Sabia que para conseguir encontrar o Professor teria de ser em meados de setembro, altura em que dá sempre a optativa de Medicina Humanitária, aos 3º e 4º anos do curso de Medicina.
Fernando de La Vieter Nobre, Presidente e fundador há 35 anos da AMI (Fundação de Assistência Médica Internacional), desenvolveu projetos em mais de 80 países diferentes. Formou-se em Medicina na Universidade Livre em Bruxelas (ULB), com especialidade em Cirurgia Geral e Urologia, tendo sido docente da mesma em Anatomia e Embriologia. E não obstante de exercer a sua atividade clínica na Bélgica, foi o primeiro português a ganhar o Prémio para Portugal, da Associação Europeia de Urologista. Foi ainda condecorado por dois presidentes franceses com a mais alta condecoração francesa: a Légion d‘Honneur.
Professor Catedrático Convidado na Faculdade de Medicina da Universidade de Lisboa, na verdade o seu grande carimbo histórico ficou gravado quando atravessou o mundo como Médico sem Fronteiras. Isso não lhe retira o reconhecimento científico apadrinhado, na altura, pelo Professor David Ferreira e reconhecido pela Faculdade de Medicina da ULisboa que lhe concedeu o grau de Honoris Causa. Ainda fez parte do Conselho Geral da Universidade de Lisboa, mas interrompeu-o um ano antes do fim do mandato, altura em que decidiu enveredar pelos caminhos da política. Nessa altura, suspendia também, e até hoje, o seu exercício enquanto Mestre do Grande Oriente Lusitano, a Maçonaria.
Começou a fazer ações humanitárias ainda com os Médicos sem Fronteiras, em França, experiência que levá-lo-ia a criar os Médicos sem Fronteiras na Bélgica. Percorreu o mundo, boa parte dele quando estava em guerra, nos locais onde nem as equipas de jornalistas queriam ir. Quando lhe pergunto se alguma vez teve medo, recorda com natural paz de espírito, um momento em Beirute Ocidental, onde operava num hospital subterrâneo, a mais de 500 metros de profundidade. Numa das noites, quando ia a sair, sentiu uma bala passar-lhe junto à orelha esquerda que, chegou mesmo a ficar raspada. Não fora um tiro perdido, mas um sniper especializado que o queria abater. A sorte ou o destino fizeram-no atirar-se para o lado onde o sniper o perdera de vista. Escapou por um triz o homem de 30 e poucos anos, já pai de duas crianças ainda tão pequenas para ficarem sem ele. Nessa altura, terá perguntado na fração de segundos em que lutava entre a ditada tentativa de morte e o destino, “que estupidez, o que é que estás aqui a fazer? Amanhã encontram-te aqui num charco de sangue e por que razão deixaste os teus filhos?". Nem esse medo do prazo curto de validade que se anuncia como se um produto alimentar fosse, o demoveu. Continuou.
Mas o que faz um homem assim seguir em frente, sem medo?
Fernando Nobre nasceu em Angola, na altura com estatuto de província ultramarina, a sua mãe é de origens holandesas vindas de França e, apesar dos 20 anos que o médico viveu em Bruxelas e onde teve os dois primeiros filhos (um casal), ainda assim, não aceita outra nacionalidade que não a portuguesa. Portugal seria o país para onde viria em definitivo e onde se casaria pela segunda e última vez, como fez questão de me reforçar, com Maria Luísa Nemésio, neta paterna do escritor Vitorino Nemésio. Desse casamento nasciam mais duas filhas.
Sai brandamente da sala de aula enquanto segura um chapéu e um livro que mais tarde me viria a recomendar vivamente a sua leitura (“21 lições para o Século XXI”, de Yuval Harari). Olho-o com estranheza… o Fernando Nobre que conhecera há 20 anos num programa de televisão em que nos falou apenas do seu lado de médico do mundo, tinha um rosto diferente… Diante de mim senta-se alguém cuja idade marcava a cor do cabelo e os traços gerais do rosto, com outra linha do olhar…Preparava a conversa para arrancar pelo caminho de ter sido médico de uma humanidade mais desprotegida, mas não cheguei a tempo, cortou-me a primeira pergunta com algumas explicações políticas. O único tema que eu tinha decidido não tocar.
Facto é que do seu CV faz parte esse papel. Pensei que não o quereria referir, mas não só me enganei como percebi que era um tema deveras importante. Era a 19 de fevereiro de 2010, que Fernando Nobre apresentava a sua candidatura à Presidência da República. Diz-me que acreditava que se poderia "recomeçar Portugal" e por isso entendeu que o Padrão dos Descobrimentos tinha essa simbologia, "porventura, demasiada ambiciosa”, refere-me. Inspirado em D. João II, o "Príncipe Perfeito", e seu Rei preferido, Fernando de La Vieter Nobre defendia que podia estruturar o seu país, deixando uma herança tão histórica quanto a dos tempos dos mares.
O candidato Nobre não ganhou, terminando assim a 21 de junho de 2011 o seu propósito. Desse tempo recorda um telefonema que fez ao então vencedor das Presidências, o Prof. Aníbal Cavaco Silva. Ligara a dar os parabéns, mas ainda hoje se abrilhanta ao referir que do lado de lá ouviu que, "havia dois vencedores. Cavaco Silva por motivos óbvios e Fernando Nobre pelos resultados que teve, sendo ele independente".
A política tinha vindo para ficar na sua vida, com 600 mil votos de confiança traduzidos em boletim. Em abril recebe novo convite do líder do PSD, Pedro Passos Coelho. A proposta era ser o número 1 do PSD, enquanto independente, pelo círculo de Lisboa. Ganhou. Associada a essa proposta ficava subjacente que se o partido formasse governo, Fernando Nobre seria o Presidente da Assembleia da República. A 5 de junho foram as eleições legislativas, o PSD ganhava, coligando-se ao CDS. A 20 de junho seria a eleição para presidir à Assembleia. Mas os seus 108 votos não chegaram aos 116 então necessários para que fosse o Presidente da Assembleia. Decidiu que só havia uma atitude a tomar, demitir-se. Assim o fez no dia 1 de julho, momento em que a sua carta foi lida em plenário.
Durante este quase ano e meio de voltas e reviravoltas políticas, o médico nunca deixou de tratar e o humanista nunca deixou de andar pelo mundo apelando à proteção dos mais frágeis. E talvez seja essa a sua razão para me dizer que é alguém de "experiência política não partidária, sendo também um verdeiro humanista". Os 40 anos de vida ativa justificavam-no.
Recordo-me bem do seu período de campanha às Presidenciais. Enquanto me preparava para esta entrevista decidi que ia perguntar tudo, menos de política. E foi precisamente por aí que quis começar a falar comigo. Porquê?
Fernando Nobre: Porque foi um período muito importante da minha vida.
Marcou muito, foi?
Fernando Nobre: Marcou... Imenso! Levei possivelmente uma meia dúzia de anos a digerir tudo o que se passou.
Porquê? Porque se acumulam desilusões?
Fernando Nobre: Muitíssimas. Traições também... Se nestes 35 anos de AMI, e como médico, eu conheci o país na sua componente social, com estas eleições eu conheci um outro país também muito importante: visitei lares, instituições, misericórdias, feiras, contactei com muita gente na rua, com muitos autarcas de todos os partidos e sempre me senti muito aceite. Portanto a marca na minha vida é também pela riqueza da experiência.
Foi Angola que o inspirou um dia a dizer que "queria ser o médico da terra"?
Fernando Nobre: Não sei se foi só Angola. Eu digo-lhe outra coisa, eu queria que no meu passaporte dissesse "um cidadão da terra". E espero que para aí caminhemos...
Tem essa utopia que seremos “todos cidadãos da terra"? Desculpe, já estou a ser tendenciosa porque já lhe estou a chamar de utopia...
Fernando Nobre: Não, não, não diga isso! Que palavra tão bonita. Porque é graças às utopias que avançamos e é preciso tê-las. Como dizia a minha amiga Sophia de Mello Breyner, "nada é mais difícil do que o Homem acomodado". Se era para ficar acomodado seria aquilo que o meu pai queria, "apenas" um cirurgião docente na Universidade de Bruxelas. Tinha lá a minha família e portanto a minha vida toda tracejada, como o meu pai queria. Ele desejava que chegasse a Catedrático lá. Mas sabe que, as minhas múltiplas leis genéticas, já que sou uma mistura de várias origens, fizeram-me perceber que Bruxelas não me bastava. Penso, no entanto, que desde pequenino tinha uma predestinação para ser médico, mas olhando para o mundo. (Pára e pensa) Não me arrependo nada do que fiz.
Porque é que o Professor deixa Bruxelas se tudo estava sólido lá?
Fernando Nobre: Na verdade a grande razão foi a AMI. Houve um dia, depois de várias missões, na fronteira entre o Darfur do Sudão e o Chade, onde estava a chefiar uma equipa dos Médicos sem Fronteiras de França, levava a acompanhar o meu trabalho uma equipa de jornalistas do L'Express e um fotógrafo da agência Sigma. No porto fronteiriço as autoridades sudanesas decidiram deixar apenas passar a equipa médica (eu como cirurgião, uma enfermeira, uma anestesista e um médico clínico geral), mas impediam que os jornalistas entrassem no Chade, zona onde se vivia uma guerra entre o Chade e a Líbia. Nessa altura bati o pé. Tínhamos passado os últimos 4 dias a viajar de jipe e parecia-me muito pouco ético e até cobarde passar a fronteira e ignorá-los. Então disse que ou passavam todos, ou ninguém. Foi muito complicado, mas após uma tarde de negociações duras, eles deixaram passar todos.
Não teve medo?
Fernando Nobre: Não! (Ri-se) Medo tive noutras circunstâncias. Ali o máximo que me podiam fazer era dar uma bofetada, não sei... E assim passámos e a equipa acompanhou-nos até ao oásis onde montei o nosso "hospital" de campanha. Depois, a equipa seguiu para fazer a cobertura da guerra na Líbia. Mais tarde, quando essa notícia vem a ser publicada no L'Express, sai uma fotografia minha a operar, numa tenda, com um parágrafo que dizia algo como: "Fernando, jovem cirurgião de origem portuguesa"... Eram umas poucas linhas abaixo da fotografia. Mas bastou para ser visto por uma equipa da RTP que acaba por me contactar e fazer uma grande reportagem comigo no Chade e que teve enorme impacto em Portugal. Isso fez com que o Ministro da Saúde me viesse a convidar para o procurar quando viajasse até Portugal. Eu vim. Estávamos em 1983. E ele desafiou-me a criar uma Instituição que apoiasse as populações portuguesas do interior. Então lembrei-me que, pela minha experiência e à imagem do que já criara noutros países, podia trazer o mesmo conceito para Portugal. E nasceu a AMI em dezembro de 1984.
É essa atividade humanitária e as permanentes idas ao estrangeiro que justificam que tenha deixado a atividade clínica aos 50 anos?
Fernando Nobre: Não era compatível tudo! Não para um cirurgião. Operar e uns dias depois partir pelo mundo, não era ético. E eu exercia maioritariamente em consultório privado em Portugal e isso não me "enchia as medidas" por comparação aos tempos onde trabalhei em excelentes hospitais de investigação.
É também muito curioso como assume frontalmente a sua ligação à Maçonaria. Poucas pessoas falam dessa ligação, como se houvesse um segredo, ou algo obscuro...
Fernando Nobre: Mas eu não tenho qualquer problema em assumi-lo. Repare, eu não nego nada que tenha pertencido ao meu passado. É igual a dizer-lhe que tenho 4% de sangue negro que vem dos meus antepassados. Sim, qual é o problema? E sim, sou maçónico. Assumi-o a primeira vez na televisão numa entrevista ao Mário Crespo. Logo a seguir recebi uma mensagem do meu querido amigo e já falecido António Arnaut (o “pai” do SNS e antigo Grão Mestre do GOL) a felicitar-me a coragem.
Mas é preciso coragem para se dizer que se pertence à Maçonaria, continuo a não perceber...
Fernando Nobre: Não sei porquê. A Maçonaria é um movimento de homens e mulheres de bem, raramente tem lojas mistas (as lojas são os espaços onde reúnem), mas habitualmente até são separadas. É um movimento nascido para defender valores e discutir questões filosóficas e não conspirativos. O problema é que mesmo nas mais altas instâncias há dramas sociais, mas esses têm que ser identificados e resolvidos. Eu assumo-me como um maçon adormecido. Só entrei aos 51 anos e saí quase aos 58, altura em que "abati cunas", como dizemos entre nós. Conheci pessoas de bem, conheci outros que, confesso, me satisfizeram menos. Se houve uma Maçonaria operativa da construção das catedrais por toda a Europa, foi sempre fomentando os graus de aprendiz, companheiro e mestre. Hoje a Maçonaria é um movimento simbólico, que se mantém reservado e tem que o ser. Veja que todas as ditaduras impunham que não se pertencesse a movimentos secretos e por isso alguns de nós no passado correram riscos.
O que é o Professor tenta deixar aqui como mensagem nesta Faculdade aos seus alunos da cadeira optativa de Medicina Humanitária?
Fernando Nobre: Como sabe tenho dois semestres e dou essa cadeira ao 3º e 4º anos. No limite são trinta alunos por turma. Sabe o que lhes tento passar? Que esta Medicina Humanitária é a das grandes catástrofes e a das grandes carências. Exige conhecimento global da Medicina, tem que se ter uma vasto universo cultural, ter igualmente muitos conhecimentos religiosos, políticos, diplomáticos, geográficos. Depois, o melhor aluno de cada semestre recebe, da AMI, uma "aventura solidária”. Isso permite-lhes que possam ir até ao Senegal, Guiné Bissau ou ao Nordeste Brasileiro, para que possam perceber melhor outras vivências. Daí que passe não só a minha experiência técnica, como também os sensibilizo para saber agir com os mínimos recursos. E sabe porquê? Porque boa parte das vezes trabalhávamos sem uma única análise de sangue, ou raio-X, daí terem de aprimorar a história clínica e saber fazer o exame clínico que implica uma apurada observação e não só a colocar dados no computador. Como digo sempre aos meus alunos, “a criação do diagnóstico corresponde sempre a uma investigação criminal, o médico que está ali à procura do criminoso e que pode ser uma bactéria, um vírus, uma célula cancerosa, diversas coisas”. É só depois destas primeiras etapas e afinando o que sentimos que pode vir a ser o diagnóstico, que pedimos exames complementares. É preciso não perder esta noção do que é ser médico, que é olhar para o outro.
Ainda tem alguma utopia?
Fernando Nobre: (Emociona-se) Que o ser humano se lembre de um caminho de espiritualidade, entendimento... (Fica parado a olhar sem fim) A utopia seria salvar este Planeta, porque se não o fizermos rapidamente e num esforço global entre todos os Estados, então nem ouso pensar no que vai acontecer...
Muitas vezes à noite, nas muitas horas que passa acordado, Fernando de La Vieter Nobre, lembra-se de amigos, ou de quem chamou por ele e não conseguiu chegar a tempo. Fala-me de uma amiga jornalista francesa, a Patrícia, que depois de ter sido apanhada num bombardeamento, e ao ficar com diversos estilhaços, esteve durante horas a chamar por ele para que a salvasse. Mas o médico e seu amigo Fernando já estava a caminho de outro conflito. Sonha com os que só não conseguiu salvar por breves segundos e outros que graças a ele ainda hoje seguem as suas vidas com enorme dignidade. Assombra-o bem acordado aquilo que vê à sua volta, quando me fala de um quase "apocalipse climático", efeito das agressões nefastas do Homem ao próprio Homem e ao ambiente; Ou quando pensa no massivo desenvolvimento da robótica e da "corrida ao armamento que está em curso". Diz-me que "há um rufar de tambores que lhe começam a tocar" numa noite que o torna vigilante em pensamentos, porventura, alarmado e sem soluções concretas para os fenómenos que avizinham trágicos desfechos para a Humanidade. Também pensa nas filhas que estão fora e que cobram ter sido sempre "um pai avião" e que ainda hoje vê menos a neta do que desejaria, funções de quem quer passar mensagens ao mundo, enquanto é tempo.
É-lhe intrínseco andar pelo mundo, viajante humanista diz, com alguma nostalgia ou quem sabe desencanto, que é "estrela cadente em movimento até ao embate final".
Em dezembro a AMI fará 35 anos. Para já Fernando de La Vieter Nobre vai continuando a preparar uma geração que quer deixar como herdeira, continuadora da AMI, continuadora sua. Uma AMI preparada para se adaptar aos novos tempos que aí vêm. Ao mesmo tempo vai tentando passar algumas mensagens enquanto Professor aos curiosos alunos, para que saibam distinguir o médico urbano daquele que anda no campo de guerra.
Assume que, por mais mensagens que tente passar, pelo mundo, no seu país, aos mais novos, ou mais influentes, ele próprio teme o que vê. Quando isso acontece diz-me que pensa sempre na mesma frase que um dia alguém lhe citou: "quando não sabes para onde vais, olha de onde vieste".
Bastará isso também ao mundo para que ele não se perca de vez?
O homem sem fronteiras, o homem do mundo não me soube responder.
Créditos Fotos: AMI
Joana Sousa
Equipa Editorial