O Sebastião da Gama Castanheira Martins tem 25 anos. É médico. Terminou em junho passado o 6º ano do MIM em Medicina, nesta casa que nos acolhe.
O que nos levou a falar com o Sebastião foi o voluntariado médico que fez pela Medical Volunteers International, na Grécia, entre Lesbos e Salónica.
Durante 2 meses, trabalhou com mais 4 médicos e prestou serviços médicos a quem mais precisa deles, os refugiados, que todos os dias chegam à Europa, à procura de um futuro melhor….
O Sebastião que conheci a 26 de setembro diz-me não ser o mesmo Sebastião que partiu para a Grécia a 14 de julho. Aceitou falar com a News@FMUL por considerar muito importante falar sobre o assunto e partilhar o que se passa.
“É verdade que em 2015 chegavam 6.000 pessoas por dia a Lesbos” ao passo que hoje “chegam cerca de 300, mas não é por serem 300 que devemos deixar de falar sobre o tema”. É essencial manter o tema atual, enquanto a ONU, enquanto União Europeia e enquanto Portugal. “É preciso repensar estratégias.” Considera que as políticas de acolhimento a refugiados em Portugal deixam muito a desejar. “Há muita burocracia, muita demora”, refere.
Como foram estes 2 meses?
Sebastião: Foram meses muitos intensos, nós trabalhávamos mais ou menos 8 horas por dia na clínica. Foram especialmente intensos emocionalmente, não tanto pela carga de trabalho em si. É muito duro ouvir as histórias de vida daquelas pessoas, ter a noção que vêm à procura de um lugar melhor e esbarram num local e numa Europa que lhes fecha um pouco os olhos e as portas. Podiam ficar muitas vezes 2 ou 3 anos num campo de refugiados à espera de ter asilo para depois poderem sair dali e reerguer a sua vida. Eu diria que trago um sentimento muito dual…. Foi uma experiência extremamente enriquecedora, aprendi imenso do ponto de vista médico mas principalmente do ponto de vista Humano de como lidar com pessoas vulneráveis. Por muito que aprendamos aqui na Faculdade, só quando lá se está é que se percebe como lidar com aquele tipo de situações. E mesmo quando lá se está, às vezes não sabemos muito bem o que fazer. Tentamos, utilizando o bom senso e falando com os voluntários que já lá estão há mais tempo. No entanto, ao mesmo tempo é difícil lidar com a frustração de saber que por muito que façamos, no final do dia aquelas pessoas voltam para o campo de refugiados, que tem condições absolutamente deploráveis. Condições inaceitáveis, em qualquer parte do Mundo mas principalmente na União Europeia. E sentir que estamos na Europa ainda nos frustra mais.
Percebi também que as pessoas que recorrem aos médicos, nestas situações, muitas vezes nem têm grandes patologias físicas e vêm para sentir que há alguém que está a cuidar e olhar por eles...
Pelo apoio emocional?
Sebastião: Sim, pelo apoio emocional e psicológico...
Esteve apenas entre Lesbos e Salónica?
Sebastião: Estive três semanas em Salónica no norte da Grécia, e depois estive as restantes cinco semanas em Lesbos...
Há semelhanças entre os campos?
Sebastião: São locais muito diferentes, pelo número e pelo tipo de pessoas que recebem. Em Salónica ficam as pessoas que vêm por terra, portanto as que atravessam o norte da Turquia para chegar a Salónica. Quem faz esse caminho, que pode durar entre 3 semanas a 2 meses, são normalmente homens de meia-idade, com alguma robustez física que lhes permite fazer a travessia. Por outro lado, em Lesbos chega-se via marítima, atravessando o Mar Egeu, e por esta via chegam muitas famílias, muitas mulheres e crianças. Por estas razões o tipo de população é completamente diferente.
O que sentiu quando se deparou com a realidade dos campos de refugiados?
Sebastião: Tratando-se de realidades diferentes as impressões que nós temos são também muitos diferentes. Em Lesbos, os refugiados chegam e são obrigados a pedir asilo. Ficam na ilha 2 ou 3 anos - há algumas exceções - mas a maior parte das vezes são 2 ou 3 anos.
Em Salónica, ficam 2 a 3 semanas até começarem a fazer o caminho a pé pela Macedónia para subirem para o centro da Europa. Apesar de isto se passar no mesmo país, as realidades são bastante diferentes.
Recorda-se da primeira ideia que lhe veio à mente?
Sebastião: Acima de tudo o desespero... O tentar imaginar as situações por que passaram aquelas pessoas, o que as motiva a fazer uma travessia destas sem nada, apenas com a roupa que trazem vestida. Muitas vezes trazem fotografias da família ou algum dinheiro, deixando tudo para trás.
Eles não têm casa... Vêm à procura de uma nova casa e ficam durante demasiado tempo sem poiso, sem casa, sem um sítio a que possam chamar de seu. E isso é muito duro.
É difícil falar de uma ideia, ou de um sentimento... Porque são imensos.
Sente-se choque cultural?
Sebastião: Nem por isso. Apesar de tudo estamos na Grécia, sentimos choque cultural sim, quando conversamos com as pessoas. O choque não existe mal se aterra lá, o choque existe quando começamos a conhecer as pessoas e a conversar com elas, quando começamos a perceber as suas histórias.
Trabalhavam fora do campo?
Sebastião: Sim, nós trabalhávamos numa clínica na periferia do campo. Existem 2 organizações que trabalham no campo.
Chegou a estar dentro do campo?
Sebastião: Não, nunca entrei, até porque achei que só iria lá caso tivesse algum trabalho a fazer, só para ver não fazia qualquer sentido. Mas conheci as periferias e ouvi as histórias das pessoas...
E chegou para criar uma imagem…
Sebastião: Sim, chegou para criar uma imagem bastante fidedigna quanto à realidade daquelas pessoas e aí sim há um choque tremendo. É muito complicado conceber a possibilidade de existirem realidades destas, hoje em dia e tão perto de nós, e com esta dificuldade surge uma tremenda sensação de impotência.
Vamos fazendo o que podemos…
O campo de Moria neste momento tem 12 000 pessoas*, quando tem capacidade para 3 000. Há pior, o campo de Samos, que é outra ilha grega, com capacidade para 600, neste momento tem 5 500 pessoas... Estão sobrelotadíssimos e sem capacidade para receber tanta gente...
Há pouco disse-me existirem 2 organizações. São 2 organizações para 12 000 pessoas?
Sebastião: É claramente insuficiente, as organizações médicas presentes não conseguem dar vazão a tudo. Eles recebem mais ou menos cerca de 100 doentes por dia. Há os Médicos Sem Fronteiras que estão presentes também em Lesbos, com uma clínica psiquiátrica e uma clínica pediátrica. Nós tínhamos uma outra clínica onde víamos 60 a 70 doentes por dia. A nossa clínica ficava num centro comunitário, chamado One Happy Family, onde havia também um centro para as mulheres, um ginásio, uma cozinha, um espaço de yoga... Era lá que nós trabalhávamos, e por ser um sítio calmo, seguro e com várias atividades, os doentes voltavam com frequência e sentiam-se bem lá.
Há instantes dizia-me que grande parte das situações não se tratavam de patologias físicas?
Sebastião: Os doentes tinham maioritariamente patologia mental. Muitas perturbações de Stress Pós Traumático, depressões, psicoses, dependências de álcool e de drogas. Algumas destas pessoas encontram nas drogas um mecanismo de coping... E não os podemos julgar, porque são situações de facto muito, muito complicadas.
O que dá à experiência ainda mais intensidade?
Sebastião: Sim, torna toda a experiência mais intensa e mais dura...
Obviamente tínhamos muita patologia física, mas diria que cerca de metade dos doentes apresentavam alguma perturbação do foro psicológico.
O tipo de tratamento que oferecemos a estas pessoas é muito diferente do que se faz cá. No caso da patologia mental, o importante era as pessoas sentirem que estavam a ser ouvidas. Muitas vezes nem iniciávamos medicação, bastava, por exemplo, as pessoas começarem a realizar atividades, como ter aulas de natação, ou ajudá-las a encontrar um espaço onde se sentissem seguras, para que começassem a melhorar. Este tipo de terapia ocupacional era muitas vezes suficiente. É claro que havia casos mais graves e alguns deles, se se passassem cá exigiriam internamento no serviço de psiquiatria, mas lá não há essa possibilidade e é muito difícil lidar com estas situações. Tínhamos pessoas com psicoses muito graves, que cá seriam encaminhadas para o serviço de psiquiatria, lá tentávamos gerir da melhor forma. O problema maior neste tipo de situações era o facto de eles todos os dias regressarem para dormir no campo, que é um sítio com muitos triggers para a doença mental. É um sítio onde ninguém está bem, muito menos quem está numa situação de extrema fragilidade psicológica.
As pessoas trazem um passado muito complicado e quando chegam lá deparam-se com um lugar que não os ajuda a melhorar ou a sentirem-se mais seguros, o que em nada favorece a sua condição. Chegámos até a ter tentativas de suicídio na nossa clínica.
E ainda há a agravante de estarem numa ilha, no caso de Lesbos...
Sebastião: Sim, ainda há essa agravante, porque não podem fugir e essa é a diferença que nós vimos em relação a Salónica. Em Salónica, eles sabiam que em qualquer dia, se juntassem algum dinheiro podiam ir embora. Em Lesbos isso é impossível.
Nós tivemos algumas ações de formação com uma Psiquiatra dos Médicos Sem Fronteiras, que já tinha trabalhado em vários locais no mundo, e ela disse-nos que nunca tinha visto um cluster de doença mental tão grande como ali. Uma das justificações é precisamente por ser uma ilha e as pessoas não terem fuga possível. É um sentimento de falta de esperança, de não haver futuro, porque estão rodeados de mar, não têm como sair dali e sabem que têm de ficar 2 ou 3 anos à espera da 1ª entrevista de asilo, que nem sequer lhes garante que o terão. A muitos deles pode não ser concedido asilo e, nesse caso, são deportados para o país de origem, o que gera um sentimento de incerteza muito grande, vive-se o dia-a-dia sem se saber o que acontecerá no dia seguinte. Dormem num local perigoso onde há muitas rixas e onde morrem pessoas.
Há um número elevadíssimo de tentativas de suicídio em Mória, a comida é deplorável, há uma casa de banho para cada 100 famílias, a fila para a comida demora em média 3 horas. Pode imaginar como é difícil para uma pessoa, que já vem fragilizada, poder recuperar...
Nós tentamos apenas dar-lhes um espaço onde elas se possam sentir bem, um pouco mais seguras, mas é difícil encontrar soluções a longo prazo para estas pessoas.
Apesar de tudo isto, o certo é que muitas destas pessoas quando vão para a Grécia continental ou lhes é concedido o asilo, começam automaticamente a melhorar. Só o vislumbre de alguma esperança dá-lhes logo outro alento. E isso é a prova viva de que, com algum esforço, é possível dar-lhes melhores condições. Se todo este processo fosse mais rápido, as pessoas poderiam recuperar mais rapidamente, principalmente do ponto de vista psicológico. Obviamente, há situações mais complicadas de gerir, por exemplo: neste momento em Lesbos estão a chegar entre 200 a 300 pessoas por dia, mais ou menos 4.000 pessoas por mês - lá não há tratamento para SIDA, não há antirretrovirais. É importante que as pessoas saibam que há um lugar na Europa onde não se oferece tratamento antirretroviral, e isto é completamente absurdo e inconcebível. Tínhamos pessoas que vinham do Congo tratadas, vinham com carregamentos de antirretrovirais para a viagem e depois chegavam à Europa e não tinham acesso ao tratamento.
E como gerem estas situações?
Sebastião: Nestes casos as pessoas têm de ser transferidas para a Grécia continental, mas esta transferência pode demorar 6 meses ou 1 ano. Portanto, são pessoas que ficam um ano sem o seu tratamento, o que é completamente obsoleto num país desenvolvido. Esta é uma situação claríssima de falta de vontade política, porque hoje em dia é muito fácil adquirir antirretrovirais por preços muito baixos ou até oferecidos por várias Fundações e Organizações Internacionais.
E vocês sentem que é mesmo falta de vontade?
Sebastião: Nós sentimos muito isso. Não é necessariamente falta de dinheiro, porque a União Europeia, desde 2015 já atribuiu cerca de 3,5 biliões de euros para apoio aos refugiados na Grécia e de facto basta estar lá uma semana para colocarmos a questão "para onde é que o dinheiro vai?".
Também há muito pouco apoio legal, as condições em Mória são absolutamente desumanas, os cuidados de saúde são muito deficitários e é… Enfim... Há muito por fazer! Demasiado...
Dos pacientes que consultou, das suas Histórias, há algum que o tenha marcado mais?
Sebastião: Sim... Os doentes que nos marcam mais nestas situações são aqueles que vemos mais do que uma vez. A maior parte das vezes víamos um doente que depois nunca mais voltava. Os que víamos mais vezes eram os que apresentavam perturbações psicológicas, e que viam na nossa clínica um porto seguro. Houve de facto um rapaz de 18 anos, que veio do Afeganistão, onde assistiu a coisas… Enfim... Absolutamente horríveis e escabrosas.
Há quanto tempo tinha ele chegado?
Sebastião: Ele veio à nossa clínica passado uma semana de ter chegado, portanto neste momento deve estar lá há 2 meses, mais ou menos. Sofre de stress pós-traumático muito, muito grave e tinha ataques de pânico frequentes...
Ele foi à clínica muitas vezes?
Sebastião: Vinha todos os dias, e nós passámos muito tempo com ele. Aprendi umas palavras em Farsi com ele, e ele aprendeu inglês com os voluntários. Chegou a vir jantar connosco... Nós, e isso eu acho que neste tipo de cenário é essencial, tentamos evitar o papel do médico como uma autoridade: existe, no sentido em que eles respeitam muito as decisões médicas, mas numa consulta não há as barreiras mais tradicionalistas e conservadoras: eu abracei vários doentes, fiz coisas muito pouco usuais, mas não existe qualquer tipo de paternalismo médico que eu acho que ainda existe cá, com as suas vantagens e desvantagens, é claro.
Este rapaz marcou-nos muito, até porque acompanhámos bem o caso dele... Este foi o rapaz que se tentou suicidar na nossa clínica. Tentou enforcar-se, mas nós, felizmente, conseguimos impedi-lo. É evidente que este tipo de acontecimento marcam qualquer pessoa, seja médico ou não e nunca poderei esquecer a imagem de ver uma pessoa pendurada com uma corda ao pescoço.
Tem tido notícias sobre o estado dele, agora?
Sebastião: Eu sei que ele está um bocadinho melhor mas, a vida daquele rapaz está um pouco condenada. Tem 18 anos e nunca foi à escola, não sabe ler nem escrever. É muito difícil casos como ele poderem melhorar naquela ilha. Os cuidados de saúde do ponto de vista mental são muito negligentes. Este rapaz foi para o hospital de Mitilini, que é a capital de Lesbos, esteve lá uma hora e deram-lhe alta. Nos casos de tentativa de suicido, o paciente tem que ficar pelo menos 24 horas em vigilância, para se garantir que já está mais calmo e não há risco de suicídio.
Muitas vezes estes refugiados, depois de lhes ser dada alta, tinham que regressar a pé para Mória, que fica a duas horas de caminhada. Chegámos a saber de casos de mulheres que depois de uma cesariana iam a caminhar do hospital até ao campo, porque têm alta e ninguém lhes fornece transporte.
Deste tipo de experiência trazemos sempre muitas histórias para casa. Houve uma mulher com quem acabei por criar uma relação muito especial: tinha uma depressão e bebia muito, mas estava a melhorar. O constante turn over de médicos e a mudança frequente de voluntários dificulta muitas vezes os cuidados, porque a cada médico que se vai embora, é outro que tem que estabelecer de novo uma relação com o doente e ganhar a sua confiança. Nós logo à partida, quando sabemos que há um doente que vamos ver mais regularmente, temos de dizer que vamos embora, e foi o que aconteceu com essa mulher, eu disse-lhe "olhe que daqui a 3 semanas eu vou-me embora"... Mas ainda assim deixam-nos sempre um sentimento muito particular!
Conheci também muitas crianças, crianças com uma capacidade extraordinária, que se estivessem noutros locais do mundo, de certeza que teriam um futuro brilhante. Vamos ver o que é que o futuro lhes reserva, mas temos de acreditar que será melhor aqui do que seria nos seus países de origem.
Sente que foram também meses de aprendizagem para si enquanto pessoa, enquanto médico?
Sebastião: Sim, seguramente! Sinto que onde aprendi mais foi na relação com os doentes, como lidar com alguém que nos diz ter sido violada, como lidar com alguém que está grávida e não sabe se o pai do filho é o marido ou o violador, como lidar com alguém que foi torturado durante semanas. O modo como se lida com este tipo de situações é o que mais se aprende lá.
E eu acredito, tenho a convicção plena, embora isto não seja consensual na comunidade médica, que esta é a qualidade mais importante de um médico. É claro que é importante ter conhecimento científico, mas um médico com um enorme conhecimento científico neste tipo de contexto, ou tem uma grande capacidade de resiliência e humanismo extraordinários ou então não é assim tão valioso, até porque o que pode fazer cá, não o pode fazer lá. Acredito que ali, o primeiro e melhor tratamento é sempre o Estar e o Ouvir.
A recetividade dos doentes era positiva?
Sebastião: Sim, regra geral era positiva. Havia muitos doentes do Congo e como de vez em quando nós não tínhamos tradutor de francês e sei um bocadinho de francês, acabei por fazer muitas consultas nessa língua, e o facto de não ter tradutor ajuda a estabelecer uma relação mais próxima com os doentes.
No caso do Farsi era impossível, mas em francês, já mais para o final, conseguia fazer uma consulta e falar com eles, o que facilita. A recetividade é mais fácil quando falamos a sua língua. Encontrei pessoas do sul do Congo que falavam português, o que foi muito interessante e divertido. Acho que, no geral a recetividade foi muito boa, às vezes gozavam um bocadinho comigo porque diziam que tenho um ar muito jovem….
Lembro-me perfeitamente que um dos primeiros senhores que tratei: era um Senhor de 70 anos que tinha uma infeção urinária. Tratei-o e ele, uma semana depois, voltou. Estava com medo que ele pudesse estar pior, mas ele estava ótimo. Veio à consulta só para me dar um pêssego e para agradecer o facto de o ter tratado. E são estes pequenos gestos que também guardamos com especial carinho: um simples pêssego.
Teve contacto com algum refugiado que estivesse há muito tempo à espera da entrevista para requerer asilo?
Sebastião: Eu não sabia muito sobre o processo de pedido de asilo e aprendi muito lá, obviamente.
A primeira coisa que marca logo todo o processo e o futuro destas pessoas, é o país de onde vêm. Por exemplo, as pessoas que vêm da Síria, como é um país em guerra, têm o processo de asilo menos dificultado. As pessoas que vêm de países considerados "seguros", aos olhos sabe-se lá de quem, têm um processo de asilo mais dificultado. Nomeadamente, Afeganistão, que apesar não estar em guerra oficialmente, ainda sofre com as guerrilhas de talibãs, e não é de todo um país seguro. O Congo, a mesma coisa. E depois há outros países, cujo processo de asilo é muito, muito demorado, como é caso do Irão e do Iraque.
Eu, além do voluntariado médico, de manhã dava também aulas de violino num outro campo que lá existe, que é Karetepe, com cerca de 1200 pessoas.
Lá, eu estava em contacto maioritariamente com crianças, e por isso fiquei muito próximo de uma família de meninas do Iraque. Elas iam todos os dias às aulas. Durante as 5 semanas que lá estive, iam sempre às aulas, eram muito assíduas, e acabei por ficar muito próximo delas. A família até me convidou para ir jantar ao contentor deles, e então lá fui jantar e dançar música iraquiana.
Eles estavam lá há quanto tempo?
Sebastião: Há 2 anos e meio. São do Iraque e não tinham qualquer perspetiva de sair... Há uma série de nuances a ter em conta neste tipo de casos. Karetepe é considerado como um exemplo a nível mundial, de como deve ser um campo de refugiados... Não deixa de ser um bocadinho irónico que este campo está localizado muito perto de um dos piores campos de refugiados do mundo que é Mória.
Como assim?
Sebastião: Ao entrar-se neste campo sentimo-nos seguros. É um lugar tranquilo onde toda a gente tem contentor, não há pessoas a dormir em tendas. É um lugar onde há bastante policiamento, onde há muitas crianças e onde lhes são dadas muitas possibilidades para elas aprenderem. Foi lá que eu acabei por dar aulas de música. Neste caso há pessoas que sabem que, ao sair dali, vão para um sítio provavelmente pior. E esta família dizia não se importar de estar lá, porque de facto é um lugar bom. Eles não sabem sequer se vão ter direito a asilo...
Não sendo concedido asilo são deportados para os países de destino...
Sebastião: Sim, são deportados. O que é doloroso! Pensar que aquelas 3 meninas e os seus pais podem ter de voltar para o Iraque…
Também conheci uma família, que estava lá há dois anos e meio, foi para a Alemanha e depois mandaram-nos de volta! Gastaram as poupanças todas para ir para a Alemanha e mandaram-nos de volta, portanto há de tudo um pouco!
Mas no meio de isto tudo, também há histórias bonitas e de sucesso. Nós chegamos a conhecer algumas pessoas que começaram a sua viagem, chegaram à Alemanha ou a França e conseguiram estabelecer a sua vida lá. Havia também pessoas que se estabeleceram na Grécia e trabalham, por exemplo, como tradutores no campo. Têm a sua vida lá, são felizes e querem ficar. Isto para dizer que também há histórias boas e que há pessoas que conseguiram reconstruir as suas vidas.
Portanto conheceu alguém com uma história feliz?
Sebastião: Sim, conheci! Um tradutor com quem trabalhámos em Salónica. Ele tinha tentado ir para o Reino Unido, mas não conseguiu. Depois de voltar, decidiu assentar em Salónica e neste momento trabalha para uma Organização. Tem um salário, tem a sua casa e quer ficar por lá.
Também há o exemplo de outra tradutora, com quem trabalhámos em Lesbos. Como o campo estava a ficar demasiado sobrelotado, houve muita gente transferida para a Grécia continental, e uma das nossas tradutoras de Farsi para Inglês, uma pessoa incrível, foi também transferida para Salónica.
E ela levou a família?
Sebastião: Sim, tinham um apartamento com condições muito boas e estavam muito felizes. E acreditavam que ali poderiam reerguer a sua vida. E isso é muito bom!
Há sempre algum receio, porque muitos deles saem de Lesbos e vão para outro campo na Grécia continental por vezes com piores condições, portanto vão sempre com algum receio. No caso desta rapariga, felizmente, conseguiram ter a sua casa. E estão bem, estão felizes (diz de sorriso rasgado) e acredito que tudo está a correr bem com eles.
Agora que está cá, vai tendo notícias das pessoas que conheceu?
Sebastião: Sim, vou mantendo algum contacto, principalmente com a minha Coordenadora para saber como é que estão alguns dos doentes que deixei lá e algumas das pessoas. Vamos sabendo de algumas coisas. Tem chegado muita gente agora, ainda ontem chegaram 450 pessoas a Lesbos. Há uma semana morreu uma criança de 10 meses a fazer uma travessia de mar que demora meia hora. A situação em Mória esta cada vez mais degradada… Mas sim, vou mantendo o contacto possível!
Referiu-se ao campo de Karetepe, como sendo um exemplo. Existe algum critério de seleção para umas famílias ficarem neste campo e outras ficarem no outro?
Sebastião: Existe sim. Tem a ver com a vulnerabilidade, ou seja, famílias numerosas regra geral vão para Karetepe, que é o campo bom, digamos assim. Idosos, pessoas com doenças consideradas mais graves, mulheres solteiras e alguns menores não acompanhados também vão para Karetepe. Mas atenção, mesmo a transferência para o campo bom pode demorar tempo, porque existem restrições quanto ao número de pessoas. Ou seja, só quando sai alguém de Karetepe é que podem entrar mais pessoas, para evitar a sua sobrelotação. Mória inicialmente também era um campo aceitável, só que começou a ficar sobrelotado e agora tem as condições que sabemos...
Portanto, nem sempre há lugar em Karetepe para as pessoas mais vulneráveis.
Existem muitas situações de menores não acompanhados?
Sebastião: Nós não lidávamos muito com menores não acompanhados, porque eles ficam ao cuidado das Autoridades Gregas e dos Médicos Sem Fronteiras, que têm uma clínica de pediatria perto do campo, mas existem alguns e em situações bastante complicadas. Os menores que chegam sozinhos estão numa zona do campo supostamente mais segura onde existe muito policiamento e onde têm muito acompanhamento. E nessa zona houve uma luta da qual resultou a morte de 2 jovens, de 14 e 16 anos. Isto na zona que era considerada a mais segura. Ninguém se responsabilizou. A vida ali não é fácil para ninguém, mesmo nas zonas ditas seguras.
Tenho a ideia de existirem cerca de 2.000 menores não acompanhados, mas acho que podem ser mais.
É um número muito elevado...
Sebastião: É... Eu conheci um rapaz, que me dizia ter 17 anos. Quando chegam a Salónica muitas vezes não têm documentos nenhuns, e quando lhes perguntávamos a idade, muitos diziam ter 17 anos porque sendo menor tem-se mais regalias: é mais fácil ter acesso a comida, ter alojamento...
No caso deste rapaz ele não parecia ter 17 anos, mas estava sozinho e estava completamente perdido. Estava lá há 3 semanas, não estava registado em lado nenhum, não tinha papéis, dormia nas redondezas do campo, porque não estava registado no campo. Não sabia o que fazer. Não tinha dinheiro e queria sair dali, porque eles muitas vezes têm de pagar à polícia para que os deixem passar, ou têm pagar viagens de comboio ou de autocarro. E lá ouvem-se as histórias mais tremendas: desde pessoas que fazem autoestradas inteiras por baixo de um camião para passar fronteiras ou pessoas escondidas nos vagões dos comboios. Lá o conseguimos encaminhar para a Associação que trata dos menores. Lembro-me de lhe ter perguntado quais eram os sonhos dele, o que é que ele queria fazer...
Quais eram os sonhos dele?
Sebastião: Ele disse que naquele momento, só queria ir embora. Queria poder ir para um sítio da Europa, porque a mãe o tinha enviado para ele poder assentar, ganhar dinheiro para enviar para casa (no Afeganistão), para poder pagar a escola dos dois irmãos mais novos. O sonho dele era que os irmãos pudessem ter acesso a educação.
Ele estava lá há 3 semanas e eu perguntei-lhe se já tinha falado com a família desde a sua chegada. “A tua família sabe que estás aqui, que estás vivo?”, ele disse que não. Dei-lhe o meu telemóvel e ele ligou para o irmão. Foi a chamada mais cara da minha vida mas compensou bastante. Nunca mais soube nada dele. Sei que perguntava muitas vezes por mim...
De vez em quando ainda penso nele… Espero que já esteja mais orientado…
Vai voltar Sebastião?
Sebastião: Eu quero muito fazer isto mais vezes. Não sei se na Grécia ou noutros locais. É curioso, mas ao final de 6 anos a estudar medicina, senti pela primeira vez naquele lugar uma tremenda utilidade... Da minha utilidade, enquanto médico e da utilidade da medicina, na forma como eu a concebo e como eu acredito nela. Na medicina humana, pelas pessoas. Foi ali que fiz as pazes com a medicina que eu acho que deve ser praticada, e quero muito voltar a trabalhar neste tipo de contexto, porque de facto é necessário que as pessoas dediquem parte do seu tempo para lá estar, para estar pelos outros, e aquelas pessoas precisam muito de ajuda e de alguém que cuide delas.
Mas também senti que … Bom, a faculdade formou-me bastante bem e eu fui um aluno razoável, mas às vezes sentia que me faltava muito conhecimento, o que é normal. Via muitas coisas, como doenças tropicais das quais não tinha ideia de como tratar, diagnosticar ou o que fazer. Senti que me faltava uma formação mais especializada, portanto eu quero formar-me cá, numa área…Veremos qual é… Para poder fazer um melhor trabalho neste tipo de contextos.
Esta experiência pode ter um peso importante na escolha da especialização?
Sebastião: Ah, sem dúvida que sim! Veremos qual será a área.
Tem um peso importante em muitas coisas, seja na escolha da especialidade, do que queremos fazer no futuro e principalmente, na forma como vou ver os doentes no futuro, tenho a certeza que o Sebastião de hoje é um Sebastião mais dedicado.
O Sebastião deixa uma mensagem clara aos nossos estudantes, “nós, enquanto futuros médicos, temos um papel muito importante e temos uma oportunidade extraordinária de poder ajudar de uma forma que eu arrisco dizer, com todo o respeito por todas as outras profissões, que é única e essencial. Portanto, acho que devemos, em algum momento da nossa vida, dar algum do nosso tempo a estas pessoas! Obviamente que cá em Portugal também há pessoas que precisam muito, mas se houver a possibilidade de o fazerem agora, enquanto estudantes, ou enquanto especialistas, acho que é muito importante.
Aprendemos sempre muitas coisas que não se aprendem cá, por um lado ainda bem, que significa que cá, temos pessoas que não passam pelos mesmos traumas”.
Considera que esta é uma escola de vida extraordinária e que a recompensa chega nas coisas mais simples.
“Vale muito a pena e espero que haja mais gente a poder fazer isto, mesmo que isso implique eventualmente, como foi a minha decisão, não fazer logo o exame”, refere com os olhos brilhantes de esperança.
Este Sebastião que conheço diz não estar minimamente arrependido, e mais uma vez acredito nele!
“Espero que haja mais gente a fazer isto, esta é a minha mensagem principal. Nós como médicos então temos um papel mesmo, mesmo muito importante. Que usemos esta formação que é tão valiosa para ajudar estas pessoas.
Obrigada, Sebastião!
*À data da entrevista o número rondava as 12 000 pessoas. À data da publicação, o número oficial é de cerca de 13 500 pessoas. Nas semanas seguintes à entrevista houve 3 naufrágios de botes que tentavam chegar às ilhas gregas, que contabilizam mais de 10 mortes, grande parte são crianças.
Cristina Bastos
Equipa Editorial