Reportagem / Perfil
Rui Tato Marinho – 30 anos a curar as pessoas com Hepatite C
Porque assumiu no passado mês de maio o cargo de Presidente da Sociedade Portuguesa de Gastrenterologia e pelo seu prestigiado currículo enquanto Diretor do Serviço de Gastrenterologia e Hepatologia no Hospital de Santa Maria, tínhamos combinado para breve uma conversa sem minutos contados.
Rui Tato Marinho é Professor Associado com Agregação e elemento integrante do Conselho Pedagógico da Faculdade de Medicina da Universidade de Lisboa. Médico Gastrenterologista e com a subespecialidade em Hepatologia, está habituado aos papéis internacionais pertencendo a sociedades científicas, considerando, aliás, ser atributo fundamental para ser bom líder e bom gestor de pessoas e das suas emoções.
Juntámo-nos formalmente numa reunião onde se articularam as primeiras ideias de um ciclo de conversas que ele iniciará e cujo tema não lhe podia fugir, "A Hepatite C e o seu futuro". Dessa reunião com vários elementos reparei na sua falta de necessidade de se impor, ou destacar, dá tempo aos outros e aceita-os com paciência, como se estivesse sempre numa espécie de consulta, onde a sua observação não lhe exige qualquer afirmação pessoal.
Portador de muitas más notícias habituou-se a não julgar ninguém pelo quadro clínico que apresenta, ou a tentar descodificar o lado opcional da vida que cada um tomou. Olha por isso para a pessoa na qualidade restaurativa, sem fazer o exercício de julgamento se os caminhos que se tomaram, levaram a pessoa a um melhor ou pior lugar. Este sentido de postura restaurativa perante os outros talvez encontre resposta por ser filho e neto de juízes do Supremo Tribunal de Justiça. A sua família, que sempre defendeu e lhe ensinou esta corrente tão lógica na Justiça, fez com que também Rui Tato Marinho acreditasse na humanidade de uma forma muito esperançada. "As pessoas têm de ser recuperadas e integradas na sociedade, colocar alguém na cadeia é muito mau, mas às vezes necessário em nome da segurança nacional. Contudo, a sociedade tem de saber desculpar, porque a pessoa têm de se tentar restaurar. Repare, a sociedade só tem a ganhar se ajudar os consumidores de droga e os integrar na vida civil. Ao trata-los e curando os casos de Hepatite C, eles sentem-se alegres. E sabe o que acontece a seguir? Vão cometer menos crimes e não raramente agradecidos e com uma vontade renascida de colaborar com a sociedade que neles investiu e perdoou".
A Medicina não deixa, no entanto, de lhe estar nas raízes de vida, diz que a grande influência para o seu perfil académico foi a sua mulher Luísa, um ano mais velha do que o namorado Rui; ela entrou na FMUL e ele no Campo Santana. Aí fez o seu curso todo e mal lhe foi possível concorreu "à grande cidade cheia de luzes", o mesmo que dizer, o Hospital de Santa Maria, com o campus universitário que tanto admira. O outro grande marco seria o tio Tomé (Prof. Tomé Ribeiro) já ele médico, Professor, e Diretor do Serviço de Gastrenterologia no Hospital São João, do Porto. Foi a especialidade do tio que tê-lo-á, certamente, influenciado na sua própria escolha clínica. Amigos muito próximos do tio, os Professores Carneiro Moura e Pinto Correia, e que estavam em Lisboa esperavam o recente formado em Medicina Rui, que já dizia com grande frontalidade que "ia para uma selva, mas sem medo".
Fala-me da casa do tio, na Maia, feita pelo arquiteto Siza Vieira, como um exemplo de mensagens subliminares que agora valoriza ainda mais. Exemplo disso é a pequena sala de jantar, sem espaço para que nela coubesse uma televisão, e que tinha uma mesa redonda de madeira onde caberiam no máximo 6 pessoas, na verdade e quase sempre 4. A essa mesa, ao almoço ou ao jantar reunia-se a Família para ter tempo de falar da vida, das responsabilidades, ganhando entre elas a empatia que se pretendia ensinar e transmitir entre gerações. Desses tempos traz aprendizagens que aplicou aos dois filhos, João Pedro e Margarida, agora já crescidos e independentes, com um Duarte neto já nascido e outro Francisco que está a caminho. A mesa redonda era o princípio primordial do diálogo e da aprendizagem, era primazia dos quatro. É deste “princípio da mesa” onde se ensinam e depois reforçam os valores que o Professor faz sempre questão de falar, bem como da lealdade dos laços, do casamento, e da pessoa que se escolhe para percorrer o caminho todo ao lado e que sem isso não há a mesma estrutura, nem o mesmo crescimento individual.
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Fala num tom de voz calmo, sem vaidade, sem um altruismozinho fingido, como coisa que caracteriza os de bem, que se mostram quase sempre heróis, de uma forma distraída como se não soubessem que o estão a dizer. Rui Tato Marinho não é herói, nem Deus, é facto, "mas faz muito bem o papel de Deus na terra", disse-lhe um dia destes um dos seus (Amigos) pacientes.
Contaram-me também que faz voluntariado e quando o disseram foi à sua frente, mal reagiu, levantou apenas a cabeça e disse ser um "disparate porque já há uns dias que não fazia nada", depois de poucos segundos de silêncio concluiu, "o que não faz sentido é andarmos neste mundo sem reparar nos outros, temos todos que fazer qualquer coisa uns pelos outros".
Rui Tato Marinho foi atleta do Benfica em atletismo, ainda hoje gosta de correr, diz-me que é "ótimo para libertar endorfinas, ter ideias e por isso anti-depressivo" e apesar de não estar permeável a depressões, gosta de usar o corpo para que quimicamente ele o faça sentir-se bem. Disciplina que se ensina também, a desportiva, esta foi o Pai que a transmitiu. Desde pequeno o quis pôr no Judo, "e é bom porque a pessoa aprende a ter autodomínio". Depois foi fazendo diversas atividades, aos 15 anos corria em velocidade no Benfica, puxando sempre por si e pela falta de conforto e, tão importante quanto estudar, o desporto ensina a saber perder e a sentir dor, "porque por melhor que a pessoa seja, nunca é o melhor e aprende a competir com ele próprio, criar objetivos próprios e sofre-se imenso, mas psicologicamente torna-nos persistentes". Outra disciplina e a resiliência vieram-lhe de inspiração da mãe que teve 4 filhos, 3 rapazes e uma filha.
Tem os olhos claros, não tenho a certeza se azuis, se verdes, mas eles sozinhos não antecipam ou desmascaram qualquer personalidade do seu protagonista, são profundos e leais à sua imensa discrição.
Ainda assim e sem cerimónias consegui que fossemos tendo uma conversa muito honesta, como se pudesse ser uma de muitas com alguém que já se conhece relativamente bem e se encontra para rever como está. Ele, o Professor, também acha importante que as pessoas se conheçam e se deem a conhecer. E isso não lhes retira prestígio, respeito, nem quebra algum equilíbrio de formalismo sempre necessário, mas é na história do outro que o aprendemos a respeitar mais. Por isso promove com os seus internos que façam todos uma pequena apresentação, onde falam uns minutos sobre si próprios. "As pessoas gostam de falar de si e é muito importante saber o que está ali atrás daquela pessoa", diz acentuando sempre o lado da humanização que lhe é tão óbvio, igual ao que tem com os doentes.
Descreve a sua profissão como das mais ricas humanamente, verdade, no mesmo dia diz que recebe o padre, o polícia, o Ministro, o advogado, o agente da judiciária, a mulher-a-dias, o juiz, o preso, ou a prostituta. Falo-lhe da abrangência de grupos sociais que lhe entram pelo consultório de Santa Maria adentro, sim porque só trabalha lá como médico, e então a conversa torna-se deliciosa...
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Entram-lhe aqui pessoas de uma sociedade que é completamente díspar...
Rui T. Marinho: E o fígado dá completamente para isso para as analisar. (as doenças do fígado não escolhem estratos sociais, pobres ou ricos)
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Porquê, o fígado é o nosso cartão de cidadão interno? É quem mais fala de nós?
Rui T. Marinho: É um deles porque diz muito dos comportamentos das pessoas. Diz muito o que andaram a fazer. Eu lido muito com alcoólicos, consumidores de drogas, com obesos, ou seja, lido com personalidades com comportamentos aditivos.
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E há muita diferença de um doente que vem ao público daquele que vai ao privado?
Rui T. Marinho: Eu optei pelo público, só trabalho no público. Ainda assim recebo muita, mas mesmo muita gente dos ditos estratos sociais da Classe A e B. Pessoas de mais de 45 países.
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Porquê?
Rui T. Marinho: Há excelentes médicos na medicina privada, mas eu sempre tive a ideia que devia servir um senhor. Andar a correr de um lado para o outro não me serve. Mas um dia se optar pelo privado opto, com o mesmo princípio, só não ando a correr, a saltar. Como sempre fiz isto ao longo de 30 anos... há umas coisas que sou muito fiel. É como um casamento em que as pessoas se dão bem e se conseguem manter. E depois gosto muito deste modelo do hospital universitário e que tem um modelo muito próprio, temos aqui dos melhores colegas do país e com currículos a nível europeu fabulosos.
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Falou-me do tio médico há umas gerações atrás, fiquei a pensar se se terá perdido um certo protocolo entre o doente e médico?
Rui T. Marinho: Esta relação não é igual ao que era no passado, isto para o bom e para o mau. Antigamente havia dois extremos, ou sabiam todos os detalhes de forma muito aproximada, ou não permitiam sequer perguntas ao doente, porque o médico é que sabia tudo e não podia ser questionado. Não se comunicava bem porque usavam muito os termos técnicos.
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E maioritariamente agora vivemos em qual dos lados?
Rui T. Marinho: Acho que se continua a existir nos dois, apenas com nuances diferentes. E a grande maioria dos médicos que conheço são bons médicos e pessoas humanas, gostam muito da sua profissão principalmente pela relação humana com o doente, a vontade de ajudar. Claro que reforço que é a grande maioria, porque como em todas as profissões há pessoas diferentes. A barreira que antigamente havia do silêncio em que o doente com cancro chegava a ser o último a saber, hoje mudou. Temos obrigação de olhar nos olhos e de comunicar as más notícias e explicar tudo, até porque o doente é uma pessoa muito mais bem informada e vai à Internet e às vezes até se informou já mais do que nós sobre uma determinada matéria.
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O médico tem obrigação de comunicar tudo ou comunica-se só até onde o doente quer ouvir?
Rui T. Marinho: Eu fiz preparação em comunicação de más notícias, pediram-me para fazer uma formação destas para anestesistas aí há 10 anos e tive de ler imenso sobre o assunto. Não basta saber muito do ser humano, é preciso técnica para saber comunicar más notícias. Observar se a pessoa chora ou não chora, se a olhamos nos olhos e o que ela própria nos diz. Os cursos de Medicina deveriam, aliás, dar mais formação prática no terreno sobre estas matérias. Sabe que há dias em que chego a casa e tive de comunicar 2 ou 3 cancros, ou tive de dar más notícias... As pessoas não são iguais e cada pessoa é um puzzle, logo a nossa oferta de informação é diferente consoante o cliente. Depois varia da própria sensibilidade do médico. Penso que já ouviu falar das 5 fases da morte...
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Não sei quais são.
Rui T. Marinho: Primeiro a pessoa diante da má notícias tenta ignorar, depois vem a raiva, a seguir tenta lutar contra a doença diagnosticada, depois vem a depressão e por fim a aceitação. E eu posso apanhar os meus doentes numa qualquer destas fases. Tendo personalidades diferentes, então a minha preocupação como médico é que a pessoa ali diante de mim saiba o que tem. E saber o que ela tem, não precisa de ouvir "tem um cancro". Aliás não gosto nada dessa palavra e raramente a utilizo. Comunicar uma má notícia pode demorar 3 ou 4 segundos, basta dizer algo como "há aqui na imagem uma pequena bolinha que me preocupa e que implica mais exames". E claro que a pergunta a seguir é se é algo de mal, ao que respondo que pode haver. E a notícia está dada e a pessoa pode perceber logo o que se está a passar. E falo desde o ministro, à pessoa mais simples e que não sabe ler, tenho ambos aqui e todos percebem.
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O estatuto da pessoa de quem trata é-lhe completamente indiferente diante da doença?
Rui T. Marinho: É feito com o mesmo respeito, mas talvez com uma linguagem diferente, mas olhe que se explica muito bem a alguém que não sabe ler nem escrever o que se passa com ela. Nós devemos explicar-nos de modo a que qualquer um nos perceba e comunicar não é difícil. Quer um exemplo bom? O Professor Marcelo R. de Sousa tem um nível científico muito elevado mas consegue que qualquer pessoa o perceba.
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Falamos de dar más notícias, mas às vezes dessas notícias vem também um desfecho positivo, ou não?
Rui T. Marinho: Às vezes muito positivo. Eu tenho experiências altamente marcantes porque tenho aqui pessoas que passaram já por muito na vida, tem sucessivos problemas que nos ultrapassam e mesmo assim o reconhecimento que têm perante o médico é algo muito compensador. Dos melhores "amigos" que fiz aqui pela forma como os tratei clinicamente, e a maioria consumiu droga, esteve preso, iam a seguir a minha casa para me fazerem uma obra e não aceitavam cobrar dinheiro; um deles foi o taxista dos meus filhos na fase da adolescência, muitas vezes pelas noites dentro. Acreditei nele, apesar de ter estado preso. Essa recompensa do outro não dá para descrever.
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É da gratidão que está a falar?
Rui T. Marinho: É pura gratidão. Dos meus doentes mais ricos que na verdade são bem menos também tenho um ou outro que se comporta com esta gratidão, mas são menos.
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A gratidão vem de um público que também está particularmente frágil socialmente…
Rui T. Marinho: Sem dúvida, mas também temos agressividade só que essa vem da Comunicação Social e que mexe em interesses como a negligência médica, a crise e a falta de condições que interferem nas nossas ações, isso é o que vende. E isso traz um fenómeno curioso é que as pessoas gostam do seu médico, mas não admiram muito a classe. Alguns acham-nos arrogantes. Temos que aprender humildade.
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E esse rótulo é um mito que se criou ou temos na verdade uma classe vaidosa de si?
Rui T. Marinho: Sim... há médicos vaidosos. (Funga com o nariz como se medisse bem as palavras, depois pensa um pouco). Devíamos trabalhar mais a questão da nossa performance não científica. Portugal tem uma Medicina muito boa, com Escolas médicas de excelência, mas a parte emocional e de inteligência emocional deveria ser mais bem trabalhada. Podíamos aprender com os ensinamentos do Marketing, do Jornalismo, da Comunicação, para sermos mais eficazes nas relações humanas.
Dou-lhe o exemplo dos pilotos da TAP…
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É engraçado falar-me deles, porque antecipou a minha pergunta que era precisamente por que razão faz tantas vezes a analogia do médico ao piloto...
Rui T. Marinho: Os pilotos da TAP que têm uma imagem muito boa, erram tanto quanto nós, têm a mesma idade que nós. E é um grupo com quem tenho mantido grande relação e um deles há pouco tempo dizia-me, "nós estamos a fazer uma formação sobre humildade". E sabe porquê? Porque a pessoa aprende a diminuir o erro, pergunta, tem dúvidas, trabalha em equipa, tudo isso diminui o erro. Há aviões que caíram porque o piloto não quis ouvir a opinião do seu copiloto que para todos os efeitos está num patamar mais baixo. E eu acho que nós também precisávamos de umas lições de humildade. E note que não é a "humildadezinha", é aquela que nos permite ouvir o outro, onde todos num serviço, desde a senhora da limpeza, ao doente mais agressivo, são importantes. Assim como é importante assumir quando não sabemos e admitir que erramos, pedindo feedback a quem saiba mais. Isto tudo faz parte da humildade. E sendo a aviação a atividade humana mais segura pode-nos trazer muitos ensinamentos, até na aprendizagem através da simulação.
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Em que medida correlaciona o piloto e o médico?
Rui T. Marinho: A aviação é vista como o paradigma da segurança humana. Repare que não cai um avião comercial em Lisboa há uns 30 anos. Houve um ano em que não caiu um único em todo o mundo e note que são milhões a voar ao ano. E porquê? Porque são muito seguros e, com algumas diferenças, é a classe que, como nós, lida com o fator humano e com os sistemas mais seguros que existem. A simulação, por exemplo, é algo que podemos aprender com a aviação. A simulação está muito na frente da linha de combate da Medicina, vamos ter um centro de simulação muito importante e que nos dará uma noção de trabalho de equipa e de feedback que nos ajudam muito. Eu visitei muitos centros de formação de pilotos, precisamente sobre a segurança e tenho lidado muito com eles. E podemos aprender com eles muito, repare: uma hora antes de irem voar eles reúnem para ver o tempo e a rota do vôo, têm umas check list's onde piloto e copiloto têm de as passar todas em revista, depois há ainda o debriefing para avaliar o que se passou. Já viu como isso é também muito importante no exercício da Medicina? Ouvir, receber feedback e aprender a comunicar com o outro? Se olharmos mais e fizermos mais este paralelo garantimos também uma maior segurança. Sabe que um comandante da TAP tem a mesma idade que eu tenho, (fala a sorrir) e ele alcançou um estatuto bem visto e eu facilmente sou acusado de negligência; eu fiz 25 mil horas de urgência e um piloto com a minha idade fez umas 17 mil horas de vôo. Somos pessoas em mundos diferentes, mas queremos é a segurança dos outros, fazer o melhor trabalho e não falhar.
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Acha mesmo que enquanto médico é olhado com pouca admiração pela sociedade?
Rui T. Marinho: Nós médicos somos muitas vezes mal vistos, claramente por influência de alguma Comunicação Social. Mas também por nossa culpa, por se investir pouco na boa comunicação humana. Nas muitas horas de urgência que fiz, fui muitas vezes insultado sem me conhecerem porque a pessoa já vem zangada com o sistema e com o que ouviu. Houve colegas meus que chegaram a ser agredidos.
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Alguém tão zeloso por essa segurança do seu doente, que tem o método todo e sabe que há uma fórmula eficaz de um plano de tratamento contra a Hepatite C, ainda assim perde doentes mesmo com esse plano que, aparentemente, apresenta resultados que os salva. E isto porque o plano de tratamento pode chegar tarde demais, porque não há financiamento para todos. E li no livro "Hepatite C - O Futuro Começou Aqui" o antigo ministro da saúde, Adalberto Campos Fernandes diz algo como, "Portugal pode acabar com esta epidemia da Hepatite até 2030". Pode?
Rui T. Marinho: Medicamente não acredito que seja possível. Já se falava há muitos anos da vacina da Hepatite B e que ela iria acabar com a doença no mundo, mas não acabou, nem em Portugal. Como são doenças crónicas, alguns doentes com Hepatite C já têm cirrose e portanto têm um risco de cancro do fígado apesar de se eliminar o vírus. Mas pode reduzir-se muito em termos de impacto de saúde pública. O tratamento em alguns hospitais está a ser muito difícil de chegar. Não há pessoas que ficam sem tratamento, mas chega a demorar meses.
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E esse timing da espera não pode dar cabo do timing da vida de alguém?
Rui T. Marinho: Em 6 meses a pessoa não vai morrer por essa espera, mas vai ter um risco mais elevado de ter cancro do fígado se tiver cirrose e algumas pessoas desesperam e fogem ao tratamento a seguir.
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Se bem percebo a mensagem, a pessoa, mesmo que salva da Hepatite C, se tiver cirrose, pode ter cancro no fígado e morrer. Então não se salva.
Rui T. Marinho: Mas o risco diminui imenso.
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Enquanto fomos conversando disse-me que não tem medo da área que escolheu para trabalhar e que mesmo sendo de risco, ela não o estremece. Não tem mesmo medo?
Rui T. Marinho: Não. Nunca tive quando entrei. Nem tenho agora. Claro que há ameaças, há situações que se criam e que sabemos que podem implicar risco, mas sabemos que alguém tem que as fazer, assumir.
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Deixe-me fazer-lhe uma pergunta sem qualquer sentido de provocação. Vendo o seu currículo e as responsabilidades que assume atualmente a dirigir entidades tão fortes como a SPG e a Gastrenterologia do HSM, porque é que não tem a Direção Clínica Universitária da mesma área na Faculdade?
Rui T. Marinho: Isso eu não sei porque são opções de quem manda e que eu respeito. Já aconteceu historicamente o responsável do Serviço ser o Diretor das duas valências, mas isso mudou. Com o devido respeito, acho que a complexidade da minha direção é tão grande, e ser responsável por uma cadeira é tarefa complicada também, que exigem muito tempo e grande envolvimento nosso. Nos últimos anos só em endoscopias aumentámos 500%. Por isso entendo que sejam pessoas diferentes, até porque teria alguns problemas de gestão de tempo para acumular as duas coisas. E acho que esta direção está muito bem entregue com a Professora Helena Cortez Pinto.
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No âmbito da sua presidência da Sociedade Portuguesa de Gastrenterologia quais são as suas principais missões?
Rui T. Marinho: A principal é pensar nos doentes. Quem sofre tem de estar sempre no centro de tudo. Depois quero que lhe chegue a informação idónea, científica. Por outro lado quero explicar à sociedade o que faz um Gastro... que já tem um nome complicado e quero tentar puxá-lo para o palco social. Se as pessoas perceberem bem o papel desse médico, também vão perceber muito melhor as doenças e como podemos ajudar os doentes. É preciso melhorar a imagem social do médico. O gastrenterologista é muitas vezes o pivot. Não nos podemos esquecer que 3 das 10 doenças mais mortais em Portugal e que um terço dos cancros são do aparelho digestivo.
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Explique lá esse truque de se saber manter durante 30 anos um casamento do qual fala com tanto orgulho?
Rui T. Marinho: Porque as coisas têm de ser muito dinâmicas, é um processo onde as pessoas vão crescendo, a vida vai sendo diferente, depois vêm os filhos, a seguir vem a especialidade que queremos seguir, depois os filhos entram para a escola e portanto nada é monótono. As dificuldades vêm de todo o lado e é preciso ter uma resistência emocional muito grande. E esta resistência, esta inteligência emocional aprende-se e precisa de ser trabalhada. E eu fiz com a minha mulher um curso de gestão em 2002, devo a esta Faculdade isso, não imagina como essa formação mudou completamente a nossa forma de ver as coisas.
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Deixe-me voltar à mesa redonda do seu tio... Mantém encontros de família com regularidade?
Rui T. Marinho: Olhe com o João é mais difícil porque ele trabalha em Bruxelas onde é jurista europeu, com a Margarida estou todas as semanas, é economista no Banco de Portugal. Mas 3 ou 4 vezes por ano vemo-nos todos.
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É pouco... Professor...
Rui T. Marinho: Pois é, mas não dá para mais… Falamos todas as semanas, mas ... (a voz vai diminuindo de tal forma que parece que alguém tirou o volume de um rádio) isto na vida é um contrato a prazo. Nós temos os filhos até uma determinada idade, depois o que interessa é que sejam felizes e sigam. Mas eu falo com eles e eles ensinam-me muitas coisas, transmitem-me ensinamentos das suas áreas e da experiência que adquiriram e eu enriqueço com eles.
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O Professor médico também vai visitar o seu fígado e perguntar-lhe se ele está bem?
Rui T. Marinho: Sim! Já fiz as minhas análises necessárias. E os exames. A partir dos 50 anos e uma vez por ano faço essas visitas a mim próprio e procuro ter cuidados, não engordar, não beber demais. Mas sei que à medida que vamos ficando mais velhos está ali qualquer coisa à porta. Todos vamos morrer, é uma questão de tempo. Quanto mais tarde melhor. Mas há um dia que sabemos que somos nós. E sei que, como vivi, mais 40 ou 50 anos já não vou viver o mesmo tempo. Portanto aproveito muito mais a vida agora e os momentos felizes e bastam-me pequenas coisas: uma entrevista feliz, um almoço, a cor bonita de um quadro, a música.
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A morte não o assombra?
Rui T. Marinho: Não! Mas gostava de estar aqui mais uns 20 e tal anos para ir saboreando ainda mais coisas da vida.
A tudo o que perguntei respondeu sem que a expressão do olhar se mostrasse incomodada ou espantada, havia aliás uma certa calma sábia de quem raramente é desconcertado por alguém. Em algumas situações pedi licença para fazer perguntas, chegou a dizer-me, "eu respondo a tudo".
Nesta conversa aprendi que 1/3 dos cancros nacionais entram-lhe pela sua área de especialidade adentro. Tem cerca de 150 pessoas a trabalhar com ele e que, de algum modo, esperam uma coordenação eficaz, com pulso.
Do esófago ao estômago, passando pelo pâncreas, ou fígado, ou olhando para o intestino que só ele tem cerca de 7 metros para observar. Os números impressionam: pela Unidade de Técnicas e pela Consulta externa passam no seu conjunto cerca de 50.000 pessoas/ano. O Serviço interna 1.500 doentes por ano o que corresponde a cerca de 10.000 dias de internamento. A carga assistencial é muito elevada.
Ao conversar com o Professor percebi que ele próprio transporta qualquer coisa de oriental dos tempos em que foi visitar o filho João ao Japão, Rui Tato Marinho acha que vivemos para causar felicidade aos outros porque só assim seremos mais felizes e só assim a sociedade funcionará melhor. Vive a parte difícil dos doentes, prova disso são as descrições emotivas das dezenas de doentes que quiseram falar do seu Doutor estimado no livro "Hepatite C, O Futuro Começou Aqui". Não esquecem como os recebeu, tratou e acompanhou, mesmo quando tudo estava aparentemente resolvido. Ainda assim faz por nunca levar essas histórias de vida para casa. Exercício da gestão emocional qual piloto da vida dos outros.
Em 1.000 pessoas 999 saem do tratamento da Hepatite C curadas, basta um comprimido que elimina a doença e não sofrem efeitos secundários. Isto aconteceu em pouco mais de 20 anos e Rui Tato Marinho fez parte de todo esse processo.
A Medicina tentará sempre ser o milagre que fará mais e mais por salvar as pessoas das doenças que vão surgindo ao longo de cada século e as pessoas querem desesperadamente durar esse tempo que acham que lhes pertence para sempre.
Mas neste tempo que brincamos à imortalidade vamos conhecendo pessoas assim como Rui Tato Marinho, que acha quase mais justo a morte do que não saber olhar o outro por dentro, nem dar-lhe mais uma e outra oportunidade.
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Joana Sousa
Equipa Editorial