Fez a Prova no ano passado, o último Harrison, não ficou apurado por 1%. Não tendo vaga para escolher uma especialidade, José Durão decidiu repetir o exame este ano, passando por um novo processo de estudo. Do antigo livro comumente chamado de Harrison (Harrison's Principles of Internal Medicine) que compilava 5 grandes capítulos, e essencialmente focando os conteúdos para a Medicina Interna, passou a ter de estudar 8 diferentes livros e a saber juntar as peças do raciocínio clínico para chegar a uma conclusão.
Descomplicado e pragmático, sabe avaliar muito bem a sua própria situação, lamentando no entanto, que este ano de pressão em que se estuda e se faz a Prova leve alguns a uma pressão tal que cause o esgotamento.
Na sua perspetiva não há futuros aterradores, há que saber olhá-los e encontrar caminhos e não ter medo de tomar decisões.
Foi o que este ex-aluno do 6º ano da FMUL fez.
O que é que se sente quando se olha para uma tabela de resultados e se percebe que não se entra por escassas décimas depois de um ano inteiro a estudar?
José Durão: Bom, vale a pena dizer que não me incluo propriamente no grupo dos meus colegas que tentou, corajosamente, mais do que uma vez obter um bom resultado na prova. Não o posso considerar assim, uma vez que quando estudei pela primeira vez, para o último Harrison, não estava realmente dedicado à prova. Em 2018 fiz parte da Direção da Associação Nacional de Estudantes de Medicina (ANEM) e, embora tenha acompanhado o meu grupo de estudo, tenha visto a matéria toda pelo menos duas vezes e tenha tentado intercalar o melhor possível as duas vertentes, a dedicação estava acima de tudo na ANEM e já mesmo antes do dia do exame eu estava convencido de que iria repetir a prova no ano seguinte. Desisti do concurso ainda antes de as classificações saírem, por ter a sensação que não iria ter nota suficiente para escolher especialidade, e acabou por ser quase tragicómico que o último colocado este ano tenha tido 57% no Harrison, dado que eu teria tido 56%. Ainda assim, consigo imaginar o sentimento de inutilidade de um ano e a frustração de quem estava verdadeiramente empenhado no seu estudo e não conseguiu alcançar o resultado que pretendia, em muitos casos nem sequer o resultado mínimo para poder escolher uma especialidade. Pode ser uma situação complicada de ultrapassar, mentalmente falando. Num mundo ideal - ou num SNS ideal - tal não aconteceria. Somos muitos e não há espaço para todos, é um facto. Não é culpa nossa e não é algo que console quem fica de fora do concurso, pelo que julgo que facilmente surgem, face ao insucesso, as questões existenciais: Porque é que eu tenho de ser um dos que não tem vaga? Porque é que não me deixam ser médico? Eu também consigo ser bom profissional, só quero entrar numa especialidade, porque é que não abrem mais vagas? E por aí fora… Não é à toa que cada vez mais recém-graduados decidem emigrar. Não só há melhores condições de trabalho e de vida em muitos sítios lá fora, como a perspetiva de passar pela incerteza, insegurança e possível falhanço da prova de acesso à especialidade é simplesmente demasiado negra para ser enfrentada. Ao fim e ao cabo, é um processo que pode muito bem ser destrutivo para a saúde mental do indivíduo. Não julgo ninguém que, tendo outras opções, não queira passar por ele, muito menos mais do que uma vez.
Ainda assim passou dois anos seguidos de estudo. Quais são os métodos? Há técnicas /ou rotinas mais adequadas?
José Durão: Como o primeiro ano não foi totalmente um estudo intensivo, ainda assim, fui sempre tentando acompanhar, pelo que foram praticamente dois anos a estudar. Ao passo que em 2018 me limitei a ler o livro e acompanhar com alguns cursos, este ano procurei criar uma estrutura de estudo mais forte. Como decidi não iniciar a Formação Geral em 2019, o principal desafio foi gerir o tempo livre. Estabelecer um ritmo e um plano de estudo desde o início são essenciais para evitar ficar assoberbado pela quantidade de matéria. Não há propriamente um método ou técnica ótimos, acho que o melhor conselho é mesmo que cada um continue a estudar como sempre estudou melhor ao longo da Faculdade e confiar no método escolhido. A bibliografia é muita, há livros de perguntas, há cursos, há plataformas digitais, há flashcards, a lista é enorme... Não dá para ver tudo e não há um número mágico de "voltas à matéria" que devam ser dadas, pelo que é uma questão de escolher o que mais se adequa a cada um, planear, estabelecer metas e cumpri-las o melhor possível, ignorando um bocado o que as pessoas à volta estão a fazer. É optar pelo que for mais confortável e seguro para cada um. E continuar, na medida do possível, a viver a vida, a fazer coisas além do estudo, que permitam manter algum grau de normalidade. Ninguém gosta particularmente deste ano de estudo e é bom lembrar que é só mais um exame. É um exame importante, sim, mas não define ou não deve definir minimamente ninguém. É uma noção importante a manter em mente, especialmente para quem "falha" após muito tempo de estudo.
No processo longo de preparação, há muitos silêncios e possivelmente a maior parte do tempo de “solidão”. Pode contar-me o que se passa na cabeça de uma pessoa quando se atravessa este ano (s) de preparação?
José Durão: Acima de tudo, penso que é a incerteza, a dúvida constante de não se saber bem como vai ser o exame, a que é que se deve dar mais importância no estudo, quantas vagas existirão, quantas pessoas quererão a mesma especialidade, etc. Há muitas questões ao longo do processo, por vezes são demasiadas e começam a afetar a estabilidade do estudo. É preciso alguma força mental para conseguir separar as águas, ignorar essas vozinhas de insegurança e continuar a estudar, a acreditar que vale a pena estudar. O acesso à especialidade ganhou uma competitividade que não existia quando eu comecei o curso e o nervosismo cresce de ano para ano. No meu caso, penso que ter um grupo de estudo mais ou menos constante ao longo do ano foi provavelmente dos fatores positivos mais importantes. O estudo pode tornar-se muito solitário e é mais fácil ceder às dúvidas estando isolado. Eu nunca fui de estudar sozinho em casa, suponho que para alguns seja natural. Acredito que chega uma altura no estudo em que qualquer um sente necessidade de desabafar as suas inquietações e ter um bom suporte emocional em redor pode fazer a diferença. Ao longo dos anos, vamos tendo conhecimento de colegas que necessitam de ansiolíticos, sedativos, psicoterapia, estimulantes, chegam ao ponto da exaustão mental que simplesmente os faz perder o norte. Felizmente, são poucos os casos mas a verdade é que nada disto deveria ser necessário, nada disto é suposto porque sublinha a pressão mental fora do comum que este exame coloca sobre os candidatos. Acredito que muito tenha a ver com a competição e a falta de vagas, dado que o exame até se faz tranquilamente sem nada disso. As condições de acesso é que simplesmente não são as mais favoráveis. Aliás, são-no cada vez menos.
Que especialidade gostava de seguir?
José Durão: Um pouco fruto do meu historial associativo, mais ligado a projetos de intervenção e ao interesse pessoal por impacto a nível mais global, bem como por nunca me ter identificado particularmente com nenhuma especialidade clínica, o objetivo é seguir Saúde Pública, seja cá ou lá fora. Neste momento, está um pouco dependente da nota desta nova prova mas o que é facto é que uma especialidade que me dá mais facilmente a mobilidade de andar um pouco por todo o lado, aliado ao gosto pela chamada global health. Como me habituei a descrever: consigo apreciar a Medicina mas o que gosto mesmo é de Saúde. Não é, ainda, uma especialidade muito procurada pela maioria dos meus colegas, de todo, o que também me deu sempre mais alguma tranquilidade quanto ao acesso à mesma. Neste momento, é esperar para ver o que resultou do que foi feito no dia 18 e logo se planeia o que fazer da especialidade e da carreira. Uma coisa é certa: nada se esgota neste exame e há muitos caminhos que se podem seguir numa carreira em saúde.
Joana Sousa
Equipa Editorial