O Miguel Brito Lança é aluno de Medicina e tem nele um carimbo enraizado, com história e tradição.
Aceitou interromper as sessões contínuas de estudo de uma fase de exames que só terminam a 12 de julho, para vir falar comigo. Aceitou fazê-lo porque tem orgulho em falar da sua herança familiar e que lhe vem de Beja de onde é natural.
Antes de nos conhecermos perguntei como nos iríamos identificar à primeira vista, para mim foi desde logo evidente, sentado num banco do corredor, esperava por mim um rapaz empático de mochila cinzenta e que aproveitava para abrir um dossier tão vasto de folhas que mal dava para fechar.
2017, no Dia da homenagem a Jacinto Brito Lança
O culpado de toda esta nossa conversa é o avô Jacinto Brito Lança, que faleceu com 92 anos, tinha o Miguel uns 13. Médico de grande referência nacional na sua altura, foi-lhe feita uma homenagem em 2017, atribuindo o seu nome à Biblioteca do Hospital José Joaquim Fernandes, em Beja, mas tendo já recebido em vida, pelo Ministério da Saúde, a medalha de ouro por Serviços distintos, no ano de 2006.
Beja… esse lugar que marcou tudo, talvez.
“Se calhar não sabe quem foi o meu avô, muita gente não sabe, mas não é só um Prémio Nobel que dá razão de existir à Medicina, muitos antes e depois deles a compõem”, explica-me, discreto, mas orgulhoso.
O avô paterno Jacinto é património seu, não só do país e isso eu já sei.
Jacinto Brito Lança
Filho de agricultores, Jacinto Brito Lança, nunca negou a sua paixão pela medicina, fazendo da sua vida um estudo cíclico de novas considerações científicas, aconselhando outros médicos sobre os melhores procedimentos a ter e assumindo-se sempre, humildemente, como Gastroenterologista e médico Internista de excelência. Isso explica que tenha escrito pioneiros artigos científicos e sido uma referência de renome nacional. Conhecido como o pupilo do Professor Ducla Soares, o avô Jacinto foi médico no Hospital de Santa Maria, Professor na Faculdade de Medicina de Lisboa e Chefe de Clínica e de Serviço Hospitalar. Seguiram-se outras tantas funções já no Hospital de Beja que abria em 1970. Aí assumiu o cargo de Diretor do Serviço de Medicina I, foi responsável pela formação de médicos, ficou à frente do Serviço de Sangue do mesmo Hospital, assim como foi o primeiro responsável da Unidade de Endoscopia e não menos importante, iniciou o Programa de diálise em Beja. Mas a vida nesta terra alentejana não retirou as idas regulares do médico Jacinto Brito Lança, que mantinha rondas ao Hospital Pulido Valente onde só após visitar determinadas enfermarias se tomavam algumas decisões médicas.
Miguel tem a quem beber o conhecimento e o berço. Conta que o avô era extraordinário semiologista, sabendo tirar ilações de diagnóstico numa altura em que métodos complementares de diagnóstico como a TAC ou a Ressonância começavam só agora a dar os primeiros sinais. Do avô recorda algumas breves histórias, numa altura de miúdo em que não sabia ainda nada dos termos técnicos, nem tomava consciência da importância da pessoa que tinha diante dele.
A história viaja-lhe no entanto no sangue, já que a memória é mais curta, não me sabendo dizer se aquilo que carrega significa estar no seu código genético, ou se no que o ouvido apanhou do passado. Uma coisa Miguel sabe, que dá passos no mesmo solo que foram outrora do avô, ambos estudantes da Faculdade de Medicina, apenas o famoso Dr. Jacinto estudara na altura noutra morada, no Campo de Santana. Miguel sabe também que o Alentejo lhes pertence, como património cultural e ético. Ético sim, porque o Alentejano é um português com o coração pleno e alma sábia, vê a vida com um sabor compassado, dá tempo ao tempo se ele, o tempo, quiser ir mais adiante, não competem, respeitam-se. E Miguel não é Alentejano de exceção. Se o avô Jacinto se mudou de armas e bagagens com mulher e 5 filhos para Beja, já o Miguel nasceu na terra e respira-a ainda hoje, naturalmente, soltando-a em pequenas expressões com sotaque que não lhe negam a origem e a bondade.
Mas a história não fica pelo avô do Miguel.
Primeiro rapaz, Jacinto filho nascia, tinha já o seu pai Jacinto Brito Lança 50 anos. Único da família a formar-se em Medicina, decidiu que ia fazer vida em Coimbra, formando-se em Oftalmologia, mas deixando um amor já antigo e que não voltaria mais a largar, a Isabel, mãe do Miguel, e também ela médica, mas Pediatra.
De um amor de médicos com vida em Beja nasciam 4 filhos que dariam continuidade ao rumo iniciado pelo avô Jacinto.
O mais velho de 4 irmãos, Miguel fala da família com um sentido de responsabilidade e pertença que lhe são instintivos, como um felino que vigia o seu clã e o protege, depois de ter ele sido sempre protegido, acarinhado. Leal aos rapazes, o Pedro e o Vasco, é a Inês, a irmã mais nova e a mais arrebitada, que lhe estremece os olhos. Mas entre eles nada há de picardias ou rivalidades, adoram-se, completam-se como artérias que se cruzam num só corpo e o põem a funcionar mais perfeito se estiver tudo junto.
Conta que a mãe nunca os incentivou a seguir essa tão familiar Medicina, pela rigidez e exigência da formação, mas obstinados e porque a herança não se nega, os filhos Miguel e depois o Pedro, mostraram que seriam peixes a nadar, como os pais já tão dentro de água. Miguel agora no 4º ano e Pedro no 2º, estão ambos em Lisboa, na Faculdade de Medicina. Depois, ainda há o Vasco, o irmão mais novo dos rapazes, o mais dado às poupanças e às contas, diz o Miguel, não se sabe no entanto se não seguirá ainda um destino que parece ser regra quase geral, a Medicina. Mas a ver vamos.
Ponderado e sem demasiada pressa para correr à frente do tempo, Miguel Lança nunca se pressionou a escolher o seu futuro e parece que foi sempre assim, desde miúdo. Chegou ao 12º e quando questionado sobre as escolhas, sabia apenas que seguiria a área das Ciências. Nas férias do verão em que tinha de fazer a escolha final dizia que ainda não sabia o desfecho exato, pensava nas palavras “Medicina” e “Engenharia” como bolas de ping pong a saltitar, mas cujo batuque só lhe dava um eco, sem resposta. Foi apenas no último dia possível de fazer a opção que escolheu ir para Lisboa, para a FMUL. Estava de férias no Algarve e aproveitou “o cantinho dentro da casa que lhe fazia apanhar a internet do café lá do andar baixo” e assim escolheu. Entrou na primeira opção. Se na altura não sentiu medo da decisão, hoje por vezes uma ligeira dúvida o assombra se terá escolhido o caminho certo, depois olha para os seus alicerces e diz-me com um sorriso que “só poderia ser mesmo isto e ainda por cima em Santa Maria”.
Miguel diz que “faz tudo em cima da hora, mas que anda a melhorar essa parte” e que não tem pressa excessiva, nem anda agitado, é das terras de sul, as que balançam a alma como as searas numa leve briza de calor. Lisboa não conhece este ritmo e ainda hoje e passados 4 anos há quem lhe diga que continua a andar devagar.
Adora a sua Faculdade que apelida espontaneamente de “fixe” pelas inúmeras atividades lúdicas, pedagógicas e culturais que tem, faz questão de salientar que é Instituição única de tão diversificada que é e pelos amigos que lhe deu. No entanto, diz que nunca poderia ser um elemento integrante da Associação, já que o seu perfil é outro. Quase a terminar este 4º ano diz que fala praticamente a mesma linguagem médica dos pais e que ao observar aquele Miguel que entrou no 1º ano, há algo profundamente mudado nele. E não é só o facto de ser Monitor de Anatomia e Neuroanatomia, e por ter cada vez mais interesse por cumprir esta sua nova faceta pedagógica, onde dá peer teatching através do Solvin’it aos outros alunos, é porque olha para o outro com um respeito que lhe é crescente.
O Miguel fez um esforço inglório para vir ao meu encontro, em cima de exames, mas entendeu que para se conhecer alguém, não se pergunta quem é a pessoa à distância.
Sensato diria. Inteligente, também o é outro tanto.
Disse-me há pouco que a mãe não queria que seguisse Medicina porque seria um caminho duro e já o confirmou. Disse-me, inclusivamente, que aprendeu a ser resiliente. Como é que se aprende isso?
Miguel : A minha mãe queria proteger-nos, não queria que passássemos pela pressão que todos passam quando chegam aqui. Mas agora tem imenso orgulho, claro. Mas essa pergunta é boa… (Fica a pensar e pergunta alto) Como é que eu aprendo a ser resiliente? E depende, umas vezes penso que no futuro posso fazer a diferença na vida dos outros, outras vezes travo batalhas de confiança comigo mesmo e penso, “tu consegues, tens de te superar”, outras vezes penso que se outros fizeram, então, eu também devo conseguir. É um exercício psicológico porque é comigo, é entre mim, é silencioso.
Fazer um exame de 4 horas da Prova Nacional de Acesso à Formação Especializada é o cúmulo da resiliência?
Miguel: Completamente. Como é que em 4 horas nós estamos a decidir o que vamos fazer para o resto da vida? Claro que nessa altura já somos médicos, mas prova nacional de acesso à formação especializada é, de facto, um sofrimento…
Tira muitas dúvidas com os seus pais?
Miguel: Imensas dúvidas e sinto-me um privilegiado por ter os dois pais médicos. Eles têm imensa iniciativa para me quererem também explicar o porquê das coisas.
Como é que se chega a Monitor logo da cadeira que muitos consideram a mais difícil de todas, Anatomia?
Miguel: A escolha é feita pelo Professor, logo aí tem um cariz algo subjetivo, e depois pesa a nota do exame prático, nota do exame teórico. Acho que são esses critérios… (Fica a pensar) Foi uma das minhas motivações para o estudo da disciplina quando estudava juntamente com um colega meu, que também assim o desejava. Eu concorri e entrei, felizmente.
Se calhar também é preciso um bocadinho de jeito, vocação…
Miguel: Eu gosto disso. (Sorri) Pronto. Recordo a Anatomia do primeiro ano e comecei a perceber que me era muito fácil explicar aos outros o que aprendia, mas, acima de tudo, que isso me dava prazer. E então a partir dessa altura comecei a investir no desenvolvimento das minhas capacidades pedagógicas.
Miguel será que há no nosso ADN uma partícula que justifica quem somos profissionalmente?
Miguel: Ai… Opá… Tchiiii. (Ri) Isso é uma pergunta muito difícil. A nível ambiental sem dúvida, é a nossa partilha de experiências com os outros que nos influencia. Depois se falarmos de ADN, diria que haverá uma transmissão de genes relacionados com a curiosidade, ou com as áreas mais científicas, ou de contacto humano. Mas claro que se os pais forem mais ligados ao meio artístico, aquilo que passam também será mais artístico. Isso vem na vivência. Agora se será possível distinguirmos os genes que determinam o nosso percurso profissional, acho que é uma questão que ainda não tem uma resposta.
Profissionalmente tem medo de algumas jornadas que o esperam?
Miguel: Tenho medo sim, de não estar preparado para enfrentar casos complicados com pessoas. E digo-o emocionalmente. Tenho alturas em que estou a estudar algo e penso, “daqui a uns tempos vou estar com um doente à minha frente e vou ter de saber aplicar esta ideia a este doente em concreto e com responsabilidade acrescida”. À medida que aprendemos, ao longo do curso, eu noto uma evolução enorme em todos nós, do 1º para o 4º. É como se já tivéssemos uma noção mais real do que nos envolve, somos mesmo outras pessoas.
E isso faz com que olhe de forma diferente para quem está diante de si? Assumindo que o outro aqui é alguém frágil, doente, se calhar sozinho e que sente dor?
Miguel: Esse outro sempre me inspirou respeito. Mas cada vez mais me inspira respeito e esforço para agir. A diferença é que antes me causava preocupação e dó e agora já tenho algum conhecimento que me permite fazer mais alguma coisa. Mas emoção sempre senti ao ver alguém num estado grave, penso logo na família dessa pessoa e no quão vulnerável o ser humano pode tornar-se. É por isso que ser médico, e desculpe a minha presunção, é mesmo a carreira mais bonita, porque jogamos com várias competências. Às vezes, à medida que o tempo avança na carreira de um médico, o respeito parece ir desvanecendo e eu acho que é algo que não assim é tão consciente. A repetição faz com que se distanciem. Gostava de não ficar assim. Espero não perder a motivação de estar cá para o outro. Sabe que eu acho que às vezes eu e o meu irmão Pedro acabamos por dar um pouco de motivação aos meus pais? Somos nós que os voltamos a motivar!
Perspetiva interessante. Refrescam a rotina deles, como que se os inspirassem de novo?
Miguel: Porque eles voltam a acreditar na essência das coisas. Depois há outras coisas giras, vou ter com os meus pais e estudo com eles, observo-os e na interação deles com os seus doentes e ganho imensa experiência só nessa observação. Já viu o privilégio que eu e o Pedro temos? E depois o facto de eu estar ali a puxar pelos meus pais, até em matérias que eles já nem se lembram, também lhes dá ânimo. A minha mãe tem muitos internos, mas ter ali o seu próprio filho como interno já lhe é diferente, obriga-a a ver coisas de outro prisma. Às vezes chamo-a a atenção e peço que veja a forma como fala com os internos, porque está cansada e nem se apercebe do tom e ela dá-me razão. Quanto ao meu pai, o facto de pedirmos para ler algumas matérias ou para nos esclarecer algumas dúvidas, acaba por o estimular a descobrir novos caminhos. Mas sem dúvida que os pais nos ensinam imenso!
Os pais médicos sabem sempre mais que os filhos médicos?
Miguel: (Silêncio) A nível teórico, a nível da “molécula da molécula” talvez não, porque o conhecimento se recicla. Mas a experiência sabem-na dez vezes mais. De que me serve saber da última molécula se depois a experiência não me ensinou a aplicabilidade das coisas?
Tem saudades da sua terra?
Miguel: Cada vez mais… No primeiro ano de curso fui a casa umas 5 vezes, no segundo ano fui umas 20 vezes. Agora no quarto ano vou todos os fins-de-semana. Sinto mesmo necessidade de ir a casa, é o meu porto de abrigo. Cá em Lisboa não me sinto realmente em casa, embora tenha ao meu lado as pessoas certas que me fazem sentir o mais próximo possível essa sensação. Em Beja é diferente, vou ao quintal, ou à cozinha, vejo a minha família e sinto-me em casa.
Do avô tem a referência do tempo e do equilíbrio entre a falta de pressa e a qualidade de ouvir a vida. Tem também a exigência do rigor e a capacidade de olhar o outro e estudá-lo a fundo. Sabe que não será investigador atento como o avô Jacinto, mas quem sabe ele lhe inspire a seguir uma das suas especialidades da altura?
Da história de amor dos pais, que sendo da mesma terra e tendo estudado em cidades diferentes, se voltaram a juntar, sabe que talvez não regresse a Beja para exercer clínica, mas talvez encontre um lugar próximo de Lisboa onde o tempo seja menos gritante e o silêncio traga conforto extra, porque também ele tem uma história de amor que segue mais uma vez o caminho genético dos seus.
O Miguel sente falta da sua terra, essa é a verdade, como na terra onde se entranha a água e a oliveira, o Miguel acredita que há qualquer coisa nele enraizado que não tem a certeza se tem explicação científica, mas tem fundamento num raciocínio que mistura a lógica com a emoção. Se o avô não tivesse sido quem foi e se os pais não fossem médicos, seria o Miguel o médico que vai ser?
A cada dia que passa e que se vai tornando mais médico, vai-se conhecendo melhor ser-humano.
Quando sair desta conversa o Miguel vai ler e reler os temas que sairão no exame de Cirurgia Geral, Vascular e Plástica. Eu espero que isso em nada o prejudique porque ele não veio desfilar qualquer tipo de vaidade, foi, tão somente, disponível, generoso com o nosso trabalho, então que o dele seja também o melhor!
Já eu não sei se passei no teste deste discreto Monitor, mas que o meu mundo enriquece a cada relato que ouço, isso é caminho ganho, é tempo que jamais alguém me apaga e tal como ele me relembrou, o gosto é de saborear esse tempo, devagar…
Obrigada Miguel.
Joana Sousa
Equipa Editorial