos estão a exercer no privado e não no SNS”, soube-se. Quanto a isso, Henrique Cyrne Carvalho foi perentório ao afirmar, “importa perceber se temos médicos suficientes e quantos médicos é preciso formar para dar resposta à população portuguesa. Onde eles estão a exercer, isso não nos diz respeito.” Sem dúvida que o SNS tem de se tornar atrativo. Carlos Lopes, Médico no CHULN, advertiu, “estamos a perder competitividade e isso é fruto do desinvestimento e da pandemia, que também teve o seu contributo nomeadamente levando à saída de muitos profissionais do SNS.”
Público versus Privado
Melhores salários e o respeito pelos horários de trabalho foram direitos muito falados ao longos destes dias de debate. Até ao nível do internato, foi referido que no Serviço de saúde privado esses direitos são acautelados. Isso mesmo foi adiantado desta vez no debate que juntou Carlos Mendonça, Presidente do Conselho Nacional do Médico Interno da Ordem dos Médicos e Miguel Bigotte Vieira, Interno de Formação Especializada em Nefrologia no CHULN. Foi apresentado o resultado de um inquérito feito aos internos onde foi avaliado o grau de satisfação durante o período que dura o internato. Regra geral, estão satisfeitos, mas foi aqui reforçado que, nos internos que escolheram o serviço Privado, havia maior respeito pelo horário de trabalho e pelos momentos livres para estudar.
E como cada vez mais se fala em “privado”, quando falamos de assuntos da saúde, foi também abordada a questão da abertura de um curso de medicina no ensino privado. Na mesa redonda onde foi abordado o tema, ninguém se opôs, apenas referiram que as regras têm de ser as mesmas que as do público. “Mesmo jogo, as mesmas regras”, referiu Henrique Cyrne Carvalho. E Miguel Guimarães reforçou, “não há estigma nenhum. Há qualidade em Portugal. Nós formamos os melhores médicos do mundo e assim queremos que continue.”
Quanto ao numerus clausus, “estes servem para suprimir as necessidades do país” adiantou o Bastonário e também porque a capacidade formativa não é infinita. Se os médicos saem do SNS para o privado, os hospitais universitários ficam esvaziados de casos de estudo e também de formadores. Por outro lado, cada formador tem de ter um limite de formandos. Não pode, ou não deve ir para as consultas com 6 e 7 internos. Os recursos humanos são limitados e os espaços físicos, também.
Quais as valências para ser um bom médico?
Na mesa redonda que juntou o cardiologista Nuno Cortez-Dias, Isabel Galriça Neto, Mestre em Cuidados Paliativos e Isabel Vaz, Presidente da Comissão Executiva do Grupo Espírito Santo Saúde, discutiram-se as valências que constroem um bom médico. A comunicação, o trabalho em equipa e a empatia, que foi mencionada em quase todas as discussões ao longo destes dias, são condições que tornam o médico um bom médico. Não apenas as competências técnicas foram salientadas, mas valências de comunicação de liderança, flexibilidade e de respeito nas relações entre pares, com o doente e com a comunidade em geral foram aqui destacadas. Para Nuno Cortez-Dias o médico tem de ser “cientificamente educado” e isto mais não é que “saber perguntar, ter uma dúvida metódica, criativa e construtiva, na medida que é geradora de possibilidades.” Dividiu em três pilares as valências fundamentais do médico; Conhecimento, médico-científico sólido; atitude onde se concentra a comunicação empática e disponibilidade para o outro; personalidade que deve ser altruísta e que deve manifestar preocupação genuína com o outro. Ao Prof. João Eurico da Fonseca coube a moderação, lançar as perguntas da plateia e fazer a gestão de tempo.
O médico enquanto comunicador
A Prof. Isabel Santiago sentou-se para uma conversa com o Dr. José Almeida Nunes sobre o tema: O Médico como Comunicador e Agente de Mudança. Habituado a falar na comunicação Social, sobretudo em televisão, tem uma linguagem clara, precisa e simples e foi isso que veio dizer na sua palestra, é fundamental fazer passar a mensagem. Deve-se adaptar a comunicação à realidade do doente. Pessoas e realidades diferentes, comunicação diferente. O objetivo é sempre fazer chegar uma mensagem de forma eficaz. O médico deve ser próximo do seu doente e nunca mais nunca, apresentar um problema sem ter uma solução. Combater a desinformação que está por todo o lado e isto deve acontecer sempre que há oportunidade. “vai falar á televisão sobre um tema, aproveitar para ir buscar uma informação que sabe ser errada e desmistificar logo ali”. É muito importante estar disponível para esclarecer o doente e contou várias histórias que se passaram com ele e que lhe deram o know-how para dizer estas coisas perante uma plateia de futuros colegas. Quando lhe perguntaram quais são os pilares da saúde pública, disse “os grandes avanços na Saúde pública baseiam-se quase sempre em coisas simples, mas que têm grande impacto na vida das pessoas.” Deu como exemplo a redução em 30 por cento do sal no pão e há algumas décadas, a decisão de arejar os hospitais que baixou o número de doentes com a tísica.
Prémio de Mérito Pedagógico Professor Doutor João Gomes Pedro
Este ano a atribuição do Prémio de Mérito Pedagógico Professor Doutor João Gomes Pedro distinguiu o Prof. Thomas Hanscheid, vencedor na categoria de docente e a Profª Lia Neto que recebeu o prémio na Categoria de Área Disciplinar de Neuroanatomia. O pediatra João Gomes Pedro fez questão de estar presente e de entregar os diplomas aos seus pares.
Quando a Bateria Acaba: Burnout e Liderança de Equipas
O Prof. Rui Tato Marinho, Diretor do serviço de Gastroenterologia no CHULN e o Prof. Eduardo Carqueja, Diretor Serviço de Psicologia no CHUSJ juntaram-se no auditório Celestino da Costa, no coração do Hospital de Santa Maria, para falar de exaustão e de gestão de equipas.
A conversa começou com um consenso, “todos gostamos de trabalhar, certo” questionou o psicólogo, “trabalhar é melhor do que não fazer nada”, reiterou, mas alguns fatores laborais também podem ter um efeito negativo na nossa saúde física e psicológica e consequentemente no nosso bem-estar.
O aumento da incerteza e instabilidade laboral, contratos precários, aumento da carga e do ritmo de trabalho, insegurança causada pela imprevisibilidade de mudanças e reestruturações nas organizações, estão associadas ao aumento dos fatores de risco para a saúde psicológica e dos problemas de saúde psicológica no trabalho. As relações com os colegas, com os utentes e com a família podem ter impacto na saúde psicológica e física; stress, ansiedade, burnout, depressão, perturbação do sono, doenças músculo-esquelética ou doenças cardio-vasculares entre muitas outras.
O Impacto dos Riscos Psicossociais
Não há dúvida que estes riscos têm grande impacto no mundo laboral e, consequentemente, na economia dos países. O facto de serem uma ameaça para a saúde em geral, resulta em grandes custos; diminuição da produtividade, aumento dos acidentes no trabalho, absentismo e presenteísmo e aumento da doença física e psicológica, contribuindo para a despesa pública na área da saúde. Afetam ainda a competitividade das empresas e o crescimento económico.
Por todas as consequências destes riscos psicossociais é importante que as organizações tenham um plano de combate pronto a ser aplicado de forma eficaz e que consiga ir de encontro às necessidades das pessoas, porque são elas a mais valia nas empresas e nas instituições.
O plano deve envolver todos na organização e deve ser coordenado por um especialista em psicologia envolvendo uma equipa multidisciplinar. É dirigida a todo o tipo de risco nomeadamente stress, burnout, violência assédio, emprateleiramento ou mobbing. Envolve todos os níveis hierárquicos e o coletivo dos trabalhadores.
O objetivo é o de criar uma cultura de respeito, uma visão mais positiva e permitir a criatividade e a evolução de cada um dentro da organização. E é aqui que entra a liderança e o seu papel assume um grande destaque. Rui Tato Marinho tem mais de 100 pessoas sob a sua alçada. Distribuídos por vários pisos, desloca-se diariamente para poder falar e estar com eles. As máximas “construir uma equipa, manter o espírito motivacional, atingir o equilíbrio entre bons resultados e manter a saúde de cada membro, são os “goals” diários. Enquanto líder, não chefe, Tato Marinho recebe por dia cerca de 150 mails, 100 telefonemas, 110 pessoas e tem 10 reuniões. Como não se deixar afetar pelo volume de trabalho e pelas, pelo menos, 16 personalidades identificadas no teste Myers- Briggs. Como é que se consegue sobreviver a um dia destes? Porque mantém o foco! Sabe que as prioridades passam por proteger “os dele”, isto é a sua equipa, de todos os ataques que vêm de fora e, no caso dos médicos, estes ataques têm várias proveniências: dos doentes, das administrações, dos advogados, jornalistas e também de colegas de trabalho. Valorizar sempre os recursos humanos, as pessoas são o cerne das organizações e num hospital os médicos estão no topo da pirâmide. Para além disso baseia a sua liderança no conceito da positividade que é o de ser empático inclusivo versus a ideia, errada e antiquada, de chefe rude, agressivo e castrador.
Liderança pela positiva em vez do clássico murro na mesa
Ser líder é perceber os movimentos que acontecem numa equipa em diferentes momentos. Por exemplo, está estudado e identificado que sempre que há alteração ou novidade toda a equipa reage e por regra acontece uma espécie de “tempestade”. As pessoas procuram o seu lugar na equipa e há alguma instabilidade durante esse período. A seguir vem a normalização e o rumo segue de forma autónoma e positiva com uma estratégia já implementada e conhecida por todos.
Tratar bem as pessoas, integrá-las, ouvi-las e envolve-las. Estes são pilares fundamentais para as boas relações. Quando há falhas aproveitar o erro para prevenir situações futuras e não persistir no momento. Lidar com pessoas é uma arte que envolve muitas “skills”, mas às vezes o recurso ao mais básico instinto pode ser a chave do sucesso, “às vezes faço-me de parvo, mas eu não sou parvo, se fosse, não tinha chegado aqui,” disse com aquela tranquilidade e voz suave que lhe é característica. Talvez esta capacidade seja fruto de muitos anos de liderança que tal como o próprio disse, “é uma coisa que se aprende”, lhe tenham desenvolvido esta forma suave, quase em bicos de pés, com que se movimenta neste hospital, mas com a certeza de que no final de contas quem manda é ele.
911 What´s Your Emergency?
Para terminar a semana e concluir os 3 dias de Beyond Med, nada melhor que uma competição de simulação para alunos pré-graduados. O sistema que permite esta formação chama-se Body interact e dispõe de mais de 150 casos clínicos capazes de por os estudantes de 5º e 6º anos, a treinar o dia a dia nas urgências de um hospital. A avaliar o processo de diagnóstico e as interações entre os membros de cada equipa, estavam 3 médicos, perfeitamente familiarizados com estas situações e que iam avaliando as equipas e ao mesmo tempo fazendo perguntas e alertando para algumas distrações inerentes também à falta de pratica em lidar com este doente interativo.
Tudo começa com a chegada do “doente” ao “hospital” com um breve descritivo da situação. A partir daí a equipa médica tem de tomar decisões. Falar com o doente, saber quais as perguntas a fazer, avaliar sintomas, decidir quais os exames que devem ser pedidos e, ao mesmo tempo, estabilizar o doente e prescrever medicação.
Sentia-se alguma pressão na decisão de qual o melhor caminho a seguir. As conversas entre os participantes estavam também a ser avaliadas pelo júri atento. Bruno Silva Médico Interno com Formação Geral no CHULN e dirigente da Sociedade Portuguesa de Simulação Aplicada às Ciências da Vida, Filipe Borges, Cirurgião no Departamento de Oncologia Digestiva da Unidade de Hépato-Bilio- Pancreático da Fundação Champalimaud e assistente convidado de Cirurgia na FMUL e Nuno Gaibino Assistente Hospitalar de Medicina Intensiva no CHULN e assistente convidado de Medicina Intensiva na FMUL, estavam atentos a cada detalhe e a cada pormenor. Cada equipa tinha um membro do júri a acompanhar o processo de avaliação do caso. Iam fazendo perguntas para orientarem os futuros colegas. “Já estabilizaram o doente?”, questionou Bruno Silva, ”Qual o cateter que devemos colocar nesta situação? periférico ou central?” o doente está em choque, administramos uma perfusão ou um bolus?”, questionou Filipe Borges, “falaram com o doente?, perguntou um dos jurados, “não” responderam os alunos, justificando logo de seguida, “na nota de entrada dizia que estava inconsciente,” mas “pode já não estar inconsciente, agora. E enquanto médicos, temos a obrigação de ver a situação do doente por nós próprios” fez saber Nuno Gaibino enquanto tirava notas para um caderno que tinha na mão. As explicações, as perguntas e o tempo a correr agudizavam a adrenalina. Os alunos queriam ganhar a competição, mas sobretudo queriam fazer boa figura e aplicar os conhecimentos na resolução de um caso prático. Mas o facto de ser uma máquina com a qual não estavam familiarizados também trouxe alguns constrangimentos, “não estamos muito habituados à máquina e com o paciente parece que está tudo mais à mão,” diziam uns, enquanto outros acrescentavam, “numa sala de hospital parece que é mais fácil atuar do que aqui,“ ou ainda “não estamos familiarizados com os menus”, mas nada disso os impediu de prosseguirem.
Mais equipas, mais casos a serem avaliados
Homem, 61 anos, 94 quilos e 1.74 cm. Sentiu-se mal no trabalho, desmaiou e sente-se fraco e “muito cansado” diz a máquina quando selecionam o menu dos sintomas. É preciso por em prática o protocolo A,B,C,D,E?, questionam-se. Colocam cateter periférico e poem o doente a fazer fluidoterapia. Tudo parecia correr bem, mas tal como na vida real, acontecem imprevistos. Aqui o doente “morreu”, mas felizmente neste caso é tudo “faz de conta”. O caso fica guardado para que outros alunos, passem pelo processo e percebam quais os exames a pedir e a importância de mitigar a dor. Este paciente precisava de paracetamol, mas a emoção em analisar os sintomas e fazer o diagnóstico era tal que foi esquecido. O diagnóstico veio à posteriori: Diverticulite aguda.
Pedro Simões é o mais um caso hipotético. Pesa 75 quilos e queixa-se de indisposição evolutiva. Começa a avaliação, “como se sente” e “quando começaram os sintomas?”, perguntam. Procedem à auscultação e verificam que a pele está fria e pegajosa. Tem dor abdominal! “é um doente critico?” questiona Nuno Gaibino, tranquilo e fazendo parecer tudo aquilo fácil e óbvio. A cada pergunta os estudantes olham uns para os outros, como se sentissem que aquela observação pusesse a nu uma falha qualquer. Estão nervosos, mas avançam. Após ecografia abdominal foi detetada uma massa gástrica. É altura de ser feita uma gasometria arterial. O doente tem cálculos renais e a tensão arterial subiu bastante. “Gostava de ver a imoglobina agora,” diz o jurado. o tempo esgota-se, o diagnóstico era o de um aneurisma e a equipa teve 60 por cento de pontuação.
No final da competição cada equipa teve uma pontuação atribuída pela máquina em função do percurso feito durante a avaliação ao doente e outra parte atribuída pelos jurados que acompanharam o processo e, juntos, deliberaram. No final houve vencedores, mas não houve vencidos porque o que conta é o que se aprendeu e como futuramente esse conhecimento vai ser utilizado para minorar estados de dor e salvar vida.
Dora Estevens Guerreiro
Equipa Editorial