Encontramo-nos na biblioteca das neurociências, pois foi lá que gravámos parte do vídeo onde aparecia como um dos protagonistas do institucional da Faculdade.
Chama-se José Charréu, mas rapidamente percebemos que o próprio estranha se o chamarmos José.
Rapaz tímido e reservado diz que precisa de ganhar confiança no começo para depois poder ser expansivo. Irrepreensível a fazer o que quer que seja, só dá algo como concluído se tiver a certeza absoluta que correu bem, senão tenta, sem desmoralizar, mas a falta de perfeição não lhe encaixa nas rotinas.
Conhecemo-nos em pleno verão, na altura para as gravações, peço-lhe que não venha vestido de branco porque com a luz vai criar uma mancha demasiado clara na imagem. Mas o Zé aparece de branco e nem por um segundo me passa pela cabeça dizer-lhe que aquela cor não é a indicada. O próprio recorda-se então da conversa e pede poucos minutos porque vai trocar de roupa, enquanto se prepara o aparato técnico. O pólo branco é trocado por um bordô.
É fácil criar empatia com ele, sem se mostrar espontaneamente, tem muito cuidado com as palavras para não parecer presunçoso, mas sabe, sem falso puritanismo, avaliar as suas competências e isso torna-o genuíno. Às vezes, ainda cai na tentação de nos convencer que não tem grande aptidão para quase nada e se não soubéssemos à partida de algumas características, ficaríamos tentados a acreditar, tal é sua convicção.
Pequenino, com apenas três anos, entrou para o Colégio do Sagrado Coração de Maria e só saiu aos 18. A mãe é professora de francês na mesma escola e a responsável pela mudança de visual no dia das gravações do nosso vídeo; saiu de casa a correr para que o filho tivesse tudo da maneira certa, da maneira que ficava mais correta.
O pai trabalha na área financeira, mas não menos atento, na noite das gravações arrastou o trabalho até mais tarde, em compasso de espera para dar boleia ao Zé. Rapaz mimado diriam? Não, mas orgulho dos pais que lhe correspondem no seu empenho em tudo o que faz, a si e ao irmão mais novo agora com 17 anos. Há em todos eles um compromisso familiar inabalável a qualquer elemento novo que surja de fora.
Depois do Colégio seguiu direitinho para a Faculdade de Medicina onde já está no 4º ano.
Se no secundário ainda ponderou Engenharia, diz que as dúvidas se dissiparam quando ouviu "o bruxo". Calma, não é o convencional bruxo que pensamos, não lê cartas, nem os astros, mas sim os comportamentos técnicos dos alunos que o procuram.
Foram os testes psicotécnicos que lhe ditaram o rumo certo a tomar e conta essa história, como outras tantas suas, sempre entre a graça e a reserva que tentamos sempre descodificar. Depois de um dia inteiro de testes e entrevista, foi-lhe traçado o perfil. Deu como primeira opção que seguisse Medicina, e ele seguiu. Hoje tem a certeza da escolha exata que fez. Apesar de rir e de dizer que se calhar não é a resposta mais mágica que se dê, dizer que se escolhe um curso sem ser por inspiração.
Não gosta que se afirme que toca bem violino. Mas a verdade é que desde os 5 anos e até entrar na Faculdade, teve sempre aulas. Reforça que tocou por lazer e não de forma profissional. E, apesar de ter ingressado na Orquestra Médica de Lisboa, acabou por sair porque isso implicava prejudicar os treinos de esgrima.
Esgrima é o seu segundo grande foco. O primeiro seguramente, quando não tem que estudar tanto para o curso de Medicina.
Entrou na esgrima por influência do pai que era praticante da modalidade, precisamente por ter estudado nos Pupilos do Exército, escola militar e de grande tradição desportiva. O Zé começou com 7 anos e gostou logo da esgrima. Mal entrou no primeiro ano, participou em competições e diz que "até tinha algum potencial". Atualmente campeão nacional de esgrima e desde há 2 anos na categoria de sénior (categoria atribuída consoante a idade), soma mais 5 campeonatos na categoria de júnior, e outros 3 anos na de cadete. Internacionalmente não passa também despercebido. Como cadete chegou a ficar no 5º lugar da Europa e enquanto júnior no quadro 16. Tem um contrato de alto rendimento, para o manter sabe que tem sempre de ficar na primeira metade do campeonato da Europa ou do mundo. Como está em ano de apuramento para os próximos Jogos Olímpicos, tem a expetativa de manter o contrato, já que “vai dar tudo pela esgrima”, o que não significa que seja apurado, alerta-me, não vá alguém achá-lo eficaz demais.
É competitivo, sabe-o, afirmando-o entre dentes não vá o português trair as suas intenções, como se a competição fosse algo que trai o carácter; sabe que não, a competição é entre ele, para que se supere sempre no patamar acima de onde já estava.
Fala-me da esgrima porque percebo que continuas a treinar muito.
José Charréu: Para o nível em que me encontro agora (ainda no nível internacional) deveria treinar muito mais, mas só consigo fazê-lo uma vez por dia.
Achei que ias dizer que só treinavas uma vez por semana...
José Charréu: E também não treino aos fins-de-semana! Mas aí, se não tiver um congresso médico, ou uma competição desportiva, tento fazer reforço no ginásio.
O que é um treino diário de esgrima?
José Charréu: É das 19h às 21h. Todos os dias. Só parei um pouco com este horário no 3º ano do curso, quando apanhei uma Professora que gostava tanto, que não queria perder uma única aula dela. Depois da categoria de cadete, passei a júnior e aí baixei alguma qualidade, porque também comecei a fazer menos provas no estrangeiro. A Federação começou a ter menos dinheiro. E, se na fase dos meus 13 / 14 anos os meus pais investiram mesmo muito para eu me poder demarcar no estrangeiro, depois tiveram de abrandar até porque, também era necessário pagar as provas do meu irmão.
São os pais que financiam estas idas desportivas lá fora? Achei que eram as Federações.
José Charréu: Na minha altura a Federação não investia, diziam que a aposta era nos mais velhos. Mas agora que sou mais velho estão, de facto, a investir nas gerações mais novas. (Ri) O objetivo dos meus pais foi, então dar o empurrão inicial e esperar que depois a Federação trabalhasse mais comigo.
Sentes pressão do teu pai para que sejas o continuador daquilo que é a vontade dele?
José Charréu: Já senti pressão, mas não no sentido de continuar, até porque o meu pai nunca teve este peso da competição. Senti peso colocado por mim próprio e não pelos meus pais, eles nunca me colocaram nessa situação. O peso que sentia era, que investiam tanto em mim, que eu sentia essa responsabilidade do empenho, do retorno. Agora, que só vou a provas convocado pela Federação já não sinto tanto isso. Claro que, tenho uns pais exigentes, mas não castigadores, querem que eu me prepare bem, depois logo se vê o resultado final.
E têm conseguido bem passar-te essa mensagem, porque acabas o 3º ano com um Diploma de Mérito. Mas, enquanto gravávamos o filme, contaste-me que os teus primeiros anos não foram assim tão bons.
José Charréu: Quando entrei aqui, achei que por ter a esgrima numa fasquia de exigência alta, não ia ter grande sucesso académico. Talvez esse pensamento inicial me tenha derrotado um pouco.
Subestimas-te constantemente?
José Charréu: Se calhar sim e não estudava menos do que o faço hoje, mas como criei uma barreira mental, talvez isso me tenha prejudicado nos primeiros anos. Ainda assim confesso que, no 1º ano não achava as matérias tão interessantes. Funciono muito por estímulo, se gostar de uma determinada matéria consigo estar um dia inteiro a estudar, porque tenho boa resistência ao cansaço. O oposto também se passa, tenho muita dificuldade em estudar para cadeiras que não gosto.
De vez em quando tocas violino para matar saudades?
José Charréu: O meu irmão ainda tem aulas de violino e vai treinando em casa e às vezes deixa-o lá em cima da mesa e eu pego nele e toco aquilo que ainda me lembro.
Tocar violino é como andar de bicicleta? Ou seja, uma vez sabendo nunca mais se esquece?
José Charréu: O violino não é como o piano porque tem outros detalhes de afinação. Se no piano se tem memória de dedos, basta tocar na tecla certa que ela toca sempre o mesmo, no violino não é assim, tem uma barra que mal colocados os dedos, sai tudo desafinado. Mas a aptidão, acho que a pessoa nunca perde. Eu gosto muito de música e como o meu irmão também toca piano, às vezes, juntamo-nos e compomos umas coisas, depois gravamos de fundo um tom e por cima tocamos outra coisa para fazer umas misturas. Fica giro!
Como é que uma pessoa tão reservada como tu aceita expor-se num vídeo, sem qualquer medo do ridículo, ou mesmo receando tal, não deixa de ir para a frente?
José Charréu: Eu estava no campeonato do mundo quando me ligou o Zé, Presidente da AEFML. Na altura pensei que seria um convite para alguma coisa relacionada com a Associação de Estudantes, mas ele disse-me que era para um vídeo promocional. Ao início pensei, "não, não vou aceitar, não sou bom nisto", mas depois pensei que era um desafio e devia tentar. Além disso, achei que era uma honra poder representar a Faculdade desta forma. E no passado já tinha tido essa oportunidade de a representar em Taipé, nos Jogos Universitários, por isso achei que ia apenas dar continuidade a essa representatividade. Nós alunos criticamos alguns aspetos da Faculdade e pensei que era importante passar a sensação contrária. Porque, não está tudo mal e não é preciso mudar tudo.
Gostaste de te ver?
José Charréu: (Ri) Não gostei nada da minha voz, a minha voz não é aquela. (Ri) Mas agora que vejo, recordo tudo com imenso gozo e será uma memória que vou ter para sempre.
Ficas muito reticente em afirmar que és competitivo. Porquê, tens receio de ser mal entendido?
José Charréu: Eu tenho sempre muito cuidado com o que digo e penso muito antes de o fazer, porque é preciso cuidado com o que dizemos. (Sorri) A minha mãe chega-me a dizer que, às vezes, é demais. Mas sim... a competição é comigo, para que melhore sempre, mas não posso negar que o nosso desempenho está sempre relacionado com o dos outros. Mas a minha competição é saudável. Dou outro exemplo, às vezes estou imenso tempo a escolher a palavra certa para encaixar num parágrafo e fico ali às voltas, a pensar se é mesmo aquilo...
Isso é perfecionismo ou falta de confiança?
José Charréu: Sofro dos dois. (Ri abertamente) A partir do momento em que conhecemos um patamar de qualidade, não aceitamos muito bem descer dele. Incomoda-me muito.
Mas no desporto perde-se... Também te incomoda?
José Charréu: E eu sofro muitas deceções à conta disso... Imagina, se houve uma altura em que fomos muito bons e depois, em vez de progredirmos, olhamos e não vemos os resultados espelhados naquilo que nos empenhámos, isso é dececionante. Quando se sofre a derrota na esgrima, às vezes, é muito inglório porque os assaltos são 15 toques e uma pessoa pode perder 15 / 14 e tanto faz perder assim, como 15 /0. Aí, é um sentimento de frustração enorme. Mas depois, quando as coisas correm bem, somos muito compensados, ganhar é um sentimento muito bom. Nunca senti isto em mais lado nenhum, nem com uma nota no curso.
Porquê, no desporto a vitória é mais reconhecida publicamente?
José Charréu: Nem é isso, é a sensação de ter picos de adrenalina e depois sentir o alívio, saber que ela está a baixar. Essa sensação é muito boa.
Dizias-me há pouco que tens muito bem "os pés assentes no chão". Para quem tem um patamar tão elevado na esgrima, qual é a tua grande prioridade?
José Charréu: Apesar de estar em ano de preparação olímpica, se calhar, em algumas alturas, vou sacrificar um pouco mais a Faculdade, mas ela nunca ficará comprometida. O difícil de conciliar entre curso e esgrima, nem são os treinos ao final do dia, difícil é se tiver de me ausentar em provas no estrangeiro e aí não consigo preparar as aulas da semana seguinte. Depois fico atrás do comboio. Uma coisa que a esgrima me ensinou é que muitas vezes, quando regresso, tenho que aprender por mim, porque os outros não ficaram parados à espera que eu regressasse. É preciso ser autodidata e na Faculdade grande parte da forma de aprendermos é mesmo assim. Como já trazia essa bagagem não foi tão difícil adaptar-me a este ritmo de autonomia.
Já tens uma perspetiva exata do que queres seguir?
José Charréu: Nestes últimos tempos sinto mais afinidade pelas especialidades médicas e menos as cirúrgicas. As áreas médicas são vastas e essas prioridades ainda não estão estabelecidas. O que me desafia é a parte do diagnóstico, raciocínio clínico, é a construção mental que me interessa, mais do que a ação e a execução da técnica.
Mas não sou de fechar portas, talvez ainda mude de opinião.
No meio de tudo isto onde fica o tempo só para ti?
José Charréu: Não tenho muito. Não tenho aversão nenhuma a passar um dia a ver séries ou a jogar videojogos, mas simplesmente, não me posso dar a esse luxo.
No próximo ano o Zé tentará fazer Erasmus, rumo a França, talvez pela afinidade à língua proporcionada pela mãe, talvez também pela ligação aos avós, que não sendo franceses de nacionalidade, é lá que residem há muitos anos. Faz questão de dizer que é muito ligado à família e que isso o faz duvidar se ficará um semestre apenas, ou se estenderá por um ano. Sorri e diz que terá de aprender umas quantas coisas antes de sair de casa, "cozinhar, tratar da roupa" e não me diz mais porque isso "seria evidenciar demasiados pontos fracos".
Depois disso, seguir-se-á o 6º ano que o vai obrigar a recentrar-se no estudo para a preparação das provas de especialidade. Deixar a esgrima temporariamente? "Não, isso não, talvez reduzir a carga de treinos", diz-me como se chegássemos ao fim, sem eu ter entendido a verdadeira importância da modalidade para ele. Porque, não é só pela competição, é porque gosta de treinar e de estar com a sua equipa, é pelo gozo da adrenalina que continua a alimentá-lo todos os dias. Isso explica que jogue ainda por uma equipa de esgrima em Madrid e que arbitre provas, modalidade em que se formou igualmente, para completar aquilo que já dominava sobre as regras do jogo.
Quase no final da nossa conversa e depois de algumas horas em que fomos comunicando, acho que já posso arriscar e tentar fotografá-lo, enquanto vai falando. Mas não dá, pára de falar e fica direito na cadeira, desconfortável. Expô-lo, terá sempre de ser uma ação consentida e bem pensada pelo próprio e a timidez aparece logo a relembrá-lo que nunca se deve estar totalmente seguro de nada.
São essas as suas regras para estar na vida. São essas as regras do jogo. E, como tem sido quase sempre um vencedor, é bem provável, que esteja certo.
Joana Sousa
Equipa Editorial