É como se o corpo falasse, mesmo quando ainda não iniciou o movimento dos braços que conduzem, com leveza, um vasto coro que para ela olha, como inspiração para algo que então acontece com enorme beleza.
Cabelo liso, sem um fio fora do lugar e a suavidade dos gestos que dão doçura comprovada na sua própria voz que mais tarde ecoará. Bárbara Saraiva faz direção coral e canta. Começou na música por tocar flauta transversal e fez o Conservatório completo, até ao oitavo grau. As 4 horas por dia de treino com a flauta eram a sua dedicação mais fiel, daí ter hesitado se seguiria a carreira musical ou a Medicina. Venceria a Medicina que abraçou em compasso certo, encontrando-se hoje no 3º ano de internato em Pediatria.
Embala-se ela própria nas palavras cantadas do coro que a rodeia e dança tão sutilmente quanto os lábios lhe parecem querer dar som à expressão corporal.
Como a própria o descreveria, o maestro é o fio condutor entre as notas musicais, originando a execução dos músicos que transformam essas notas em música, criando depois a vibração que chegará ao público.
A sala está cheia e cedo se inunda de novos públicos que preenchem cada lugar de mármore ainda vazio, na escadaria da sala do canto, da Biblioteca Nacional de Lisboa. “Compositores portugueses através dos tempos” é a viagem musical com direito a narração de atores e à interpretação do Coro.
O Coro e a Orquestra Médicos de Lisboa
O Coro e a Orquestra Médicos de Lisboa já existia enquanto pequeno grupo que atuava em datas concretas anuais, como o jantar de Natal e Sarau Cultural, da Associação de Estudantes – AEFML. Foi então que em 2014 decidiu pegar com Sebastião Martins, atual médico interno em Psiquiatria, no Coro da AEFML. Nesta mesma altura nascia também a Orquestra.
Foi num encontro entre vocações no Sarau Cultural de 2014 que perceberam que havia uma razão maior para os ligar a todos, a paixão à música e que ela merecia continuidade além das datas marcadas.
Vários são os casos de pessoas indecisas sobre Medicina ou Música.
O projeto que começou apenas com alunos de Medicina e depois da Faculdade de Ciências Médicas, passava também a abrir portas aos estudantes de Medicina da Nova. Mais tarde entrariam médicos já formados, que tinham começado enquanto estudantes.
"Na Faculdade faz-se de tudo no que toca às artes performativas: Noite da Medicina, Sarau Cultural, assim como os vários projetos da AEFML. Tornamo-nos bons médicos, mas com largos horizontes além da Medicina", contava.
Os ensaios passaram a ser regulares, iniciados nos espaços da Associação de Estudantes, hoje é já dado adquirido que a sala 57 é o espaço anfitrião para o encontro entre todos.
Tinham acabado de criar em 2019 a Associação do Coro e Orquestra Médicos de Lisboa – ACOML - e começava a pandemia. Dos encontros fixos na Faculdade, a pandemia fez com que passassem a encontrar-se na garagem da residência da vizinha Católica. "Foi mais um passo de coragem e amor de um grupo que queria manter tudo vivo", recordava a Bárbara. Cantavam ao som da melodia orquestrada pela Direção Geral de Saúde, ou seja, por vezes encontravam-se para cantar e dar concertos online, outras tantas vezes subdivididos ensaiavam por grupos apenas da voz, cordas ou sopro. A criatividade subia acima da capacidade de ler bem a pauta musical, era preciso reinventar a dinâmica de ensaios, gravando entre pequenos grupos que depois se juntavam a uma sonoridade maior. "Só depois juntávamos cada uma das partes num todo, num só vídeo que mostrávamos a todos", acrescentava Alice, atual estudante do 4º ano de Medicina e um dos rostos da Orquestra. Mas já a vamos conhecer adiante.
O regresso à Faculdade far-se-ia graças à persistente entoação de vontade do grupo e ao bom ouvido do antigo Diretor Executivo, Luís Pereira que se esforçou por os reintegrar, contam-me ambas.
Em maio de 2021 boas-novas contavam do regresso às atuações em público.
O que ficou do turbilhão de memórias soltas depois da pandemia
Bárbara estava a começar o seu internato no Serviço de Infecciologia do Hospital da Estefânia, recebia suspeitos de Covid e não sabia o que a esperava. A verdade é que recuados dois anos, o SARS-CoV-2 era temido com profunda razão de ser. Descreve a total ausência de contacto com os pais em Leiria e a irmã em Santarém, todos médicos e envolvidos no terreno com os doentes, não causa ainda estranheza que se emocione ao recordar o concerto online, onde participou a cantar e que juntou centenas de pessoas.
"Tentei ao máximo manter a minha parte mental viva, porque não era possível estar a trabalhar no lugar que estava, longe da minha família e ainda sem a música. Não dava", comenta emocionada.
A música foi um dos pontos de equilíbrio. A música seria assim o meio para embalar a noite, por contraste aos muitos dias seguidos que passou sozinha.
Se pudesse escolher uma música que representasse o seu estado emocional sobre esse tempo, não hesitaria no som, aquele que a própria cantou num vídeo inesquecível e tão comovente para tantos - The Seal Lullaby, de Eric Whitacre.
Atualmente, o Coro é composto por cerca de 30 pessoas e a Orquestra por 25, aproximadamente. Quase todos ainda a estudar, no Coro 60% são estudantes e os restantes 40% já são médicos. O que explica que a agenda cultural seja marcada em articulação maximizada à época de exames. No Coro o elemento mais velho tem 50 anos, é médica e com 3 filhos, ainda assim ofereceu-se a ir cantar e começar agora. E na Orquestra há quase tantos médicos quanto estudantes.
O empenho e persistência misturam-se com a paixão artística. Ensaiar horas e horas e com repetições semanais não é tarefa penosa, dando reforçado alento para quebrar a rotina dos dias, por mais acelerados que sejam. Bárbara que o diga, depois de estar de urgência 24 horas seguidas, ainda aceita a ideia de ensaiar. "E há muitos médicos que depois dessas mesmas 24 horas de banco, fazem o mesmo, saem e vão ensaiar, ou atuar".
A inspiração é também para quem ainda estuda, ou tem exames, sejam eles de Imuno ou Infecciologia a uma terça-feira, e fim-de-semana com atuação ao vivo, forma que encontram de limpar a própria alma. "Lembro-me bem dessa situação, nem me fazia sentido não ir atuar, porque a Orquestra e o Coro fazem parte da nossa vida, nós gerimos a vida à volta destas atividades", dizia Alice Vieira.
A Alice a Filarmónica e o jantar ao fim da noite
Estudante do 4º ano do MIM, a Alice Vieira está na Orquestra. Entende que chegou à música “um pouco tarde”, contas que não muito justas para uma filha de professor de música. Começou a aprender tinha já 13 anos. Os primeiros passos seriam dados na Banda Filarmónica de Arruda dos Vinhos e por lá foi desenvolvendo as técnicas de clarinete. Autodidata, passou por períodos em que questionou se teria vocação para a música. A destreza para a Medicina nunca a negou, assim como nunca deixou por mãos alheias o destino onde estudar, a FMUL. Se todas essas escolhas foram certeiras, já a sua entrada para o Coro e Orquestra fizeram-na pensar duplamente, pois considerava que vir de uma Filarmónica não lhe dava a legitimidade para ser tão boa quanto aqueles que tinham feito o Conservatório. Hoje afirma com mais convicção que foi meio caminho andado para conseguir tocar numa Orquestra Sinfónica, experiência que muitos dos instrumentistas nunca tinha tido anteriormente.
"Lembro-me perfeitamente do grande concerto de 2019, o primeiro grande concerto que fizemos na Faculdade e depois em Alfama", recorda o seu primeiro grande momento.
Bárbara não esconde a vontade de replicar diante da reação em que refere ter sentido medo de não estar à altura dos mais profissionalizantes. "É precisamente para isto que este grupo existe, para mostrar que mesmo quem vem para Medicina não tem de arrumar os hobbies e focar só nos estudos, não! A nossa associação surge como plataforma para os estudantes e médicos, para poderem continuar a seguir esta arte musical, mais ou menos profissionalizantes".
Com mais ou menos aprendizagem musical feita, já o empenho é ritmado e tem continuidade. Ensaiam às 2ª e 4ªs, todas as semanas. O Coro ensaia das 18h às 20h e a Orquestra das 20h30 às 22h30. A rotina não é fácil principalmente para quem vive na Arruda dos Vinhos e não tem ainda carta. Alice explica, "todas as semanas e durante 3 anos dependi das boleias do meu pai, esse empenho não foi só meu, foi muito deles também por me apoiarem. Depois de chegar às 23h30, ainda ia jantar. Muitas vezes no dia seguinte tinha e tenho de acordar às 05h, mas nunca me arrependo. Escolhi assim".
O crescimento musical dá o estímulo pessoal e uma união ao grupo que é, acima de tudo, apoio entre si.
Pedimos silêncio a todo o auditório, porque o concerto vai começar
Profundamente sérios e compenetrados, assim conseguimos ver um grupo de músicos que, ou usando a voz, ou tocando um instrumento, é difícil descodificar o que a expressão do rosto fala. Quando traduzidas para palavras fica tudo claro. "Pensar não sei se pensamos muito além daquele próprio momento, mas sentir, sentimos tudo, senão não há música. A concentração não é tanto para seguir as notas que nós já conhecemos, é essencialmente para disfrutar, mas porque estamos muito focados uns nos outros e no maestro; sentimos toda a música. Mas também projetamos muito a nossa própria energia". A Alice vibra enquanto fala.
Muitos dos concentos que fazem são de entrada livre, muito pensando nos seus pares estudantes que são fiéis seguidores deste grupo e a quem querem retribuir a amizade através da arte musical não paga.
Há momentos que nunca falham, os grandes eventos da Faculdade que homenageiam através da sua música e que oferecem de retorno para o apoio da Faculdade.
Querem ajudar?
A Associação – ACOML - conta com os sócios efetivos que cantam e tocam (estes não pagam quotas), e os apoiantes que pagam 5€ por ano, permitindo-lhes ainda descontos quando há vendas de bilheteira. O financiamento é difícil, mas possível de conseguir e é esse que assegura a compra de novos instrumentos, ou materiais de apoio. Por fim, contam ainda com o apoio anual do Instituto Português do Desporto e Juventude. Verbas mais do que necessárias mesmo quando há bilheteiras abertas, mas cujas salas implicam sempre despesa pelos gastos associados. Por isso, vale a pena comprar bilhete, inscrever-se como sócio, ou deixar uma ajuda no final, mesmo de cada concerto de livre entrada.
Joana Sousa
Equipa Editorial