6 de Março de 2020. A Aula Magna preenchia-se como nunca antes vista. Filas e filas lotadas, as escadas iam ficando igualmente tapadas por quem chegava mais tarde e se ia sentando no chão.
Desde dezembro que se ouvia falar do SARS-CoV-2, mas a verdade é que ainda não havia sinais claros de propagação em Portugal.
O primeiro embate chegava através de Filipe Froes, Pneumologista e elemento integrante do Plano Nacional de Contingência para a COVID – 19, que mostrava como o vírus já tinha viajado para todo o mundo, a cada avião que saía da China.
O Plano Local de Contingência que seria implementado no CHULN anunciava o trabalho estratégico do Coordenador do GCL-PPCIRA e Diretor de todo o Serviço de Infecciologia do Hospital de Santa Maria, Álvaro Ayres Pereira.
Sentido de humor acutilante, mesmo diante do subtil murmurinho desconfortável que vinha da sala. Chamava-me a atenção como aquela figura alta e esguia, encarava com leveza extra e ânimo, o futuro de algo que mal se sabia medir.
O que se seguiu todos sabem. A pandemia instalou-se e correu as equipas de cansaço. Varreu vidas, isolou as populações, esvaziou o barulho das cidades.
Quase dois anos depois, e já com praticamente 90% da população adulta portuguesa vacinada, atrevo-me a procurá-lo, acreditando que agora já haverá tempo para olhar em retrospetiva.
Álvaro Ayres Pereira é Infecciologista, praticamente há 22 anos, especialidade que acumula com a de Medicina Intensiva. Depois de formado e m Medicina pela Faculdade do Porto (1978 – 1984), fez o internato geral em Gaia. Seguir-se-ia depois Braga onde dava início ao internato de Pediatria, especialidade que escolheu e pensou seguir como destino seu traçado. Mas interrompeu-o para ir como voluntário de uma ONG francesa e italiana, para Kinshasa. Os 4 anos seguidos, de uma vivência por vezes de quase guerra civil, com o som de tiros a noite toda, mortos no chão, deram-lhe nova visão de vida e realidade, mas impediram-no igualmente de outras condições como a de continuar a fazer a Pediatria. Ao regressar a Portugal precisava de fazer novamente as provas de acesso à especialidade, pois já passara tempo demais para retomar o percurso que deixara a meio.
Filho de uma numerosa e reputada família do norte, só da linhagem do pai são atualmente mais de 70 membros da família. Álvaro sabia que ser um dos 12 filhos lhe exigia a responsabilidade de encontrar soluções de independência. Não era ainda comum justificar-se todos os passos que se davam, conta-me, chegava a estranhar nos seus amigos de Faculdade o excesso de justificações que davam aos pais por cada exame que faziam. A capacidade de cada um ser mais por si, não lhes retirava no entanto a solidez de uma família unida e conservadora. Hoje, pai de três rapazes, em que o mais novo tem 7 anos, confessa-se coruja. Com o mais velho de 17 anos, esperaram quase 8 anos pelo filho seguinte, agora com 10 anos já vividos.
Homem católico e que dá espaço à sua própria fé, continua a acreditar que, o caminho, quem o determina é a vontade de cada um e não o destino, ainda assim não deixa de ser curioso que tenha sido um carro do INEM (Viatura Médica de Emergência e Reanimação) que o levou ao caminho profissional definitivo, diria ainda que ao seu destino. O sentido é real e não figurado. No momento em que percebeu que não era possível retomar a Pediatria, ficou perdido em pensamentos sobre o que faria “agora”, foi nesse momento em que a VMER passou que pensou segui-la, como se assim perseguisse a sua própria resposta interior. Seguiu a ambulância até à Rua D. Pedro V, onde ficava a Sede do INEM. Entrou e perguntou se haveria alguma oportunidade para trabalhar como responsável médico. "Como sabia que estávamos à procura de um médico? Olhe, começa já na segunda-feira". Ficou um ano.
No somatório de um curso em Doenças Tropicais, feito com o Professor Champalimaud, e entre uma Pós-Graduação na mesma área e a vivência de África, o resultado foi igual a fazer a sua especialidade em Doenças Infecciosas. “Atrasou-me um bocadinho a minha carreira em 10 anos, mas valeu mesmo a pena", concluiu, acusando pouca pressão perante a própria pressão da sociedade para que cumpramos sempre os prazos globalmente instituídos.
Álvaro Ayres Pereira trabalhou no Pulido Valente durante 4 anos, onde integrou uma equipa da especialidade de Cuidados Intensivos. Assumiu a Direção das Doenças Infecciosas em setembro de 2019 e coordena o GCL-PPCIRA (ex Comissão de Controlo de Infeção), estando no Centro Hospitalar Universitário Lisboa Norte desde 1995.
Enviei-lhe uma mensagem a medo, por considerar que no meio de uma pandemia, mesmo que em tempos de maior calmia, não há tempo para o que não é o mais importante. Não me respondeu e por isso insisti a medo redobrado, com a sensação presente que havia um certo abuso implícito por achar que haveria tempo para falarmos. Ligou-me de volta. Gentil e empático, pediu desculpa pela demora para dar retorno ao contacto. Consideravelmente constipado e com tosse, apressou-se a confirmar que não tinha Covid e que por isso poderíamos reunir poucos dias depois. E foi assim. Pedi meia hora de um tempo repleto, mas passaram duas horas quando nos apercebemos que, afinal, foi mais o que fomos falando do que aquilo que aqui deixo escrito. Privilégio que insisto em manter, este de ter as pessoas frente a frente, como duas aparentes partes estranhas que rapidamente passam a confiar uma na outra.
Curiosamente o humor nele sempre presente ficou guardado para um momento mais público, onde deve puxar sempre mais pelo ânimo coletivo. Apesar da graça sempre implícita nas dezenas de histórias que me contou, permitiu-se ser mais reflexivo e brando, não pela constipação, mas porque um homem de “palco” e de ferozes guerras clínicas também precisa de descansar.
“É Álvaro Ayres ou Aires?”, pergunto-lhe depois de ter tentado apurar o facto sozinha. O nome foi ficando à vontade das gerações que foram escrevendo nos registos de família o nome, originalmente Ayres, nem todos pareciam ter familiaridade com o Y. Cedeu à letra que passou a adotar com o I apenas para não ter de ir apurar e comprovar a sua origem em cada celebração assinalada.
Feito de fantásticas histórias e devida existência, hoje percebo que valeu a pena o tempo esperado para finalmente falarmos.
De onde lhe vem esta capacidade de conseguir rir e brincar diante da adversidade?
Álvaro Pereira: Pelo menos para mim corre melhor se eu for assim, mas nem todos interpretam bem, consideram que há um certo cinismo na forma como tento levar as coisas. Mas não sei se é justo que me avaliem assim.
Não é nada leve estar à frente de um Serviço como o seu. Quando foi falar para todas aquelas equipas (na Aula Magna) já sabia o que nos esperava realmente em termos pandémicos?
Álvaro Pereira: Não, não sabia. Nessa altura já estava à frente do GCL-PPCIRA, era o coordenador. Já tinha vivido a experiencia do SARS-CoV, da ameaça da gripe aviária e do Ébola e da pandemia pela Gripe A . Era por isso mais uma situação que podia ter contornos semelhantes. Mas tal não se verificou. Esta experiência, associada à minha própria forma de ser na vida, fez com que eu levasse as coisas com alguma leveza, sem excesso de alarme. Como sou sempre. Fui, aliás, a vida toda assim.
Isso significa que, apesar dos seus anos de especialidade, ainda assim foi surpreendido pela pandemia?
Álvaro Pereira: Nós já tínhamos passado por ameaças daquilo que poderiam ser epidemias que causariam muitos estragos, e note que a Gripe A ainda os fez. Já a Covid-19, pelos seus recuos e avanços, fez-nos sempre ir vivendo com muitas interrogações. Veja uma coisa, ainda hoje, e passados quase dois anos, continuamos sem ter certeza dos acontecimentos, porque se mantêm recuos e avanços. As doenças Infecciosas têm uma lei muito engraçada, nunca morrerão todos, porque a natureza, a Humanidade consegue dar sempre a volta à adversidade e como tal não são facilmente previsíveis quando surgem. Repare, claro que há grandes estragos, basta lembrar que vivemos a Lepra, a Peste, as Epidemias da Gripe, o HIV/sida, mas haverá sempre a resistência humana que vai conseguindo ultrapassar. Este é o grande otimismo de quem trabalha com a realidade das Doenças Infecciosas, é a luta da natureza humana. Luta essa que existe desde que estamos aqui na Terra, nós e os microrganismos. E foi com eles que fomos sempre criando um certo equilíbrio, uma certa simbiose. Não é interesse destes vírus matar a espécie humana, senão também eles se extinguiriam. Os vírus procuram que a espécie humana se adapte a eles e eles a ela e assim podem progredir e fazer mais estragos, multiplicando-se. Em última análise pode-se dizer que o vírus não nos quer mal, quer só propagar-se.
Foi isso que o fascinou na Infecciologia? Porque não é qualquer pessoa que tem um 19.6 no fim da sua especialidade...
Álvaro Pereira: Foi precisamente por gostar de estudar esta relação entre o ser humano e o micróbio e a adaptação do Homem a estes.
Acha que a Humanidade continua a saber levar a melhor?
Álvaro Pereira: (Fica em silêncio) Acho que tem motivos para ter aprendido. Mas temo que se esqueça rapidamente. Temo que passando a Covid-19, não tenhamos aprendido o suficiente para nos prepararmos para o futuro. Porque esta não foi a primeira nem vai ser a última grande pandemia, estão aí várias ameaças prementes, basta ver a ameaça do regresso em força da malária, ou de outras gripes e outros vírus. Tenho medo que não nos preparemos o suficiente, porque mesmo ainda agora fazem-se perguntas tão inexperientes como se o vírus tivesse acabado de chegar e o facto é que já se passaram quase dois anos. Deveríamos já saber retirar as consequências, para os doentes, mas também para os hospitais em concreto. Preocupa-me muito a parte arquitetónica dos nossos hospitais, que exigiria grande remodelação e tal não acontece. Não podemos continuar a ter enfermarias com mais de 20 camas e uma só casa de banho. Ou mesmo a questão das dimensões de espaço que temos, ou seja, deveríamos ter menos camas para o espaço que se tem, ou com as camas que temos, aumentar o espaço entre elas. A parte arquitetónica é fundamental para a contenção da área infecciosa e acredite que não falamos só relativamente a esta pandemia agora. Note o seguinte, num Hospital com estas dimensões, temos muitos doentes, muitos imunodeprimidos, muitas patologias, idades muito diferenciadas, mas depois a estrutura é a mesma de há 40 anos atrás, e a expectativa da população também é maio.
Falava da questão do espaço e da extrema necessidade de desinfeção e da cautela das distâncias, precisamente naquela reunião da Aula Magna.
Sou muito insistente com as propostas de plantas, de renovações, do Hospital, porque é preciso mudar estruturalmente.
Não haverá cada vez mais uma maior propagação das pandemias à medida que o meio-ambiente também se degrada?
Álvaro Pereira: Sim, muito provavelmente sim. Com o aquecimento global, por exemplo, a probabilidade de voltar a ter Malária, aumenta. Cá em Portugal já não existe Malária há muitas décadas, mas com a subida da temperatura, os vetores adaptam-se e imigram. O estilo de vida das pessoas também proporciona estes agravamentos. As grandes viagens, as deslocações à grande escala, são tudo novas formas de contacto que nos aproximam de maiores riscos e possivelmente deveríamos voltar a equacionar voltar a uma vida mais regrada.
Mas podemos reduzir ainda mais a escala. Se reduzirmos a distância do local onde a pessoa vive, com o local onde ela trabalha, também poderíamos concluir que é muito mais arriscada trabalhar-se a 100 kms de distância da zona de residência. Por exemplo, o teletrabalho é uma das boas opções, precisamente porque pode minimizar riscos. Já viu como temos o centro residencial de Lisboa deserto? E isto porque as pessoas não conseguem ter meios de subsistência para ocupar as cidades, mas precisam de se deslocar para elas todos os dias para trabalhar e vêm todas juntas em transportes.
Posso daqui interpretar que as grandes decisões políticas andam mais ao sabor das correntes partidárias do que das grandes causas sociais para o bem do país, ou da Saúde?
Álvaro Pereira: Muito provavelmente. Porque me parece que há uma falta de estratégia, por um bem que nos é comum, a médio prazo. É o médio prazo que me preocupa, sabe? Já nem equaciono falar do longo prazo. Acredito que talvez haja uma visão do bem comum, mas com as mudanças de poder, perde-se a continuidade. Não há um plano de seguimento.
Sendo Diretor de Serviço assume um trabalho mais estratégico e não anda tanto no terreno a ver doentes. Sente falta desse lado?
Álvaro Pereira: Às vezes sinto. Mas eu também gosto de gerir pessoas. Exige-nos mais paciência, mais capacidade de gestão de personalidades. Mais estratégia. Mas também nos permite mais contactos com todo o Hospital, é muito enriquecedor falar com as várias áreas médicas deste Hospital e participar com eles nas reuniões, porque é a comunicação com todas as áreas hospitalares.
Deixe-me voltar ao momento em que seguiu o carro da VMER do INEM. Somos nós que fazemos o nosso caminho ou ele está de alguma forma destinado a cada um de nós?
Álvaro Pereira: Eu sou um homem católico e acredito na providência divina, de algum modo, mas para mim é o Homem que faz o seu próprio caminho. Ainda assim não sei, se tudo tem uma explicação científica, não sei dizer...
Na fase da sua vida em que me falou dos 4 anos em Kinshasa e que se vivia uma quase guerra civil, fez-me lembrar uma expressão de guerra muito atribuída aos comandos e que diz "um comando não tem fome, nem sede". Um médico em pleno palco de guerra, real, ou diante de um cenário pandémico, também se sente assim?
Álvaro Pereira: Ainda é diferente. Eu nesta pandemia já não estive na primeira linha, estive num lugar mais estratégico e geral, o que obviamente não me impede de ter a visão global do que se passa no terreno. Mas ainda assim eu acho que há uma grande diferença para o cenário de guerra. Esta é uma guerra de um vírus contra nós. Uma guerra entre homens já não tem descrição possível... Na nossa guerra pandémica nós damos tempo ao Homem para se recolher e se adaptar ao vírus, ou seja, na prática é esse o espírito do confinamento, recuar estrategicamente para reconhecer melhor o inimigo. Damos tempo e atrasamos as coisas para nos prepararmos, num sentido figurado, é como um namoro entre partes, mas em que o Homem ganha estrategicamente tempo.
As guerras dos Homens dividem-nas em campos distintos, não as unem todos para um mesmo lado da batalha. Nós vivemos uma guerra sim, contra o vírus, mas é a guerra contra terceiros e não de homem a homem.
Neste processo de guerra contra terceiros, a Humanidade saiu mais unida?
Álvaro Pereira: Não sei... Em termos familiares nem sempre verificámos isso, muitas famílias ficaram completamente destruturadas, a pandemia foi o fator precipitante de algo que já não estaria bem. O que se nota é um cansaço generalizado e há problemas que eram latentes e se tornaram mais proeminentes, como o cansaço dos médicos, das equipas de enfermagem e de outros profissionais de saúde. Esse cansaço está a levar as pessoas a serem menos tolerantes e a ficarem mais exigentes, agressivas. Este espírito vai continuar e só vejo alguma inversão se o Serviço Nacional de Saúde sofrer alterações profundas na sua forma de existir.
Sei que não podemos fazer futurologia, mas vamos vendo o frio a chegar e proporcionalmente os números de infetados e mortos por Covid a aumentar na Europa, mais do que em outro qualquer ponto do mundo. Alguns países Europeus já tomaram as primeiras medidas de confinamento. E em Portugal, se não for feito qualquer confinamento até ao Natal, os cálculos apontam para 6 mil infetados por dia. Qual é a sua leitura sobre o que nos espera? O que espera a sua equipa?
Álvaro Pereira: A minha equipa vai-se sempre adaptando às novas orientações da DGS, mas também sempre atenta às diretrizes internacionais. Esperam-nos tempos mais difíceis, mas nada que se assemelhe a janeiro deste ano (2021). Os portugueses são de facto um povo dócil, porque aceitam as adaptações novas, neste caso aderiram à vacinação. Se a vacinação para a gripe se desenvolver bem e se a terceira dose for recebida para todas as faixas etárias, então aí direi que podemos minimizar muito os estragos.
Já se fala inclusivamente de vacinar as crianças mais pequenas e eu vejo isso de uma maneira muito pragmática e positiva.
Será tão seguro vacinar adultos como crianças pequenas, é o que defende?
Álvaro Pereira: Eu quando andava na escola assisti a casos de Poliomielite, isto porque os pais não vacinavam os seus filhos, com medo da vacina. Eu vivi de perto com essa realidade de haver estigma em relação à vacina. Sou por isso fiel defensor da vacinação, porque ela reduz-nos o risco de doença e da sua própria infeção e propagação. Temos de ter alguma confiança na Ciência e nas decisões tomadas. Agora, há outras questões que coloco sobre vacinação, atualmente. Vale a pena vacinarmo-nos com a terceira dose, ou vamos dá-la ao terceiro mundo?
O terceiro mundo nunca será maioritariamente vacinado...
Álvaro Pereira: Pois não, vai imunizar-se sozinho, sabe como? Ficando infetado, depois os mais frágeis morrem e os mais jovens vão aguentando e essa será a sua forma de “vacinação”.
E a seguir o que se segue? Uma pandemia cada vez mais forte que a última?
Álvaro Pereira: Não sei, mas isso não me assusta, não saber o que me espera.
Mesmo se pensar na perspetiva de pai?
Álvaro Pereira: Mesmo assim. Sou um otimista e cumpridor das normas, acredito nas Instituições, como a OMS e vejo-as de forma realista. E basta olhar para a geração dos meus avós e perceber que há grandes mudanças na Saúde. Repare, na altura dos avós, quantos filhos sobreviviam de uma família numerosa? Morriam vários ainda novos. Alcançamos um nível de civilização que nos afastou dessa precaridade de vida, retrato que agora permanece apenas no terceiro mundo. Agora, mesmo com base neste cenário, não sei o que nos espera, ou que está reservado para a vida, ou para a morte, apesar de muitos não gostarem de olhar para a morte. Sabe que os médicos não sabem falar da morte. Nem eles gostam de falar.
Também não gosta de falar da morte?
Álvaro Pereira: Eu falo e sou franco com os meus doentes. Sinto que há sempre uma conversa que eu preciso de ter com eles, sobre os tratamentos que podemos fazer, até onde podemos ir.
E quem está doente aceita bem que se fale da morte?
Álvaro Pereira: Se falarmos mais perto do fim, é mais complicado, não é bem recebido, mas com antecedência é mais fácil e os doentes valorizam mais o tempo e as opções a partir daí. As pessoas pensam e confrontam-se com pensamentos, ninguém está esquecido do tema. Veja uma coisa, eu próprio penso… alguns amigos meus que já partiram e tinham precisamente a minha idade. Eu penso nisso.
Pensa no seu próprio fim?
Álvaro Pereira: Sim, mas não me inquieta. Penso com alguma paz de espírito, mas não o faço regularmente.
Foi sempre o equilíbrio entre o divino e o realismo das coisas como médico que é, que o fez sempre encarar a vida de frente. Não espera pela providência divina para que no mundo algo aconteça, põe ânimo e intenção e acelera o processo das suas vontades. Desígnio que a um médico pertence, trabalha e vive na base dos vários cenários possíveis, sabendo que a cada cenário haverá sempre outros múltiplos possíveis desfechos.
Pelo caminho que foi perseguindo, talvez pudesse ter mudado o rumo e ter seguido apenas para o privado, onde faria muito mais pelo seu investimento próprio, mas há nele um sentido de dever que não afirma, mas que fica claro pelas raízes de onde vem, pelo papel que aceitou desempenhar diante dos outros, por si mesmo.
Homem de família, líder natural, puxou a si a missão de algo que, não podendo mudar sozinho, comanda sabiamente, mesmo sabendo que há barcos que não sobrevivem a qualquer tempestade. Mas por ironia ou não da sua escolha, é precisamente pela tempestade que é feito de fibra, é na tempestade perfeita que sabe que dele sairá o melhor que tem para dar.
Por estas pessoas passa ainda a salvação do pesado e gasto barco que se chama Serviço Nacional de Saúde.
Joana Sousa
Equipa Editorial