As aulas de Jubilação são sempre momentos de mudança de ciclo na vida de quem as apresenta na primeira pessoa.
Nelas há sempre uma parte de despedida, de sabor a saudade, de resumo de carreira, de assinatura da obra feita e a perspetiva do que a vida ainda reserva.
Nesta últimas lições que se dirigem a um público mais heterogéneo, sente-se quase sempre o privilégio de estar diante daquela personalidade brilhante que tanto fez para naquele dia se poder jubilar, em glória. Esta última lição de Jacinto Monteiro soube, assim, a lição de vida.
Professor Catedrático de Ortopedia da Faculdade de Medicina da Universidade de Lisboa, e já há 18 anos Diretor do Serviço de Ortopedia do Centro Hospitalar Lisboa Norte, Jacinto Monteiro é figura ímpar para todos, pela gentileza e descrição, sem nunca deixar fugir o método regido a regra que o tempo não deixa descuidar.
Ao vasto currículo acrescem-lhe outros méritos e responsabilidades que por ele passaram: Chairman da Shoulder and Elbow Committee a nível mundial, membro da AO Foundation (escola internacional de Educação Cirúrgica), membro efetivo do Conselho Nacional Médico-legal desde 2008 (onde dá pareceres médicos para decisões legais), Presidente da Sociedade Portuguesa de Osteoporose e Doenças Ósseas, Presidente da Sociedade Portuguesa de Ortopedia e Traumatologia, Examinador da EBOT (European Board of Orthopaedics and Traumatology). Academicamente pertenceu ao Conselho de Escola e Conselho Científico e foi figura muito presente em dezenas de provas de Agregação, não só na FMUL, como na Nova, inclusivamente noutras faculdades como a de Veterinária e Farmácia da Universidade de Lisboa. Pelo percurso clínico passaram-lhe ainda 5 meses da Direção da Cirurgia Plástica, a Direção da Urgência e integrou três Direções Clínicas.
Apresentado pelo Diretor da Faculdade de Medicina, Fausto J. Pinto, que frisou o orgulho de ver tantos alunos na Aula Magna para que “se perpetuasse as boas mensagens para as gerações futuras”, foi ao encontro do próprio pensamento do Professor Jacinto Monteiro sobre o estado da Saúde em Portugal, reforçando que é preciso continuar a “transformar a resignação em resiliência” nos mais jovens, estes que serão o futuro da Medicina. Questionando ainda se o verdadeiro Hospital Universitário não deverá ser aquele que não apresenta tantas deficiências e desigualdades orçamentais entre Hospital e Faculdade, fruto de um sistema político também ele ineficaz.
Jacinto Monteiro falara, aliás, dessas mesmas preocupações sobre o sistema da Saúde num artigo recentemente publicado no Jornal Expresso. Sobre o equilíbrio do que deve ser um Hospital Universitário reforçaria mais adiante a ideia na sua aula, repetindo, “sempre entendi estar aqui de corpo inteiro”, explicando que se deve assumir com a mesma seriedade a carreira hospitalar, como a académica.
Homem que começou por viver em Ourique diz-se ainda hoje um “rural urbanizado”. Depressa a necessidade de ganhar conhecimento na experiência com o mundo o fizeram ir mais além. Inglaterra foi sempre um desses lugares eleitos e onde na sua altura se aprendia muito com o Serviço Nacional de Saúde, agora ele também em colapso. Foi aí que percebeu que era preciso sedimentar a Ortopedia como especialidade em Portugal.
Apesar de ter contactado com alguns mestres da área como o Prof. Jorge Mineiro, com quem acabou por estar pouco tempo, foi com o Prof. José Maria Vieira que Jacinto Monteiro viria a ser revelação.
Na verdade já tinha o essencial com ele, preocupavam-lhe as pessoas e “o capital humanista”. Não é em vão que diz que para ele “não se operavam radiografias, mas doentes. Sou cirurgião, mas defendo o primado do doente”, referiu, “e é o doente o melhor gestor da sua saúde”. Com isso queria afirmar que nem sempre a cirurgia era e é a melhor resposta que o doente precisa, “depende do doente que temos diante de nós”, reforçou. Deixou claro igualmente que ao longo dos anos se fizeram demasiadas cirurgias que podiam ter sido evitadas, “há que operar melhor e não mais e mais”.
Voltemos à sua viagem no tempo em que se foi apurando em subespecialidades dentro da Ortopedia e que viriam a mudar o paradigma para o próprio doente. Foi a cirurgia do ombro e cotovelo, que fez com que os doentes deixassem de viver com a dor permanente, tratados até então com infiltrações e quase sem movimento, “o ombro sempre foi a minha dama”, afirma. Foi precisamente a patologia do ombro que o fez desenvolver os seus estudos para as provas de Agregação. O ombro passou inclusivamente a ser a subespecialidade mais procurada de todas dentro da Ortopedia. Jacinto Monteiro é ainda especialista no trauma ortopédico, matéria que categoriza como “uma das maiores epidemias da Saúde Pública”, bem como nas doenças metabólicas, como a osteoporose. Sendo Portugal um dos países mais envelhecidos do mundo e com a probabilidade de vir mesmo a ser, em 30 anos, o mais envelhecido de todos, a osteoporose não é tema leve, “problema que afoga as urgências” e que muitas vezes não permite sequer chegar à cirurgia, “já que o osso não tolera agressões sucessivas”. Por fim o seu mais recente foco foi para os biomateriais e a Artroscopia, outra forma de cirurgia ortopédica, menos invasiva, “é o day-surgery, vem de manhã para ser operado e à noite já vai para casa”. Foi, aliás, tema da sua tese de Doutoramento onde fez ligação à Engenharia, razão pela qual dá igualmente aulas no Técnico.
“Ortopedia – Reflexões sobre o passado, o presente e o futuro” foi mote que deu na última aula. Mas como falar em futuro da saúde diante da sua própria crítica ao Serviço Nacional de Saúde? “Entro em crise (no Hospital) e saio em crise”, afirma, “são precisas mais camas, mais implantes e equipamentos para operar, mas isso tem, claro, mais custos. Saio com muitas preocupações com as políticas de saúde, no entanto com equipas competentes e respeitadas”.
Certamente sem resposta, ou pelo menos sem a visão mais positiva para o que se espera da Saúde Pública, depositou um olhar comovido para os seus sucessores.
Visivelmente emocionado ao falar da família e dos alunos que deixa, não deixou de manter o sentido de humor até ao final do seu discurso.
Assim saberemos que apesar de ser apaixonado pelo ténis, a sua revelação parece estar na dança, “há quem diga que sou mesmo o rei do Tcha-tcha-tcha”. Terá ainda “o grupo dos amigos das sardinhadas”, a sua única filha Joana e os três netos. E a Sara, a mulher, “que fez este percurso que foi meu, mas também o dela”.
Num momento final de despedida, na sua casa de sempre, foi acolhido com uma ovação sentida, enquanto recebeu o medalhão jubilar, como forma de agradecer ao homem, ao médico e ao Professor que “sempre tentou responder a tudo, presente!”.
Joana Sousa
Equipa Editorial